Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «O sôfrego do Miguel comeu tudo», a palavra sôfrego é um nome, ou um adjectivo?

Resposta:

A palavra sôfrego é normalmente um adjectivo. Contudo, na sequência em apreço, sôfrego comporta-se como um substantivo, uma vez que é núcleo de uma expressão que deve ser classificada como nominal: «o sôfrego». Trata-se de uma construção enfática ou, como diz Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, págs. 458/459), «carregada de afetividade», em que «[...] o primitivo adjunto passa formalmente a núcleo, e o antigo núcleo passa a adjunto, mediante a presença da preposição de».1

Bechara acrescenta ser possível relacionar esta construção a frases exclamativas sem verbo, do tipo «pobre de mim!». Observa ainda que a carga afectiva desta construção tanto pode ser positiva como negativa (idem): «o bom do pároco» (carga positiva); «o burro do cliente» (carga negativa).

1 Adjunto é um termo gramatical que se usa mais no Brasil. Em Portugal, usa-se o termo atributo ou modificador em lugar de adjunto.

Pergunta:

Sempre tive imensa curiosidade em saber ao certo o porquê das letras consoantes dobradas na antiga ortografia da língua portuguesa, mas nunca obtive uma explicação completa. Parece-me que se trata de uma herança que recebemos do latim, o qual, por sua vez, teria recebido tal uso da língua grega, sendo, aliás, esta prática possivelmente uma invenção dos gregos.

Percebo que, muito freqüentemente, nas palavras do nosso idioma na grafia antiga, as consoantes dobradas vinham imediatamente após a sílaba tônica, talvez para indicar a tonicidade da mesma. Se é verdade, então nesse caso os caracteres repetidos faziam as vezes dos acentos gráficos. Observo que as letras mais repetidas eram "l", "n" e "t", mas também "b", "c", "f", "m", "p", etc. No Brasil, ainda hoje, muitos apelidos portugueses conservam a grafia antiga, sendo escritos Mello, Senna, Mattos, etc. Já as palavras comuns ajustaram-se todas à nova ortografia.

Casos existiam, no entanto, em que o caractere repetido antecedia a sílaba tônica da palavra ou fazia parte dela (Affonseca, commercio).

Esclareço que o caso acima mencionado não é o dos dígrafos (rr, ss) nem daqueles em que a letra dobrada é efetivamente pronunciada duas vezes, pois representa dois fonemas iguais repetidos (faccioso, ficcional, friccionar, etc.), mas sim daqueles casos em que a letra dobrada se lê apenas uma vez. Por exemplo, naqueles tempos, escrevia-se "sacco", mas lia-se "saco", sendo, portanto, o "c" pronunciado uma só vez, embora estivesse escrito duas.

Vós, cultos e preparados consultores do Ciberdúvidas, poderíeis dar-me uma orientação segura sobre este assunto aqui ventilado?

Muito obrigado.

Resposta:

O que o consulente diz no primeiro parágrafo requer alguns comentários:

1. Uma consoante dobrada (dupla, geminada, longa) é uma consoante dupla; este tipo de consoante existe, por exemplo, numa língua bem próxima do português, o italiano, conhecida pelas suas doppie (ou seja, consoantes duplas) bem articuladas: notte («noite»), cammino («caminho», não confundir com camino, «chaminé»; cf. Teyssier 2004: 45).

Em latim pronunciavam-se consoantes geminadas, que tinham representação gráfica: p. ex., sĭccum, «seco». Na lenta evolução do latim vulgar ao galego e ao português medievais, tais consoantes duplas tornaram-se sons simples: sĭccum > seco; mĭttit > mete (meter), gallina > galinha; pannum > pano (ver Williams 2001: 84-86).  

2. As consoantes duplas do latim não são geralmente uma herança grega, porque o grego clássico não as tinha verdadeiramente. As duplas do latim são antes um resultado específico da evolução do proto-itálico, pertencente, como o grego, à família de línguas indo-europeias.

3. As consoantes duplas do latim simplificaram-se na evolução para o português. Se os documentos medievais galegos e portugueses apresentam consoantes duplas, tal se deve principalmente ao peso da tradição gráfica latina. Esta influência, muitas vezes exercida por intermédio da Igreja, foi mais tarde reforçada por uma tendência claramente manifesta em finais do século XVI: a de, em contraste com a orientação mais fonética da ortografia castelhana, assinalar a história das palavras portu...

Pergunta:

Em 2005, fiz uma consulta ao Ciberdúvidas a respeito de alguns termos de Geografia, estando entre eles a palavra "salar". A resposta veio, a 20 de maio daquele ano, sendo da autoria do ilustre e douto consultor Carlos Rocha, o qual, entretanto, não disse nada acerca de "salar".

Ontem, sexta-feira, 24 de outubro de 2008, a maior rede de televisão do Brasil apresentou, em um programa televisivo tradicional de reportagens especiais que vai ao ar sempre às sextas-feiras à noite, uma bela reportagem sobre a Bolívia, país pobre sul-americano, mas rico em termos de tradições, cultura e "salares". Estes últimos são imensos depósitos naturais de sal a céu aberto, verdadeiros desertos que, em vez de serem constituídos de areia, são constituídos de sal. Eram, em priscas eras, lagos salgados que secaram.

Isto acendeu de novo em mim a curiosidade a respeito da palavra "salar", a qual não encontrei em nenhum dicionário da língua portuguesa que consultei. O que gostaria de saber é o seguinte:

a) a sua etimologia;

b) se a mesma pertence ou não à língua portuguesa;

c) o termo português que lhe corresponde, caso "salar" não seja do nosso idioma;

d) se foi formada à maneira de "glaciar", como parece;

e) se designa apenas os referidos acidentes geográficos encontráveis na Bolívia ou se se aplica a outros iguais ou semelhantes em outros países, até mesmo nos que ficam fora da América do Sul.

Muito obrigado.

Resposta:

De facto, faltou na resposta em causa comentar a palavra "salar". Já o fiz entretanto, mas declarando o mesmo que agora — não encontro a palavra "salar" com o significado apontado pelo consulente nos dicionários consultados, a saber:

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa
Dicionário da Língua Portuguesa 2009, da Porto Editora
Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora
Dicionário Aurélio XXI
Dicionário Michaelis

Mesmo assim, respondendo às perguntas:

a) "Salar" parece um termo derivado de sal, que tem origem no latim sal, salis, por sua vez relacionado com a raiz indo-europeia *sal-, «sal». Se a palavra é portuguesa, dir-se-ia que a sal se associou o sufixo -ar, deduzido de substantivos designativos de lugares como pomar, bazar ou lupanar. Se a palavra foi formada no castelhano (da Bolívia ou de outro país hispanófono), creio que a etimologia e a análise morfológica se mantêm.

b) A palavra pode não ser portuguesa, mas adapta-se às regras fonológicas e morfológicas do português.

c) Desconheço o termo português correspondente ao aqui disc...

Pergunta:

Tenho dúvidas acerca da concordância entre cabra (feminino) e montês (masculino). E também se entre ambos deve ou não utilizar-se um hífen. Em resumo, qual a forma mais correcta?

a) cabra montesa

b) cabra-montesa

c) cabra-montês

d) cabra montês

Obrigada.

Resposta:

No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, a forma cabra montês está incluída nos verbetes quer de cabra quer de montês, mas sem hífen nem indicação de plural. Mas, dado que no Dicionário Houaiss se escreve com hífen a palavra cabra-selvagem, formada por um substantivo e um adjectivo, também se afigura mais adequada a hifenização de cabra-montês, já que designa não o animal chamado cabra mas uma das suas subespécies.

Acresce que montês é um adjectivo cuja forma de feminino é montesa, pelo que se afiguraria legítimo dizer e escrever cabra-montesa e, no plural, cabras-montesas. Contudo, por estranho que pareça, o animal em apreço é também conhecido pela designação cabra-montês, na qual montês parece violar as regras da concordância. Sugiro que isto acontece por arcaísmo: no português medieval, os substantivos e adjectivos terminados em -or e -ês não tinham feminino; por isso, dizia-se «a senhor» (= «a senhora») e «a casa português».1 Se assim for, fica explicada a anomalia de cabra-montês, que terá o plural cabras-monteses.

1 Há alguns dos chamados advérbios de modo em -mente que, ao contrário da regra geral (formam-se tendo por base a forma feminina de um adjectivo), derivam do que é hoje apenas a forma de masculino dos adjectivos em -ês: portuguesmente (cf. Evanildo Bechara, Moderna Gramáti...

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da expressão «você tem o dedo podre para escolher namorados», para um trabalho de meu filho da 6.ª série. Obrigada.

Resposta:

Não encontro dicionarizada a expressão «ter dedo podre (para escolher namorados/companhias, etc.)», mas parece-me fácil descobrir-lhe o sentido: «fazer más escolhas em relação ao amor e às amizades.»