Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Alegria é um substantivo primitivo, ou derivado?

Resposta:

A palavra alegria é um substantivo derivado de alegre mediante a junção do sufixo -ia. Existem substantivos formados de maneira semelhante, podendo ter como base de derivação um outro substantivo (abade > abadia, chefe > chefia) ou um adjectivo (maior > maioria, valente > valentia).

Pergunta:

É correcto escrever "retroagiotopónimo"?

O contexto: nota de rodapé para um artigo de revista.

O texto: «São Gião — Retroagiotopónimo de São Julião. O orago da paróquia de Cacia é São Julião, mártir da Igreja Católica, natural de Antioquia e marido de Santa Basilisa. O seu martírio ocorreu a 9 de Janeiro do ano de 309.»

Obrigado.

Resposta:

É possível formar o termo em questão, porque resulta da associação do prefixo retro- a hagiotopónimo, «nome de lugar com origem no nome de um santo». Como retro- se liga à palavra a que se associa sem hífen, obtém-se a forma retroagiotopónimo.

Pergunta:

Muito agradecia que me informassem sobre o significado dos seguintes termos, usados em linguagem médica:

co-morbilidade;

— multimorbosidade.

Os termos são geralmente usados para dizer que não houve um factor de morte que se pudesse isolar de um modo notório, havendo antes um acumular de factores que contribuíram para a morte de uma pessoa. A agravar as dúvidas, os termos parecem ser utilizados no mesmo sentido. Mas, nesse caso, por que termo optar, se é que uma das opções é legítima?

Obrigada.

Resposta:

Não encontro atestados os termos "co-morbilidade" e "multimorbosidade" nem nos dicionários gerais nem em dois dicionários médicos (I. Manuila et alii, Dicionário Médico, Lisboa, Climepsi Editores, 2003, e M. Freitas e Costa, Dicionário de Termos Médicos, Porto, Porto Editora, 2005). Apesar disso, se a intenção é veicular a noção de factores que se conjugam (isto é, que estão a par) numa morte, então as palavras co-morbilidade ou co-morbosidade afigurar-se-iam mais adequadas. No entanto, convém saber que o elemento de composição morbil- se reporta não às doenças em geral mas apenas a uma, o sarampo. Desta maneira, é co-morbosidade que se salienta como a forma mais adequada a veicular o sentido em questão. 

Pergunta:

Ciberdúvidas é a nossa bóia de salvação. Se os portugueses apresentam dúvidas em relação à sua própria língua, imaginem então o que se passa com uma pessoa de origem indiana (goesa) que frequentemente lê e ouve noticiários em inglês da BBC, fala português e concanim.

Obrigado pelo vosso apoio aos náufragos.

Primeira dúvida:

1 — «Da lagarta medonha transpôs à borboleta esbelta.»
2 — «Da lagarta medonha transpôs-se à borboleta esbelta.»
3 — «Da lagarta medonha transpôs para a borboleta esbelta.»

Qual destas frases está correctamente escrita? Com a frase pretende-se dizer que a lagarta medonha transformou-se (metamorfoseou-se) numa borboleta esbelta. Da lagarta medonha passou à borboleta esbelta.

Segunda dúvida:

Nos transportes públicos é frequente ler-se:

1 — «Em pé: 50 lugares.»
2 — «De pé: 50 lugares.»

Qual destas frases está correctamente escrita?

Resposta:

1. O verbo transpor é transitivo, isto é, emprega-se com um complemento directo («alguém transpõe alguma coisa»); além disso, pode seleccionar um complemento preposicional («alguém transpõe alguma coisa para algo») ou dois complementos preposicionais («alguém transpõe alguma coisa de algo para outra coisa»). Por conseguinte, nenhuma versão da frase está correcta; a forma mais adequada é sempre a que tem complemento directo (a entidade transposta), conforme (1):

(1) «Transpôs-se a lagarta medonha para a borboleta esbelta.»

Note-se, porém, que a frase (1) é estranha, porque o uso de transpor não é adequado neste contexto. Com efeito, este verbo não significa exactamente «transformar», sendo antes um sinónimo de transferir, sobretudo quando usado com complementos preposicionais. Deste modo, sugiro outra formulação:

(2) «Transpôs-se a lagarta da forma medonha para a forma esbelta de borboleta.»

2. Tanto faz usar «estar de pé» como «estar em pé». Por isso, as duas sequências indicadas na pergunta são aceitáveis.

Pergunta:

À pergunta de um consulente sobre uso do verbo ter em vez de haver (no sentido de «existir») respondeu-se que aquele «não é usado em Portugal com esse sentido». Apenas gostaria de referir que essa atribuição do sentido «existir» ao verbo ter verifica-se no falar da Madeira e o seu uso não é infrequente. Devo referir ainda que há vários fenómenos linguísticos tidos por muitos estudiosos (nacionais e internacionais) como típicos do português do Brasil, mas que existem nos falares da Madeira e dos Açores.

Poder-se-ão levantar aqui três questões: 1.ª Tratar-se-á de fenómenos tipicamente brasileiros assimilados posteriormente pelas nossas regiões autónomas (seria provável)? 2.ª Foram fenómenos levados por emigrantes madeirenses e, sobretudo, açorianos, pois sabemos que se fixaram em determinadas zonas do Brasil? 3.ª Virão todos de uma mesma forma portuguesa/continental disseminada simultaneamente por essas zonas durante a sua colonização? Em relação a este último ponto, lembro-me da típica simplificação dos pronomes átonos da terceira pessoa do complemento directo (substituição de -o, -a por ele, ela) que, independentemente de ser correcta ou não, é tida como típica do português do Brasil, podendo, no entanto, ser encontrada no português das nossas ilhas atlânticas e, curiosamente, em documentos portugueses de chancelaria régia medieval, onde já encontrei estruturas do tipo «mandei lavrar ele», referindo-se a um determinado documento.

É uma pena não haver um profundo estudo dos falares da Madeira e dos Açores, visto que nos poderíamos surpreender ou mesmo encontrar algumas janelas para formas pretéritas da nossa língua. Infelizmente, com a globalização do português a nível nacional...

Resposta:

Agradecemos a sua achega à discussão da história e da geografia da variação linguística do português. As questões que formula, deixo-as em aberto porque não conheço estudos nem tenho investigação feita que me permitam identificar os factores preponderantes na génese dos actuais falares da Madeira, dos Açores e do Brasil.

Não havendo, que eu saiba, um estudo exaustivo sobre os dialectos das ilhas, deve-se, mesmo assim, realçar alguns trabalhos. Refiram-se, por exemplo, os de João Saramago, investigador do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Acrescente-se também a descrição que, com base nesses estudos, se faz na Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003). Destaco, por último, um documento sobre a variação do português europeu, disponível no Instituto Camões.