Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se o vocábulo "terem" no sentido de «conjunto de utensílios próprios para certo serviço» leva acento no singular ou no plural ("terens").

Resposta:

A palavra em questão tem acento na última sílaba: terém.

Segundo o Dicionário Houaiss, terém é um termo típico do nordeste do Brasil que se usa para designar «utensílios e móveis domésticos; trastes». De acordo com a mesma fonte, terém vem de trem, palavra que também se aplica a um conjunto de coisas. De trem a terém, ocorreu um fenómeno fonético de inserção (epêntese) da vogal e entre o t e o r.

Pergunta:

Sobre a forma reflectir, grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, o Dicionário de Verbos Portugueses da Plátano Editora, na sua edição de março de 1993, regista, na pág. 109, a seguinte nota:

«Verbos terminados em -ectir: mudam o e do radical em i na 1.ª pess. sing. do presente do indicativo, em todas as pessoas do presente do conjuntivo (subjuntivo) e nas pessoas derivadas deste tempo no imperativo. O c do radical desaparece nestas formas verbais.»

Não encontrei esta regra sobre a queda do c do radical em mais lado nenhum.

No Prontuário da Língua Portuguesa da Editorial O Século (6.ª edição, abril 1975), registam: reflectir – reflicto, reflecte, reflectimos; reflicta, reflictamos, etc.

Na versão do Dicionário Priberam conforme a norma de 1945, o verbo também aparece ortografado com o c do radical.

Na rubrica da SICNós por cá”, inserta no Jornal da Noite de domingo, dia 2.10.2005, a apresentadora mostrava um cartaz, onde se lia a palavra reflita e afirmava que a autarquia devia mandar emendar o erro, pois o certo seria reflicta.

A minha questão é, pois, a seguinte: a referida nota do Dicionário de Verbos Portugueses da Plátano Editora estará correta e, cumulativamente, antes do Acordo Ortográfico de 1990 grafava-se este c do radical em toda a conjugação do verbo refletir

Resposta:

Em 1993, a publicação da Plátano Editora não apresentava as formas corretas em Portugal, mesmo no quadro do Acordo Ortográfico de 1945.

Antes do Acordo Ortográfico de 1990, o verbo em questão escrevia-se reflectir e mantinha o c em todo o paradigma, mesmo depois de i.

Contudo, antes da vigência do Acordo Ortográfico de 1945, havia o preceito de se suprimir esse c depois de i, conforme se lê no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (p. XL), que a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) publicou em 1940:

«b) os grupos cç, ct, , pt, e ainda outros [...] perdem em muitos casos a primeira letra: condução, produção, satisfação (cç – ç); aflito, autor, praticar, produto, reflito (apesar de reflectir), tratar (ct – t); Assunção, presunção (pç - ç); assunto, presuntivo, pronto (pt - t) [...].»

Este preceito é mais tarde alterado pelas Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945, em cuja Base VI se dispõe o seguinte (sublinham-se as formas do verbo em questão):

«4.º [O c gutural das sequências interiores cc (segundo c sibilante), e ct, e o p das sequências interiores pc (e c sibilante), e pt] conservam-se quando, sendo embora mudos, ocorrem em formas que devem harmonizar-se graficamente com formas afins em que um e ou um p se mantêm[...] ou em que essas consoantes estão contidas, respecti...

Pergunta:

Qual será a forma correta: «método D'Hondt» ou «método de Hondt»?

Grato, desde já, pela resposta e pela existência do Ciberdúvidas.

Resposta:

As formas corretas são «método de D'Hondt» e «método D'Hondt».

O nome próprio D'Hondt é apelido dos territórios de língua neerlandesa. Trata-se, ao que parece1, de apelido com origem na expressão de hond, «o cão», em neerlandês, e é especialmente frequente na região belga da Flandres oriental.

Como a forma neerlandesa d' nada tem que ver com formas preposicionais românicas – francês de e português de –, faz ela parte da configuração do apelido e mantém-se quando passa ao português. Daí que, em referência ao método proporcional aplicado na conversão de votos em atos eleitorais, os usos mais adequados sejam os que mantêm o elemento d', antecedido ou não da preposição portuguesa de: «método de D'Hondt» e «método D'Hondt».2

Sendo assim, a expressão «método de Hondt» (cf. página da Comissão Nacional de Eleições, consultada em 03/11/2022) não se afigura correta, porque  a forma d' (ou de) não é equivalente nem ao francês de nem ao português de.

Acrescente-se que D'Hondt é o apelido de Victor D'Hondt (1841-1901), advogado, matemático e homem de negócios de nacionalidade belga. Foi o criador de um modelo matemático que permite converter os votos em números de deputados, nos atos eleitorais dos sistemas parlamentares de representação proporcional (cf. "O que é o método de Hondt?", Observador, consultado em 04/11/2022).

 

1 Foram os...

Pergunta:

O nome da minha terra, Riachos, parece ter origem no nome ou alcunha de um homem, «O Riacho», que surge já num documento de 1502. A partir de 1560 aparecem os primeiros registos referentes às famílias de «Afonso Fernandes Riacho» e «Simão Fernandes Riacho». A partir de 1622 aparece a referência aos «Casais do Riacho» e a partir daí o lugar passa a ser designado por Casais dos Riachos ou simplesmente Riachos (em 1656, um casamento na ermida de Santo António «sita nos Casais dos Riachos»).

Riachos, como localidade, teve origem na aglutinação de vários casais, cujos nomes ainda existem, referindo ruas ou zonas da terra, como Casal das Lobas, Casais Novos, Casal da Raposa, etc.

As pessoas em Riachos sempre disseram «os Riachos» e «nos Riachos», e os mais velhos diziam mesmo «o Riacho» e «no Riacho». Nos nossos dias ainda há quem diga, quando se desloca de uma rua longe do centro da terra, para o largo, que vai «ao Riacho», ou seja, que vai ao largo da terra, ao centro. Mas hoje há quem defenda que o mais correto é dizer-se que se vive «em Riachos», e não «nos Riachos», que se é «de Riachos» e não «dos Riachos». Eu própria autocorrigi-me por volta dos meus 18 anos, pensando que dizia mal, tal como a minha família, que era «dos Riachos».

A Câmara Municipal resolveu a questão há anos atrás, normalizando tudo, ficando assim: «Freguesia de Riachos», «Freguesia de Meia Via», «Freguesia de Pintainhos», «Freguesia de Lapas», «de Brogueira», «de Mata», «de Ribeira Ruiva», etc. Há pessoas que continuam a usar o artigo, outras a contrariar isso, e a polémica está instalada, com pessoas a chamar ignorantes no Facebook aos que continuam a referir-se à terra tal como aprenderam no seio das suas famílias.

Agradeço por isso o vosso esclarecimento, pedindo desculpa pelo texto longo, mas que julguei útil.

Resposta:

O caso em questão não parece justificar tanta crispação com os usos «nos Riachos» e «em Riachos».

As fontes consultadas não permitem confirmar que o topónimo tenha origem num nome de pessoa (antropónimo)1. Mas, se assim é, não admira que o topónimo tenha começado por se usar com artigo definido: «o Riacho», «os Riachos». Na verdade, mesmo que o topónimo tenha origem no nome comum comum – riacho, «pequeno rio, ribeiro» –, espera-se também a associação do artigo definido.

Acontece, porém, que se observa a tendência para omitir o artigo definido em contextos formais, o que explica que se diga «de Riachos», quando se fala, por exemplo, da freguesia: «Freguesia de Riachos».

 

1 Consultaram-se o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, bem como a Revista Lusitana.

Pergunta:

Alguém me pode esclarecer porque é que dizemos judaísmo e não "judiaismo"? O feminino de judeu é judia, e se estamos a falar de uma religião, e sendo religião do género feminino, não deveria ser "judiaismo"?

A pergunta poderá ser demasiado básica, no entanto, se alguém puder esclarecer, agradeço.

Resposta:

O que observa o consulente pode fazer algum sentido, mas acontece que tem de se dar atenção à história da palavra, porque judaísmo não é palavra formada exclusivamente em português.

Acontece que judaísmo não é palavra derivada diretamente nem de judeu nem de judia. Com efeito, é preciso ter em conta que o termo em apreço é a adaptação do uso internacional tardio da forma latina judaismus, i, no sentido de «judaísmo, religião judaica», do grego ioudaïsmós, ou, «instituição judaica, judaísmo» (Dicionário Houaiss). O termo aparece em português em meados do século XVI com as seguintes formas. «1553 judaismo, 1553 judaysmo, 1553 judeismo» (ibidem).

Acrescente-se que em grego ioudaîos, a, on significa «relativo à tribo de Judá; judeu, partidário do judaísmo» (adaptação do hebraico yehudi, «habitantes do reino de Judá» (ibidem). Esta é a forma que faculta a base da formação de ioudaïsmós, ou, termo igualmente grego que, transposto ao latim como judaismus, i, vai depois dar origem às formas que o termo tem nas línguas europeias mais próximas ou afins do português: judaísmo (espanhol); judaïsme (francês); Judaism (inglês).