Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Há tantos anos que me enriqueço com o vosso site… chegou a minha vez de colocar uma questão.

(1) «Utilizo o dicionário, quando não compreendo o significado das palavras.»

(2) «Faço anotações, enquanto leio.»

(3) «Verifico a ortografia, quando tenho dúvidas.»

(4) «A compreensão torna-se mais fácil, quando o leitor coloca previamente perguntas sobre o tema do texto […].»

Bem sei que, de acordo com Celso Cunha e Lindley Cintra, devemos utilizar a vírgula «para separar as orações subordinadas adverbiais, principalmente quando antepostas à principal». No entanto, parece-me que as frases acima dispensam a vírgula (pior: parece-me um erro). Aliás, na Nova Gramática, um dos exemplos a que os autores recorrem para ilustrar as orações subordinadas adverbiais temporais é «Renovaram a fogueira até que chegasse a luz da manhã.»

Deve-se ou não se deve utilizar a vírgula nestes casos?

Agradeço antecipadamente a vossa resposta e dou-vos os parabéns pelo magnífico trabalho. O Ciberdúvidas é uma pérola.

Resposta:

Não é um erro colocar vírgula antes das subordinadas adverbiais temporais nas frases em apreço. Na minha opinião, o que Cunha e Cintra dizem (Breve Gramática do Português Contemporâneo, pág. 432) é mais uma recomendação do que um preceito sem excepções. Com efeito, quando estes gramáticos afirmam que a vírgula serve para «separar as orações subordinadas adverbiais, principalmente quando antepostas à principal», é curioso que empreguem o advérbio «principalmente», que sugere que há casos em que a vírgula é mais necessária do que noutros. E os autores admitem explicitamente que a vírgula é opcional não entre orações mas com adjuntos adverbiais de «pequeno corpo» (idem, pág. 431). Sendo assim, concluo que, por enquanto, não há uma norma clara que impeça ou imponha o uso de vírgula nas frases em causa.

Pergunta:

Agradecia que me elucidassem sobre se, na segunda das duas frases que a seguir transcrevo, é correcto fazer a ênclise no segmento «é que trata-se», pelo valor expletivo que este «que» tem na frase. «Mas talvez saibas (é da tua área, em sentido lato) porquê essa mistura de fiambre e presunto. É que trata-se do mesmo produto, só em duas modalidades: a cozida e a defumada.»

Resposta:

A expressão é que não se emprega apenas para realçar constituintes de frases interrogativas («Quem é que falou?») e declarativas («Ele é que falou»). Ocorre também em começo de frase como articulador com valor explicativo, remetendo para as frases anteriores, como nos exemplos seguintes:

(1) (depois de declarativa) «Não é possível continuar assim. É que já são erros a mais.»

(2) (depois de interrogativa directa) «Posso usar o teu telemóvel? É que perdi o meu.»

Não encontro atestado este uso de é que nem em dicionários nem em gramáticas, mas no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, identifico ocorrências dessa expressão em textos portugueses e brasileiros; p.ex:

(4) «Tudo fora do tempo também (..) não é bom. É que à altura de chover, costuma-se a dizer que: " a inverno inverna do Natal nunca faltou "; mas este ano faltou.»

(5) «Até o Missionário da Alta Cruz, que padecia de cataratas e era um campeão em mistérios, até esse acabava por se perder na oração, perguntando se a estátua não teria realmente vida . É que lhe descobria certas expressões, de trazer episódios sagrados para animar o dia-a-dia dos mortais.» (José Cardoso Pires, A República dos Corvos, 1999)

(6) «Não: foi o olhar, apenas o olhar seguro do dr. Fernandes, ao lembrar-lhe, assim abruptamente, que ele já fizera jus a um aumento de ordenado, a uma melhoria de situação.

Pergunta:

Se existe bifurcação, será que podemos utilizar "polifurcação"? Em caso negativo, qual a alternativa?

Grato pela ajuda.

Resposta:

Existe bifurcação, trifurcação e quadrifurcado, de que se pode deduzir quadrifurcação. Daqui se conclui que é possível criar um termo com um elemento latino designativo de número e outro, que significa "forca" e é correspondente ao radical furc-. Como bifurcação constitui uma palavra com prefixo e radical latinos, convém criar um neologismo que mantenha essa coerência etimológica. Assim, em vez de poli-, originário do grego, sugiro multi-, um prefixo também de origem latina mas com o mesmo significado, isto é, «muitos». Por conseguinte, em vez de "polifurcação", sugiro o neologismo "multifurcação", que não encontro dicionarizado.

Pergunta:

Tenho dúvidas na seguinte frase:

«É necessário aumentar ao máximo as receitas e reduzir ao máximo os custos.»

Está correcto? Consigo compreender melhor a expressão «aumentar ao máximo» (embora tenha dúvidas se é a maneira correcta de escrever), mas diz-se «reduzir ao máximo», ou «reduzir ao mínimo»?

Obrigado.

Resposta:

Diz-se «reduzir o máximo (possível) os custos», ou «reduzir ao mínimo os custos». O mesmo se aplica ao facto de ser necessário «aumentar o máximo (possível) as receitas», ou «aumentar ao máximo» as mesmas.

Ao dispor.

Pergunta:

Faço ocasionalmente traduções e, recentemente, ao traduzir um texto do francês, surgiu-me uma dúvida sobre como escrever o termo "desemerdar". Não estou certo se se trata de um galicismo, a partir de démerder, ou de um termo próprio da nossa língua. Ao pronunciar a palavra, a maioria das pessoas a quem perguntei aponta para "desenmerdar", mas a mim soou-me estranha a junção do n com o m, e não me ocorreram outras palavras portuguesas em que uma sílaba com n final se ligasse a outra com m inicial. P. ex.: emoldurar/desemoldurar e não "enmoldurar"/"desenmoldurar", ao contrário de, por exemplo, encastrar/desencastrar — mas não estou certo se se trata de bons exemplos. Estarei certo? Assim, optei por "desemerdar". Curiosamente, na revisão do texto alteraram para "desenmerdar".

É também um problema de, em Portugal, haver uma timidez despropositada com o registo nos dicionários dos termos "populares" ou "palavrões", reflectida nos frequentes «vai-te lixar» utilizados incorrectamente em traduções de filmes.

Resposta:

A palavra não é infrequente nos registos mais baixos do português europeu, com o sentido de «safar-se», «desenrascar-se», mas não está ainda dicionarizada (não sei se por pudor, como se sugere no fim da pergunta). 

Pode tratar-se de adaptação do francês démerder; contudo, é plausível que se tenha formado já em português com o prefixo des- e uma outra adaptação, a da do verbo emmerder, cuja vogal nasal (em-) poderia ter inspirado a pronúncia da variante portuguesa com o mesmo tipo de vogal. Daí o revisor ter escrito "desenmerdar".

Sobre desemerdar, não se me oferece dizer nada, porque gráfica, fonética e morfologicamente é possível como palavra portuguesa. Já a grafia correcta da variante com nasalidade levanta um problema interessante, uma vez que são escassíssimas as palavras que tenham vogal nasal antes de m; são exemplos, chãmente, cristãmente e comummente. É a forma de comummente que me parece oferecer um modelo para a grafia da variante com nasalidade: "desemmerdar". Contudo, olho para a forma e parece-me tão insólita, que receio pela sua aceitação entre os lexicógrafos.

Por último, deixo uma pequena referência ao verbo emerdar. Esta palavra está registada por Guilherme Augusto Simões no seu Dicionário das Expressões Populares Portuguesas, com o significado de «limpar criancinhas dos seus dejectos involuntários».