Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho percebido em textos mais antigos que se fazia uso do particípio dado (independente da partícula que) para estabelecer uma relação de condicional, ou seja, encabeçando uma oração subordinada condicional como, por exemplo , no período abaixo (cujo documento esté em " Uma notícia sobre a famosa revolta do 'Quebra Panelas' em Fordlândia – 1930", Blog do Padre Sidney Canto, 01/08/2017):

«(...) que podiam, dado houvesse justo motivo, se rebelar sem usar do meio extremo de depredar(...)

Assim, gostaria de um parecer dos meus amigos especialistas. É lícita tal construção? Há abono de escritores consagrados?

Resposta:

Nas fontes consultadas, não foi possível encontrar comentário que incidisse diretamente sobre o uso de dado com conjuntivo. Mas não se trata de uma construção incorreta, pelo contrário.

Com efeito, é possível abonar tal uso com uma atestação no epistolário de Machado de Assis:

(1) «Agradeço-lhas, mas não valia a pena, já porque a divulgação não viria de sua parte, já porque, dado viesse, seria ainda um sinal da afeição que me tem. » (Corpus do Português)

Em (1), à construção parece associar-se um valor condicional a um valor concessivo. Estes valores encontram eco no registo que no Aulete Digital se faz da locução conjuntiva dado que, a qual além de introduzir orações causais com o verbo no indicativo, aparece também como expressão equivalente à conjunção condicional se e à conjunção concessiva embora. Sobre a omissão de que e o emprego conjuncional de dado não se obteve informação, mas, a respeito de posto que, está identificada a possibilidade de a locução se reduzir a posto, com valor concessivo e seleção do verbo no conjuntivo:

(2) «Calúnias vertidas sobre as cinzas de indivíduos que não se sabem defender, mas que as academias de hoje, posto valham menos do que eles, não devem, nem querem sem pleno desagravo» (Alexandre Herculano, Opúsculos I, 226, citado por A. Epifânio da Silva Dias, Sintaxe Histórica Portuguesa, Livraria Clássica editora, 1933, p. 281).

 

1 Cons...

Pergunta:

Em se tratando de uma atividade de monitoria acadêmica ou profissional (entendida como uma atividade de formação complementar), temos um monitor de um lado. Só que em relação ao aluno ou profissional que se submete à monitoria, devemos chamá-lo de “monitorado” ou “monitorando”? Muito obrigado.

Resposta:

A palavra monitorando não tem registo dicionarístico, mas está bem formada e pode ter uso legítimo.

Do ponto de vista da associação de significados dos seus constituintes (composicionalidade), é palavra coerente, formada por monitora- (tema verbal de monitorar1, «acompanhar e avaliar») e o sufixo -ndo, «(pessoa) que deve ser...», remetendo para a noção do tema verbal (ver -ndo no Dicionário Houaiss).

Atendendo aos casos de tutorando, que significa «indivíduo que tem outro por tutor» (cf. Infopédia) ), de educando, «pessoa que está a receber educação numa instituição de ensino» (cf. dicionário da Priberam), ou de instruendo, «pessoa que está a ser instruída» (cf. Dicionário Michaelis), é, portanto, possível formar monitorando, no sentido de «pessoa acompanhada e avaliada por um monitor ou que recebe monitoria ou monitorização».

 

1 Ou, mais corrente em Portugal, monitorizar.

Pergunta:

Estive agora a pesquisar a palavra fecho no Ciberdúvidas e encontrei a pergunta sobre fecho e fechamento. A resposta alude a instituições, enquanto eu gostaria de saber para todos os casos.

Por exemplo, posso dizer «fecho de feridas» (em inglês, "wound closure", cicatrização é para "wound healing"), «fecho de recipientes» ("container closure", referindo-se ao sistema de fecho do recipiente)?

Muito obrigada.

Resposta:

Nas fontes consultadas1, não há comentário normativo sobre tais usos no registo corrente, os quais parecem não depender de critérios científicos.

O mais que se consegue aqui apurar é que tanto fecho como fechamento se associam a cicatriz, sem que, do ponto de vista do funcionamento gramatical, se detete erro, como ilustram os exemplos de linguagem científica a seguir recolhidos com auxílio do Google Académico:

(1) «falha no fecho da cicatriz umbilical» (Rute Noiva, António Menezes e Conceição Peleteiro, "Caracterizacao das malformacões observadas em embriões de galinha após manipulacão das condições de incubação", VI Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias: Ciências Veterinárias: Praxis e Futuro, abril de 2014)

(2) «no ensaio de fechamento de cicatriz» (Louise Camargo de Mendonça, "Avaliação da expressão de genes envolvidos no processo tumoral e da migração celular em linhagens de câncer gástrico humano expostas a novos quimioterápicos", XXV Salão de Iniciação Científica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013)  )

Em (1), é legítima a ocorrência de fecho com o significado de «remate» (cf. dicionário da Priberam e dicionário Infopédi...

Pergunta:

Com frequência tenho escutado em português do Brasil som do u após o q em palavras que em português de Portugal não o seriam, exemplos disso são líquido – liqüido, liquidificador – liqüidificador, liquidação– liqüidação, bem como em outras palavras.

Inicialmente pensei tratar-se de um erro mas após breve pesquisa soube que se trata de um termo antigo que o acordo veio unificar seguindo a versão, do português de Portugal.

Ainda mais estranho é visto que a versão do português do Brasil seguia o passado etimológico da palavra em latim bem como é semelhante a outras línguas com origem latina ou influência do latim.

Questiono a que se deve esta diferença e segundo a lógica e a etimologia qual seria a opção mais correta de se usar?

Resposta:

 As duas pronúncias estão corretas e ambas se devem a critérios históricos, os quais, no entanto, são divergentes.

Apesar de o Acordo de 1990 suprimir o uso do trema, a verdade é que as palavras em questão podem pronunciar-se no Brasil com u audível1. A razão para a conservação do u etimológico articulado deve-se a opções normativas do Brasil, país que tem, por exemplo, a Academia Brasileira de Letras, instituição que, embora contestada, mantém influência nos usos cultos.

A conservação do u na sequência qu acontece com latinismos não patrimoniais, isto é, que só foram introduzidos no idioma depois do Renascimento ou muito mais tarde. Há, portanto, situações em que a norma no Brasil tem uma interpretação rigorosa, dando preferência ao latim clássico ou até a formas latinas arcaicas – por exemplo, quanto à grafia de úmido, que em Portugal se escreve húmido.

Em Portugal, a sequência qui pronuncia-se geralmente /ki/. Trata-se de pronúncia correta, mais recente, é certo, mas de acordo com tendências que já vêm do período galego-português. Esta opção, sancionada pela norma, não impede que esta recomende a articulação /kwi/ para casos como exequível ou a aceite facultativamente em quinquagenário.

 

1 Ao que parece, raramente no caso de líquido e liquidação, mas de forma mais corrente quando se trata de liquidação.

Pergunta:

Gostaria de saber o significado das palavras seguintes numa das obras de Guimalhães Rosa, que me custam bastante para encontrar alguma solução e que parecem regionalismo ou da invenção do autor pela minha dedução:

a. sessépe, serelé:

«O coelhinho tinha toca na borda-da-mata, saía só no escurecer, queria comer, queria brincar, sessépe, serelé, coelhinho da silva...» (as duas palavras indicam um tipo de coelhos? ou certo jogo? ou como?)

b. arredobrar-se

«o esperto do gato repulava em qualquer parte, subia escarreirado no esteio, mas braviado também, gadanhava se arredobrando e repufando, a raiva dele punha um atraso nos cachorros." (só posso reconhecer que o verbo indica uma acção, mas não sei qual.)

Obrigada.

Resposta:

As palavras em dúvida figuram na novela Campo Geral, de João Guimarães Rosa.

Sobre a forma "sessépe" – mais canonicamente escrita sessepe1 –, não foi possível achar informação. Quanto a "serelé", para a elaboração desta reposta, também não se encontrou temos informação concreta, mas é possível que seja variante de serelepe, que significa «irrequieto, esperto» (cf. Dicionário de Caldas Aulete). É bem possível que o par "sessépe, serelé" tenham valor expressivo, como que imitativo (onomatopaico) do ruído provocado pelo movimento, no meio de vegetação rasteira, da personagem focada na frase de Guimarães Rosa.

Finalmente, acerca de arredobrando, gerúndio de arredobrar, embora este verbo não tenha registo em dicionário, o contexto permite depreender que é sinónimo de requebrar-se, ou seja , «mover o corpo com trejeitos» (ibidem).

 

1 Em português, a maioria das palavras é grave, ou seja, recebe acento tónico na penúltima sílaba. De acordo com os princípios ortográficos que têm vigorado desde a Reforma Ortográfica de 1911, as palavras graves – capa, novelo, pasmo, vento, malta etc. –não se escrevem com acento gráfico, a não ser em certos contextos: quando a palavra tem ditongo final (órfão,