Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «caminharam o dia todo», como classificar sintaticamente a palavra «todo»?

Resposta:

Na interpretação mais comum, o quantificador universal todo integra o grupo nominal que, na frase em apreço, desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal, com valor temporal, do verbo «caminharam», cujo núcleo é o nome «dia», completado com o quantificador «todo» e o determinante «o», constituindo, na globalidade, uma estrutura a que se atribui a designação de sintagma, ou, segundo o Dicionário Terminológico, grupo, como designámos acima.

Numa interpretação mais inovadora, poderíamos considerar que se constitui um «modificador do nome», integrando sempre, todavia, o sintagma, ou grupo nominal.

Com efeito, todo é um quantificador universal que, como diz Ana Maria Martins na Gramática da Língua Portuguesa (Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 359), «pode vir separado do resto da expressão nominal, na construção chamada “flutuação de quantificador”». Dá como exemplos:

1 «As maçãs estão todas verdes»

2 «Os camponeses trabalharam todos até à noite.»

Eduardo Paiva Raposo e Matilde Miguel afirmam na Gramática do Português, vulgo, Gramática da Gulbenkian, p.723, que «Os quantificadores todos e ambos iniciam o sintagma nominal e precedem um nome especificado por um determinante definido (artigo ou demonstrativo), [e] em particular, não podem preceder diretamente um nome.»

«A posição ocupada por estes quantificadores leva por vezes a considerar que se combinam, efetivamente, com um sintagma nominal completo, criando um novo sintagma de classe diferente, do qual são o núcleo, ao qual se pode chamar sintagma quantificacional (abreviado SQ)»

Exemplificam com:

...

Pergunta:

Na oração «Singram soberbas naus que eu não verei jamais», como explicar a razão de que desempenhar a função sintática de complemento direto?

Obrigada.

Resposta:

Que é o complemento direto de «verei» por representar, ou substituir, na frase, a palavra naus.

Estamos perante uma frase complexa em que a oração relativa «que eu não verei jamais» integra o grupo nominal que serve de sujeito:

«Singram soberbas naus [que eu não verei jamais].»

Sujeito – «soberbas naus que eu não verei jamais»
Predicado – «singram»

O sujeito desta frase complexa é constituído por um grupo nominal que tem dois modificadores restritivos, um deles constituído pela oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que eu não verei jamais». A análise do grupo nominal que serve de sujeito –«soberbas naus que eu não verei jamais» – é a seguinte:

Núcleo do grupo nominal (e, consequentemente, do sujeito) – «naus»
Modificador um do nome – «soberbas»
Modificador dois do nome (a frase relativa) – «que eu não verei jamais»

O pronome relativo que tem como antecedente «naus» e, enquanto pronome, desempenha uma função na oração relativa «que eu não verei jamais», a função de complemento direto de «não verei»:

Sujeito – «eu»
Predicado – «que não verei jamais»
Verbo – «não verei (jamais)»

Nota:

Como o verbo ver é transitivo direto, é completado com um complemento direto, que vai ser constituído pelo vocábulo – o pronome que – que representa o objeto que não vai mais ser visto....

Pergunta:

O emprego de o(s)/a(s) como pronome demonstrativo é obrigatório em contextos como:

«Examinei os factos da vida do João, e os da da sua esposa e filhos.»

Ou pode dizer-se simplesmente:

«Examinei os factos da vida do João, e da sua esposa e filhos.»

Muítissimo obrigado pelo vosso trabalho!

Resposta:

Ambas as frases correspondem a usos corretos.

Em «Examinei os factos da vida do João, e os da sua esposa e filhos.» o grupo, ou sintagma, nominal «os factos da vida» é repetido anaforicamente através do pronome demonstrativo os.

Por seu lado, na frase «Examinei os factos da vida do João, e da sua esposa e filhos.» embora não exista uma anáfora explícita, tal não impede que a informação seja retomada e compreendida. Diríamos que se trata de uma elipse, que, em boa verdade, acontece também na frase anterior, uma vez que o grupo «os factos da vida» é omitido em «filhos».

Se se optasse pela explicitação exaustiva, então seria «Examinei os factos da vida do João, e os da sua esposa e [os dos] filhos.»

No entanto, dado o facto de se tratar de uma frase relativamente curta em que a informação é facilmente recuperada no contexto, a repetição anafórica explícita torna a mensagem menos fluida, pelo que se justifica a elipse.

Fazendo uma análise sintática de frase em análise, estamos perante:

Sujeito – nulo subentendido
Predicado – «examinei os factos da vida do João, e os da sua esposa e filhos».
Complemento direto – o CD é composto por três grupos nominais coordenados entre si:

«os factos da vida do João»
«os da sua esposa»
«filhos

Ao fazermos esta análise torna-se mais evidente o recurso à elipse em «filhos» não só do pronome os mas também da preposição de e do artigo os e, porque não?, do possessivo…

Por outro lado, estamos perante três grupos nominais equivalentes entre si, separados, ou unidos, pela conjunção copulativa e e entre os dois primeiros por vírgula. Em situações semelhantes, também é comum recorrer à

Pergunta:

É correto dizer «coisa na qual me lembro de que pensava»?

E é errado «coisa em que me lembro de que pensava»? Trata-se de um erro sintático ou eufónico?

E quanto a «coisa na qual me lembro que pensava?» É correta?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

As frases em questão estão sintaticamente corretas.

Na expressão em apreço estão presentes dois verbos cuja regência predominante é:

Lembrar

1 - Transitivo direto – rege CD - «O sócio lembrou os tempos áureos do clube.»
2 - Trans. direto e indireto – rege Cd e C.preposicional, introduzido pela preposição a – «O João lembrou ao amigo os bons tempos de outrora.»
3 – Pronominal reflexo: CDpron e CPrepos. introduzido pela preposição de - «Lembro-me de que os tempos eram difíceis.»

Pensar

1 - Transitivo direto – CD constituído por uma oração «Penso que estás em perigo.»; «Penso ser importante fazer o trabalho.»
2 – Trans. indireto – C. Prepos.
a)    introduzido por em - «Penso numa (em uma) forma de resolver o problema.»
b)    introduzido por sobre «Preciso de pensar sobre o assunto.»

Do ponto de vista sintático, diremos que a regência dos dois verbos está correta:

a) O verbo lembrar ocorre como pronominal sendo completado mediante um CD (me) e um comp. preposicional constituído por uma frase completiva (de que pensava…) «Lembro-me de que pensava…»
b) O verbo pensar ocorre com um complemento preposicional introduzido pela prep. em «Pensava numa coisa.»

A estrutura frásica resulta mais complexa uma vez que o complemento preposicional do verbo pensar está numa posição de destaque, no início da frase. Essa deslocação implica, ou exige, a introdução do pronome relativo «o/a qual» antecedido pela preposição em (na qual) que serve de CPrep. ao verbo pensar: («pensava numa coisa» ou «coisa na qual pensava». De estruturas próximas da que está em apreço diz-se na Gramática da Língua Portuguesa de Maria Helena Mateus e outras que se trata da «Reconstrução de uma estrutura clivada-Q». As autoras ilustram com o exemplo: «É do filho da Maria que ela gosta.» pág. 690.

Poderemos, pois, dizer que se trata de uma expressão correta do ponto de vista sintático.

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Pergunta:

Sobre o período «Si o incitavam a falar exclamava: – Ai! Que preguiça! ... e não dizia mais nada.» [de Macunaíma, de Mário de Andrade], pergunto:

1) Há oração nos termos «Ai!» e «Que preguiça!»?

2) Se houver, quais os verbos que estão implícitos?

3) Quantas orações existem no período?

4) O período é misto?

5) A oração «Si o incitavam a falar» é oração subordinada adverbial condicional?

Obrigado.

Resposta:

O excerto que apresenta é de análise difícil e, eventualmente, controversa, pois não se trata de um período tipicamente analisado em sintaxe, pela pontuação usada e pela entoação que implica.

Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, associa período a enunciado e refere que os enunciados podem ter designações diversas, dependendo do sentido que pretendem veicular: declarativo ou enunciativo, interrogativo, imperativo-exortativo, vocativo e exclamativo (p. 407 – 37.ª ed., 2001).

Bechara diz ainda que «Entre os tipos de enunciados há um conhecido pelo nome de oração, que pela sua estrutura, representa o objeto mais propício à análise gramatical, por melhor revelar as relações que seus componentes mantêm entre si, sem apelar fundamentalmente para o entorno [situação e outros elementos extralinguísticos] em que se acha inserido. É neste tipo de enunciado chamado oração que se alicerça, portanto, a gramática…» (p. 407 – 37.ª ed., 2001).

Se for seguida a descrição de Bechara, idealmente, não se selecionam exemplos como o que está em análise para estudar, salvo num nível muito elevado…
Feita esta ressalva, tentar-se-á analisar o exemplo em apreço, tendo consciência de que essa análise poderá ser objeto de polémica e interpretação diferente.

Vejamos ponto a ponto:

1) Há oração nos termos «Ai!» e «Que preguiça!»?

Bechara distingue os conceitos frase e oração, aproximando frase de enunciado num nível extrassintaxe e considerando oração «uma unidade onde se relacionam sintaticamente seus termos constituintes e onde se manifestam as relações de ordem e recção que partem do núcleo verbal e das quais se ocupa a descrição gramatical» (p. 540, 37.ª ed.).