Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Faço ocasionalmente traduções e, recentemente, ao traduzir um texto do francês, surgiu-me uma dúvida sobre como escrever o termo "desemerdar". Não estou certo se se trata de um galicismo, a partir de démerder, ou de um termo próprio da nossa língua. Ao pronunciar a palavra, a maioria das pessoas a quem perguntei aponta para "desenmerdar", mas a mim soou-me estranha a junção do n com o m, e não me ocorreram outras palavras portuguesas em que uma sílaba com n final se ligasse a outra com m inicial. P. ex.: emoldurar/desemoldurar e não "enmoldurar"/"desenmoldurar", ao contrário de, por exemplo, encastrar/desencastrar — mas não estou certo se se trata de bons exemplos. Estarei certo? Assim, optei por "desemerdar". Curiosamente, na revisão do texto alteraram para "desenmerdar".

É também um problema de, em Portugal, haver uma timidez despropositada com o registo nos dicionários dos termos "populares" ou "palavrões", reflectida nos frequentes «vai-te lixar» utilizados incorrectamente em traduções de filmes.

Resposta:

A palavra não é infrequente nos registos mais baixos do português europeu, com o sentido de «safar-se», «desenrascar-se», mas não está ainda dicionarizada (não sei se por pudor, como se sugere no fim da pergunta). 

Pode tratar-se de adaptação do francês démerder; contudo, é plausível que se tenha formado já em português com o prefixo des- e uma outra adaptação, a da do verbo emmerder, cuja vogal nasal (em-) poderia ter inspirado a pronúncia da variante portuguesa com o mesmo tipo de vogal. Daí o revisor ter escrito "desenmerdar".

Sobre desemerdar, não se me oferece dizer nada, porque gráfica, fonética e morfologicamente é possível como palavra portuguesa. Já a grafia correcta da variante com nasalidade levanta um problema interessante, uma vez que são escassíssimas as palavras que tenham vogal nasal antes de m; são exemplos, chãmente, cristãmente e comummente. É a forma de comummente que me parece oferecer um modelo para a grafia da variante com nasalidade: "desemmerdar". Contudo, olho para a forma e parece-me tão insólita, que receio pela sua aceitação entre os lexicógrafos.

Por último, deixo uma pequena referência ao verbo emerdar. Esta palavra está registada por Guilherme Augusto Simões no seu Dicionário das Expressões Populares Portuguesas, com o significado de «limpar criancinhas dos seus dejectos involuntários».

Pergunta:

Sei que o verbo implicar, no sentido de «resultar em», é transitivo direto. Eu estava conversando com a minha namorada sobre isso, e surgiu uma dúvida: normalmente a regência de um substantivo acompanha a do verbo do qual derivou. Isso também serve para o conjunto verbo implicar/substantivo implicação? Gostaria de um exemplo que ilustrasse melhor a resposta (se possível).

Obrigado.

Resposta:

O que diz acontece geralmente com substantivos derivados de verbos que já tenham regência:

«Conversar com o primeiro-ministro» > «Conversa com o primeiro-ministro»

«Passar pelo Rio» > «Passagem pelo Rio»

Relativamente a implicar, trata-se de um verbo que não mostra aquilo que se chama tradicionalmente regência, isto é, não selecciona um complemento preposicional. Como o próprio consulente refere, implicar é um verbo transitivo directo, e substantivos derivados de tais verbos são seguidos de um complemento preposicional introduzido pela preposição de; este complemento corresponde ao complemento directo do verbo transitivo:

(1) «Esta decisão implica prejuízos.»

(2) «Esta decisão foi tomada com a implicação de prejuízos.»

Vemos que, em (1), o verbo significa «acarretar», e, em (2), o substantivo significa «acção de acarretar».

Pergunta:

Vejo, em alguns sítios de professores, exemplos de predicativo do objeto com os quais não concordo. Para haver predicativo do objeto, o verbo deve ser transobjetivo. Onde posso arrumar uma lista desses verbos?

Por exemplo, «Os policiais pediam calma absoluta»: «absoluta» foi caracterizado como predicativo do objeto direto, quando entendo que seja parte integrante do objeto direto, adjunto adnominal, visto não ser relacionado a esse pelo verbo.

Quando jovem, um professor me ensinou um macete, substituir o objeto por um pronome oblíquo e verifcar se resta a qualidade. Nessa frase, creio que seria «Os policiais pediam-na» e não «Os policiais pediam-na absoluta». Já na oração «Julguei a paz absoluta» («julguei» é transobjetivo) ficaria «Julguei-a absoluta». Estou correto, ou realmente absoluta é predicativo do objeto no primeiro exemplo?

Resposta:

Para obter uma lista de verbos transobjectivos, terá de a extrair dos vários dicionários de verbos  publicados no Brasil e em Portugal; sobre este assunto, pode, por exemplo, consultar a resposta Sobre dicionários de verbos.

Em relação ao que diz, tem razão. Na frase em causa, o adjectivo absoluta é atributo (terminologia portuguesa) ou adjunto adnominal (terminologia brasileira), e não predicativo do objecto directo.

Refira-se que por verbo transobjectivo se entende um «[...] verbo que requer um complemento predicativo referente ao seu objeto» (Dicionário Houaiss). Não se trata, contudo, de termo incluído na Nomenclatura Gramatical Brasileira.

Pergunta:

A expressão «uma vez sem exemplo» desperta-me algumas dúvidas.

Antes de mais, relativamente à sua correcção: terá de facto o significado «excepcionalmente» que lhe é atribuído na linguagem quotidiana?

Em caso afirmativo, gostaria de saber como se chegou a tal significado. Será que se abreviou uma expressão mais completa como «uma vez sem servir de exemplo» ou outra semelhante?

Desde já obrigada e parabéns pelo excelente trabalho.

Resposta:

Já aqui se disse que nem sempre é possível determinar a origem histórica das expressões idiomáticas. É o caso.

Note, porém, que a expressão «uma vez sem exemplo», que realmente significa «excepcionalmente», é perfeitamente regular no que se refere à elipse do verbo, à semelhança de «um bife sem batatas fritas», que pode ser parafraseado por «um bife sem ter batatas fritas» ou «um bife sem vir acompanhado de batatas fritas».

Pergunta:

Dou aulas de Português e surgiu uma dúvida aos alunos: qual a diferença entre polissemia e campo semântico? Eu e os meus colegas chegámos à conclusão de que, no campo semântico, o significado não é definitivo, o que não acontece na polissemia. Mas os manuais e as gramáticas tratam o campo semântico, o campo lexical e a polissemia do mesmo modo, a nível de exemplos e não explicam com clareza a sua diferença.

Resposta:

Comecemos por campo semântico. Trata-se de um termo ambíguo usado em linguística, porque pode significar duas realidades diferentes:

a) o conjunto de palavras que têm em comum uma área conceptual: livro, revista, jornal, boletim constituem o campo semântico das publicações;

b) o conjunto das acepções de uma palavra, sobretudo na obra de investigação do linguista francês Bernard Pottier: a palavra livro define-se como objecto normalmente de papel, constituído por uma capa e folhas; um texto ou conjunto de textos que se encontram escritos nesse objecto, etc.

É na definição b) que campo semântico se pode confundir com polissemia, definindo-se esta como «multiplicidade de sentidos de uma palavra ou locução (p. ex., prato 'vasilha', 'comida', 'iguaria', 'receptáculo de balança', 'instrumento musical' etc.; pé-de-moleque 'doce', 'tipo de calçamento')» (Dicionário Houaiss). Note-se que campo lexical costuma designar um conceito afim de campo semântico, quando se discute a definição a). No entanto, campo lexical pode também ser o mesmo que campo semântico em b) (idem).