Pergunta:
Faço ocasionalmente traduções e, recentemente, ao traduzir um texto do francês, surgiu-me uma dúvida sobre como escrever o termo "desemerdar". Não estou certo se se trata de um galicismo, a partir de démerder, ou de um termo próprio da nossa língua. Ao pronunciar a palavra, a maioria das pessoas a quem perguntei aponta para "desenmerdar", mas a mim soou-me estranha a junção do n com o m, e não me ocorreram outras palavras portuguesas em que uma sílaba com n final se ligasse a outra com m inicial. P. ex.: emoldurar/desemoldurar e não "enmoldurar"/"desenmoldurar", ao contrário de, por exemplo, encastrar/desencastrar — mas não estou certo se se trata de bons exemplos. Estarei certo? Assim, optei por "desemerdar". Curiosamente, na revisão do texto alteraram para "desenmerdar".
É também um problema de, em Portugal, haver uma timidez despropositada com o registo nos dicionários dos termos "populares" ou "palavrões", reflectida nos frequentes «vai-te lixar» utilizados incorrectamente em traduções de filmes.
Resposta:
A palavra não é infrequente nos registos mais baixos do português europeu, com o sentido de «safar-se», «desenrascar-se», mas não está ainda dicionarizada (não sei se por pudor, como se sugere no fim da pergunta).
Pode tratar-se de adaptação do francês démerder; contudo, é plausível que se tenha formado já em português com o prefixo des- e uma outra adaptação, a da do verbo emmerder, cuja vogal nasal (em-) poderia ter inspirado a pronúncia da variante portuguesa com o mesmo tipo de vogal. Daí o revisor ter escrito "desenmerdar".
Sobre desemerdar, não se me oferece dizer nada, porque gráfica, fonética e morfologicamente é possível como palavra portuguesa. Já a grafia correcta da variante com nasalidade levanta um problema interessante, uma vez que são escassíssimas as palavras que tenham vogal nasal antes de m; são exemplos, chãmente, cristãmente e comummente. É a forma de comummente que me parece oferecer um modelo para a grafia da variante com nasalidade: "desemmerdar". Contudo, olho para a forma e parece-me tão insólita, que receio pela sua aceitação entre os lexicógrafos.
Por último, deixo uma pequena referência ao verbo emerdar. Esta palavra está registada por Guilherme Augusto Simões no seu Dicionário das Expressões Populares Portuguesas, com o significado de «limpar criancinhas dos seus dejectos involuntários».