Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Perguntava-vos se o nome inspiração suporta a preposição para: «Ela foi a inspiração para os seus poemas.»

Obrigado.

Resposta:

O uso da preposição para associada a inspiração é correto e está abonado em diferentes dicionários, por exemplo, no Dicionário Prático de Regência Nominal, de Celso Pedro Luft.

«INSPIRAÇÃO s.f. para: Inspiração [impulso para (fazer) algo]. Inspiração para (compor) uma música. “Sinto-me sem inspiração para terminar este poema” (Fernandes).»

Pergunta:

Na palavra continente a vogal o pronuncia-se "o" em vez de "u", apesar de estar numa sílaba átona.

Qual é a explicação?

Resposta:

Na pronúncia padrão do português de Portugal, a redução das vogais átonas é neutralizada pela nasalização, ou seja, a regra de recuo e elevação do vocalismo átono só se aplica às vogais orais, sem abranger as vogais nasais1.

Note-se, porém, que, regionalmente, sobretudo, nos dialetos portugueses setentrionais, muitos falantes generalizam a regra do vocalismo átono às vogais nasais, razão por que é de prever que, em relação à palavra continente, se possa registar a pronúncia "cuntinente"2, em lugar de "continente".

 

1 Na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 3317), lê-se: «[...] [A] redução vocálica atua depois da nasalização e não se aplica a um núcleo (rima) silábico complexificado pela nasalidade [...].»

2 É o que se infere da seguinte observação incluída na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, p. 3318): «Em alguns dialetos nortenhos, a redução vocálica aplica-se às vogais nasais [ẽ] e [õ], que são pronunciadas, respetivamente, como [ɨ̃] e [ũ], como em m[ɨ̃]tir mentir, s[ɨ̃]tir sentir e c[ũ]tinuar continuar, ap[ũ]tar apontar ou em c[ũ] com

Pergunta:

Na palavra reaparecimento, como será a análise morfológica?

Prefixo "re-", radical "aparec” sufixo “i + mento”? Isto porque em reaparece não existe “i” e interpreto que o “i” não pertence ao radical.

Se me puderem esclarecer, agradeço.

Resposta:

Os nomes que resultam da sufixação de -mento derivam do tema do particípio passado1, e não do tema do presente.

Sendo assim, dado que os particípios passados dos verbos da 2.ª conjugação apresentam i no tema – aparecido –, o nome derivado por sufixação também exibe i: aparecimento.

A palavra reaparecimento, que é um derivado prefixal de aparecimento, analisa-se, portanto, assim:

re [prefixo] [+ apareci [tema do particípio passado aparecido] + -mento [sufixo]]

 

1 Na Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2.ª edição 2016), de M.ª Graça Rio-Torto et al., lê-se o seguinte (p. 181): «A forma da base verbal a que -ment(o) se junta é a do tema do particípio passado: aparecimento, desenvolvimento apresentam o tema do particípio (-i-), observável em aparecido e em desenvolvido.»

Pergunta:

Li a seguinte frase no título de um artigo e a mesma expressão ocorre várias vezes no texto do mesmo: «Empresas em contracorrente».

É correto ou teria de ser "a contracorrente"? Ou é indiferente? Se este for o caso, algumas delas é mais usual?

Obrigado.

Resposta:

Tal como se diz e escreve «em contramão» («em sentido contrário à direção normal do trânsito automóvel»), integrando a preposição em, o uso mais corrente e indiscutivelmente correto da locução em apreço é também com em: «em contracorrente», conforme atesta o dicionário da Priberam, que define a expressão como o mesmo que «de maneira contrária à corrente, nomeadamente a uma corrente de opinião». A forma registada no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, no artigo da entrada contracorrente, igualmente inclui a preposição em: «em contracorrente» («em sentido contrário»)1.

Há que observar, porém, que não se afigura impossível a preposição a, como, aliás, se aceita no dicionário da Priberam: «"a contracorrente", o mesmo que "em contracorrente"». Além disso, a preposição a encontra legitimidade em exemplos semanticamente afins como «a contragosto» («contrariado, constrangido»; cf. António Nogueira Santos, Português – Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas, Edições João Sá da Costa, 1990) e «a contrapelo», literalmente «em sentido contrário ao do pelo» e figurativamente «sentido inverso ao normal» (ibidem)2.

Além disso, não é impossível que a palavra contracorrente apareça acompanhada de artigo definido e precedida ou de em ou de a:

(1) «cercar com uma rede os peixes à contracorrente» (

Pergunta:

Tenho percebido em textos mais antigos que se fazia uso do particípio dado (independente da partícula que) para estabelecer uma relação de condicional, ou seja, encabeçando uma oração subordinada condicional como, por exemplo , no período abaixo (cujo documento esté em " Uma notícia sobre a famosa revolta do 'Quebra Panelas' em Fordlândia – 1930", Blog do Padre Sidney Canto, 01/08/2017):

«(...) que podiam, dado houvesse justo motivo, se rebelar sem usar do meio extremo de depredar(...)

Assim, gostaria de um parecer dos meus amigos especialistas. É lícita tal construção? Há abono de escritores consagrados?

Resposta:

Nas fontes consultadas, não foi possível encontrar comentário que incidisse diretamente sobre o uso de dado com conjuntivo. Mas não se trata de uma construção incorreta, pelo contrário.

Com efeito, é possível abonar tal uso com uma atestação no epistolário de Machado de Assis:

(1) «Agradeço-lhas, mas não valia a pena, já porque a divulgação não viria de sua parte, já porque, dado viesse, seria ainda um sinal da afeição que me tem. » (Corpus do Português)

Em (1), à construção parece associar-se um valor condicional a um valor concessivo. Estes valores encontram eco no registo que no Aulete Digital se faz da locução conjuntiva dado que, a qual além de introduzir orações causais com o verbo no indicativo, aparece também como expressão equivalente à conjunção condicional se e à conjunção concessiva embora. Sobre a omissão de que e o emprego conjuncional de dado não se obteve informação, mas, a respeito de posto que, está identificada a possibilidade de a locução se reduzir a posto, com valor concessivo e seleção do verbo no conjuntivo:

(2) «Calúnias vertidas sobre as cinzas de indivíduos que não se sabem defender, mas que as academias de hoje, posto valham menos do que eles, não devem, nem querem sem pleno desagravo» (Alexandre Herculano, Opúsculos I, 226, citado por A. Epifânio da Silva Dias, Sintaxe Histórica Portuguesa, Livraria Clássica editora, 1933, p. 281).

 

1 Cons...