Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em:

«Havia cinco alunos, dos quais três já desistiram de ir ao evento.»

Qual a função sintática que o pronome relativo exerce na oração a qual pertence?

Resposta:

A resposta não é direta. A construção pressupõe «três dos alunos», que tem valor partitivo. Sendo assim, «dos alunos» é complemento nominal. Consequentemente, numa oração relativa, «dos quais», que inclui o pronome relativo «o qual», cujo antecedente é «cinco alunos», também é complemento nominal na frase em questão.

Desenvolvendo um pouco a análise de «dos quais», trata-se de um complemento: o núcleo de «três dos quais» é «três» – com valor nominal; e «dos quais» restringe o universo a que se refere a informação veiculada pela oração em que se insere – «três – dos quais (alunos)/deles – já desistiram…»

Um exemplo semelhante é registado por Maria Helena Moura Neves, na Gramática de Usos do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003, p. 587):

«Das seis crianças que foram receber a merenda, somente três estudam na escola.»

Nesta frase, a autora considera que «três» é adjunto adnominal, subentendendo-se «três crianças». Porém, tanto aqui como no exemplo em análise, «três» é o núcleo, e «dos quais», o complemento com valor partitivo, ou se quisermos, restritivo. Em qualquer dos casos, é uma situação em que o numeral desempenha a função nuclear dentro do sujeito, assumindo um valor "nominal" (por elipse do nome). Sendo assim, a análise sintática da expressão encaixada «dos quais» tem de ser feita a partir deste pressuposto.

Refira-se que, tanto em Portugal como no Brasil, se pode considerar «dos quais» um complemento, sobretudo se tivermos em conta o que acerca do complemento nominal diz Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeir...

Pergunta:

Gostaria de saber a vossa opinião acerca da gramaticalidade das seguintes frases:

(a) Um terço das mulheres presentes está grávida.

(b) Das mulheres presentes, um terço está grávida.

Este assunto foi discutido [num] fórum. O que se passa nestas frases é que temos uma concordância mista: um adjetivo, grávida, que concorda em número com o sujeito gramatical, «um terço das mulheres/das mulheres, um terço», e em género com o sentido desse sujeito, que são várias mulheres (coisa que tenho visto designada por concordância siléptica).

[O] vosso artigo "Concordância total e parcial ou atrativa" discute uma concordância “mista” (global em número, atrativa em género) no caso de um sujeito composto por uma lista de nomes, e diz que há gramáticos que a admitem. Não me parece grande acrobacia adaptar essa concordância “mista” às minhas frases acima. Mas gostaria de saber se isto é considerado aceitável ou até mesmo recomendável face a alternativas como «das mulheres presentes, um terço está grávido/estão grávidas».

Resposta:

A  concordância gramatical mais correta é «um terço está grávido». Por outras palavras, como adjetivo, é legítimo empregar grávido, e, por vezes, até já se ouvem casais (sobretudo em telenovelas) a dizer «estamos grávidos». No entanto, não parece motivo de escândalo a concordância psicológica, ou por silepse: «um terço estão grávidas».  Mesmo assim, seria preferível recorrer a uma das seguintes alternativas, estilisticamente, maneiras de fugir às ratoeiras da concordância:

1 – Das mulheres presentes, um terço são grávidas.

2 – Das mulheres presentes, um terço é formado por grávidas.

Pergunta:

Na frase «Vim pelo caminho com o meu avô», «pelo caminho» desempenha a função de complemento oblíquo? Ou será modificador do grupo verbal?

Obrigada.

Resposta:

Para interpretar os complementos que completam os verbos de movimento, é, muitas vezes, necessário recorrer aos papéis temáticos que lhes são característicos. Na Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, de Raposo et al., pp. 1182 refere-se que um verbo de movimento se completa com complementos oblíquos que denotem a deslocação de uma entidade de um local (origem – lugar de onde) para outro (meta ou destino – lugar para onde), ou o lugar de passagem (lugar por onde).

«Pelo caminho» desempenha a função de complemento oblíquo.

 

N. E. – Resposta alterada pela autora em 09/11/2021.

 

 

 

Pergunta:

Na frase «Sobreviveu ao massacre», «ao massacre» desempenha a função sintática de complemento indireto, ou complemento oblíquo?

Na frase «Obedeceu ao regulamento», «ao regulamento» desempenha a função sintática de complemento indireto, ou complemento oblíquo?

Resposta:

O facto de poder substituir o complemento pelo pronome pessoal lhe permite a interpretação dos complementos em questão como indiretos. Não se trata, todavia, de complementos indiretos prototípicos, pois não representam entidades humanas, nem animadas. Esta característica é apontada na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 2013, pág. 1175), para os verbos desobedecer, obedecer, resistir e sobreviver.

Pergunta:

Gostaria de saber se «às voltas» poderia ser considerado nalgum contexto predicativo do sujeito, nomeadamente na frase «A Maria anda às voltas», e o verbo ser considerado copulativo, como em «A Maria anda doente», ou se o grupo preposicional é um complemento oblíquo e o verbo é transitivo indireto.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

No Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Lisboa, Texto Editores, 2007), andar surge como verbo principal, podendo ser transitivo direto («Ele andou 100 metros») ou transitivo indireto, com complemento oblíquo: «Ele anda a cavalo»; «A Terra anda à volta do Sol»; «Eles andam na apanha da azeitona.» Enquanto copulativo, o verbo, se for seguido das preposições com ou em, ou de adjetivo, é apresentado no mesmo dicionário como tendo valor próximo de estar: «Vê-se mesmo que andas com saudades da família»; «A casa anda em obras.» Também lhe é associado, enquanto copulativo, o valor próximo de usar, se as preposições subsequentes forem com ou de: «Os estagiários andam sempre com calças de fazenda»; «A sogra não gosta de andar de saltos altos.»

O caso apresentado não tem, como bem sugere a consulente, uma análise inequívoca. Há três possibilidades de análise:

a) considerar «andar às voltas» como um todo, porque é uma expressão idiomática;

b) partir do princípio de que andar é um verbo transitivo indireto, sendo «às voltas» um complemento oblíquo; com esta interpretação a expressão pode ter um sentido literal: «Andei meia hora às voltas antes de estacionar o carro»;

c) ou, aceitando que «anda às voltas» é equivalente a «anda perdida» ou «está à procura de alguma coisa», diremos que «às voltas» é um predicativo.

Sobre esta última análise, observe-se que o verbo andar, enquanto copulativo, é apresentado na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, como veiculando informação relativa a um estado episódico (pp. 1305 e 1312), o que, creio, acontece na expressão «andar às voltas»,...