Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Li num artigo do jornal Notícias de Coimbra de 13/11/1909 a palavra "praso". Pela descrição da notícia e pela descrição de fotos associadas à actividade do caçador (referido no artigo) em África, deduzi que "praso" deve significar «fazenda», «machamba», etc.

Procurei em dicionários, bem como no Ciberdúvidas, mas não encontrei nada.

Agradecia que me informassem sobre o real significado da palavra "praso".

Resposta:

A palavra deve estar mal grafada, porque, como designação mais próxima da realidade descrita na pergunta, existe prazo. Esta palavra, além de significar genericamente «período», pode também referir um contrato de aforamento e um prédio ou propriedade sujeita ao regime de enfiteuse (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).1 Uma vez que fazenda e machamba se enquadram no que se entende por prédio, «propriedade imóvel rural ou urbana» (idem), pode-se considerar prazo como termo sinónimo.

1 Segundo o Dicionário Houaiss, enfiteuse é um termo jurídico que significa «direito real em contrato perpétuo, alienável e transmissível para os herdeiros, pelo qual o proprietário atribui a outrem o domínio útil de imóvel, contra o pagamento de uma pensão anual certa e invariável; aforamento».

Pergunta:

1. Na família da minha mulher, de origem alentejana (zona de Redondo, Évora) utiliza-se frequentemente o termo manual associado a uma qualquer actividade agrícola: «um manual de melões», por meloal, «um manual de feijão», etc.

Sabem-me dizer se é uso comum nesta região?

2. Também da mesma origem é o termo "zambareto" (ignoro se será esta a grafia correcta, pois não o encontro escrito) com o significado «frágil, periclitante»: «O escadote está zambareto.»

Sabem-me indicar se é esta a grafia e a sua origem?

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Os termos manual e zambareto não se encontram registados no Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões (DEPP), nem no Dicionário de Cândido de Figueiredo (CF). À primeira vista, o termo manual parece uma abreviação de «trabalho manual», para designar um tipo de trabalho agrícola, por oposição ao que se faz mecanicamente. Talvez o termo tenha acabado por designar a própria cultura e o terrreno em que ele é feita — mas são tudo conjecturas. Quanto a zambareto, existe zambo e zambeta (DEPP e NDLP), «que tem os pés tortos». Para já, sugiro que  zambareto se tenha formado a partir destas palavras, mas muito dependerá de outros dados de que não disponho neste momento.

Cf. As dez línguas de Portugal

Pergunta:

Nas frases «Um terramoto causou 3 mil mortos na Ásia, um número assustador» e «Houve um acidente de viação», a palavra «um» é um determinante artigo indefinido, ou um determinante numeral?

No caso de frase «Eu tenho dois rebuçados, mas tu só tens um», como classificar essa palavra?

Muito obrigada e parabéns pelo vosso site, que me parece ser de grande utilidade.

Resposta:

Em contextos que se reportam a acontecimentos, um tem normalmente valor de artigo indefinido, como é o caso das duas primeiras frases da consulente. Quando se faz uma enumeração, se contrastam quantificações ou se pressupõe uma série ou uma unidade de medida (por exemplo, as horas), como sucede na terceira frase, é porque se está diante de um numeral.

Convém, no entanto, acrescentar que a classificação de um como numeral não é impossível nas expressões «um terramoto» e «um acidente de viação», desde que devidamente contextualizado: «um terramoto causou vítimas na Ásia e dois semearam a devastação no Pacífico»; «houve um acidente aqui e dois lá mais adiante».

Pergunta:

Numa obra traduzida pode-se ler: «emoção provém do latim emovere, que significa "tirar ou afastar do movimento".» Em outra obra, de um autor português, lê-se: «emoção deriva das palavras latinas ex + movére, que significam "mover para fora"». E ainda numa outra obra, em inglês no original, pode ler-se: «emotion is derived from latim, e + movere. It originally meant to migrate or transfer from one place to another.» No dicionário de Cândido Figueiredo pode ler-se: «Acto de deslocar (...) do latim emotus
Gostaria de saber a razão de tal diversidade e qual a exacta etimologia da palavra emoção. Não interessa a sua conceptualização científica, na acepção da psicologia.

A talhe-de-foice seria interessante, também, saber as etimologias de: afecto, afectividade, significação, sentir, sensação.

Grato pela vossa atenção e serviço!

Resposta:

Se reparar bem, a diversidade que menciona é, no fundo, unidade, porque as palavras latinas mencionadas incluem os mesmos radicais latinos, os do verbo movēre. Emoção é adaptação do francês émotion, que parece ter sido criado como substantivo correspondente ao verbo émouvoir e ter tido por modelo o francês antigo motion. Esta palavra evoluiu do latim motĭo, motiōnis, «movimento, perturbação (de febre)», cujo radical é o mesmo de motum, uma das formas (supino) do verbo movēre.

Em relação aos restantes vocábulos, seguem-se as seguintes notas etimológicas, todas elas provenientes do Dicionário Houaiss:

Afecto: do substantivo latino affectus,us, «estado psíquico ou moral (bom ou mau), afeição, disposição de alma, estado físico, sentimento, vontade».

Afectividade: palavra derivada de afectivo (afectivo + -i- + -dade).

Significação: do latim significatĭo,ōnis, «acto de indicar, de assinalar; indicação, anúncio, sinal; marca de aprovação, sinal de assentimento, manifestação favorável; significação, sentido».

Sentir: verbo que evolui do verbo latino sentĭo,is,sensi,sensum,sentīre, «perceber pelos sentidos, sentir, ter sentimento, conhecer, experimentar uma sensação ou sentimento, fazer total uso dos sentidos e faculdades, estar alerta e consciente; tornar-se ou ser ciente de; ser afetado por, sofrer a influência de (força física etc.); padecer; experimentar; pensar, expressar uma crença, opinar; (diz-se de juiz ou jurado) dar um voto ou u...

Pergunta:

Sei que em algumas perguntas vocês falaram sobre o vocábulo mesmo. Se não for incômodo, poderiam de modo bem simples dizer por frases e explicações todas as possibilidades de classificação gramatical desse vocábulo?

Grato!

Resposta:

Consultámos F. V. P. da Fonseca, que explica que «mesmo pode ser pronome demonstrativo, substantivo masculino e advérbio de modo; entra ainda na locução conjuncional concessiva mesmo que (= ainda que).»

Seguem-se exemplos de cada classificação:

1. Pronome demonstrativo absoluto: «Ele é ainda o mesmo.»

2. Pronome demonstrativo adjunto (ou determinante): «Ele já não é a mesma pessoa.»

3. Substantivo: «Nos dias seguintes, sucedeu o mesmo [= coisa semelhante].»

4. Advérbio: «Mesmo [= até] o irmão não o apoiou»; «Está mesmo [= realmente] calor!»

Atenção, que o pronome demonstrativo absoluto e o substantivo se confundem, podendo dizer-se que «o mesmo», no sentido de «a mesma coisa», constitui uma substantivação. No Dicionário Houaiss, encontra-se uma classificação pormenorizada de mesmo.