Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Vim pelo caminho com o meu avô», «pelo caminho» desempenha a função de complemento oblíquo? Ou será modificador do grupo verbal?

Obrigada.

Resposta:

Para interpretar os complementos que completam os verbos de movimento, é, muitas vezes, necessário recorrer aos papéis temáticos que lhes são característicos. Na Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, de Raposo et al., pp. 1182 refere-se que um verbo de movimento se completa com complementos oblíquos que denotem a deslocação de uma entidade de um local (origem – lugar de onde) para outro (meta ou destino – lugar para onde), ou o lugar de passagem (lugar por onde).

«Pelo caminho» desempenha a função de complemento oblíquo.

 

N. E. – Resposta alterada pela autora em 09/11/2021.

 

 

 

Pergunta:

Na frase «Sobreviveu ao massacre», «ao massacre» desempenha a função sintática de complemento indireto, ou complemento oblíquo?

Na frase «Obedeceu ao regulamento», «ao regulamento» desempenha a função sintática de complemento indireto, ou complemento oblíquo?

Resposta:

O facto de poder substituir o complemento pelo pronome pessoal lhe permite a interpretação dos complementos em questão como indiretos. Não se trata, todavia, de complementos indiretos prototípicos, pois não representam entidades humanas, nem animadas. Esta característica é apontada na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 2013, pág. 1175), para os verbos desobedecer, obedecer, resistir e sobreviver.

Pergunta:

Gostaria de saber se «às voltas» poderia ser considerado nalgum contexto predicativo do sujeito, nomeadamente na frase «A Maria anda às voltas», e o verbo ser considerado copulativo, como em «A Maria anda doente», ou se o grupo preposicional é um complemento oblíquo e o verbo é transitivo indireto.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

No Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Lisboa, Texto Editores, 2007), andar surge como verbo principal, podendo ser transitivo direto («Ele andou 100 metros») ou transitivo indireto, com complemento oblíquo: «Ele anda a cavalo»; «A Terra anda à volta do Sol»; «Eles andam na apanha da azeitona.» Enquanto copulativo, o verbo, se for seguido das preposições com ou em, ou de adjetivo, é apresentado no mesmo dicionário como tendo valor próximo de estar: «Vê-se mesmo que andas com saudades da família»; «A casa anda em obras.» Também lhe é associado, enquanto copulativo, o valor próximo de usar, se as preposições subsequentes forem com ou de: «Os estagiários andam sempre com calças de fazenda»; «A sogra não gosta de andar de saltos altos.»

O caso apresentado não tem, como bem sugere a consulente, uma análise inequívoca. Há três possibilidades de análise:

a) considerar «andar às voltas» como um todo, porque é uma expressão idiomática;

b) partir do princípio de que andar é um verbo transitivo indireto, sendo «às voltas» um complemento oblíquo; com esta interpretação a expressão pode ter um sentido literal: «Andei meia hora às voltas antes de estacionar o carro»;

c) ou, aceitando que «anda às voltas» é equivalente a «anda perdida» ou «está à procura de alguma coisa», diremos que «às voltas» é um predicativo.

Sobre esta última análise, observe-se que o verbo andar, enquanto copulativo, é apresentado na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, como veiculando informação relativa a um estado episódico (pp. 1305 e 1312), o que, creio, acontece na expressão «andar às voltas»,...

Pergunta:

A propósito de minha consulta respondida pela professora Edite Prada em 7/3/2014, ainda ficaram obscuros (pelo menos, para mim) aspectos referentes à concordância verbal na frase que apresentei. Em virtude disso, volto ao assunto com novas frases, de estrutura semelhante.

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem (venho) a ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que devo (deve) ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que continuo (continua) a ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que passo (passa) a ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que começo (começa) a ser eu mesmo.»

A minha dúvida, em suma, seria a seguinte: se, quando o verbo ser é usado numa estrutura de oração relativa + pronome pessoal, a concordância se faz com esse pronome, o mesmo não deveria ocorrer quando se trata de uma conjugação perifrástica com o mesmo verbo ser?

Cumpre dizer que a locução «vir a ser» (motivo de minha pergunta inicial), no Aulete Digital, tem as acepções de «chegar a ser, converter-se em»: «Se levasse a sério o estudo, viria a ser um grande pianista»; e de «ser, tratar-se de»: «Aquela que você criticou vem a ser minha mulher.»

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Agradeço ao prezado e ilustre consulente a possibilidade de refletir de novo sobre uma estrutura que constitui um desafio e que, simultaneamente, não é de fácil, nem unívoca, interpretação.

Curiosamente, na análise que anteriormente fiz, não tive em conta a designação tradicional de conjugação perifrástica, que muitos estudiosos têm vindo a abandonar nos seus trabalhos, preferindo outro tipo de abordagens, falando de modalidade, de aspeto… Se considerarmos a frase que vem sendo objeto de análise, veremos que, efetivamente, aquela frase específica não encaixa nas definições prototípicas da conjugação perifrástica. E muito provavelmente é esta posição marginal, digamos assim, que permite a não- obediência às normas da concordância preconizadas para a conjugação perifrástica. Foi esse pressuposto que me levou a propor uma análise distinta, e que não pretende ser definitiva (não teria como…), nem indiscutível. É minha convicção de que a expressão «vir a ser», podendo embora, em outros contextos, ser interpretada como conjugação perifrástica típica com sentidos próximos de «chegar a ser, converter-se em, tornar-se», naquela frase não o é, aproximando-se, eventualmente, do sentido que refere em Aulete de «tratar-se de».

Assumindo que «vir a ser» na frase «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem (venho) a ser eu mesmo» tem o sentido de «tratar-se de», ou, como propõe Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (2001), p. 233, «quase o mesmo sentido do verbo principal empregado sozinho», dificilmente lhe encontraremos um valor prototipicamente perifrástico, que se materializa veiculando valores aspetuais temporais ou modais.

É esse facto, a meu ver, que possibilita a flutuação da concordância, que, parecendo-nos estranha, não deixamos de aceitar…

C...

Pergunta:

Examine-se a seguinte frase:

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que sou eu mesmo.»

Parece-me que a concordância está correta: o verbo ser concordando com o predicativo representado pelo pronome pessoal eu.

No entanto, nesta outra frase, com uma locução verbal: «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem [venho?] a ser eu mesmo», parece ser a concordância na terceira pessoa a mais indicada.

Gostaria de um comentário a respeito, o qual desde já agradeço.

Resposta:

Concordo com a apreciação que faz, embora tenha dúvidas acerca da função de eu, na frase em apreço e que repito como 1:

1. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que sou eu mesmo.»

Com efeito, o pronome relativo que, cujo antecedente é «seu melhor amigo», representa, do meu ponto de vista, um predicativo do sujeito que vem antes do verbo. A frase canónica seria «Eu sou o seu melhor amigo», que tem como equivalente «O seu melhor amigo sou eu».

Ao interpretarmos eu como sujeito, a concordância é inquestionável. Na segunda frase em apreço, que repito como 2, a situação é um pouco mais complexa.

2. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem [venho?] a ser eu mesmo.»

A frase integra uma expressão relativamente fixa («que vem a ser»), que, por isso mesmo, não é de fácil interpretação sintática, e qualquer análise feita sem a conveniente e profunda investigação pode soar a artificial. «Vir a ser», embora seja, efetivamente, uma unidade de sentido, não é um complexo (ou locução) verbal constituído por um auxiliar típico e por um verbo principal. Além disso, numa construção como 2, mais do que a concordância, é o próprio uso de «vir a ser» que parece estranho…

Podemos, ainda assim, tentar analisar a frase. Assumindo que não estamos perante um complexo verbal canónico, poderemos fazer a análise de cada um dos verbos e considerar que o relativo que, ou o seu referente «seu melhor amigo», é o sujeito do verbo vir, «vem», o que justificaria a terceira pessoa. Por seu lado ser teria como sujeito eu e como predicativo do sujeito o mesmo que (