Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de perguntar se é correcto escrever "ecoilha" ou "ecoílha".

Encontrei uma explicação que dá "ecoílha" como a forma certa,  mas, entretanto, em documentos oficiais e legislação, encontro apenas o uso de "ecoilha", sem acento agudo.

Obrigada.

Resposta:

Deve escrever-se ecoílha, termo que denota um «conjunto de recipientes onde os utilizadores domésticos podem colocar materiais e objetos para reciclagem e lixo indiferenciado (ex.: ecoílha subterrânea)» (Dicionário Priberam).

De harmonia com o n.º 1 da Base X do Acordo Ortográfico de 1990, a forma correta tem de apresentar acento agudo, de modo a indicar que a sequência oi é pronunciada separadamente, em duas sílabas distintas (ou seja, trata-se de um hiato, e não de um ditongo)1.

Grafias como faúlha (nome comum) ou Ruílhe (topónimo), com acento agudo, indicam que as vogais u e i, no primeiro e no segundo caso, respetivamente, se encontram em sílabas separadas e devem ser pronunciadas sem formarem ditongo com a vogal anterior.

O preceito que abrange estes casos já se impunha antes da adoção da norma de 1990. Não está expresso nas Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945, mas encontra-se formulado e ilustrado no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 158-161), de Rebelo Gonçalves. No Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), do mesmo autor, também se registam as formas faúlha e Ruílhe. Se estas apresentam o acento agudo como indicação de vogais em hiat...

Pergunta:

Podia explicar os significados e as diferenças entre «acabar por», «acabar em» e «acabar de»?

Obrigado.

Resposta:

A sequência «acabar por» é seguida de infinitivo:

(1) Ontem queríamos ir ao cinema, e acabámos por ir também às compras.»

Em (1), com os verbos nos tempos pretéritos, faz-se referência a uma ação que ocorreu por acaso ou que ocorreu sem ter sido planeada1.

A forma «acabar em» é seguida de nomes:

(2) «A inconsciência dos condutores acabou em tragédia.»

Em (2), «acabar em» significa «ter como desenlace; terminar em».

Quanto à construção de «acabar de», esta é seguida de infinitivo:

(3) A comitiva presidencial acaba de chegar ao estádio.

Em (3), o verbo é usado como auxiliar «com a preposição de e o infinitivo de outro verbo, para indicar a ideia de conclusão próxima e imediata, de ato recém-terminado, término de ação recente (acaba de sair ou acabou de chegar por saiu ou chegou neste momento)» (Dicionário Houaiss).

 

1 Como se observa no Dicionário Houaiss, quando os verbos ocorrem no presente ou futuro, assinala-se a grande probabilidade de uma situação ou acontecimento se verificarem: «para indicar que a ação provavelmente será realizada, usa-se acabar seguido de gerúndio ou da preposição por mais infinitivo (ele acabará fazendo, ou ele acabará por fazê-lo, no lugar de com toda a probabilidade, ele o fará)». Uma pesquisa no Corpus do Português revela que, nos textos identificados como brasileiros, se usam as construções acabar + gerúndio e acabar por + infinitivo; nos tex...

Pergunta:

A palavra fêmea é pronunciada com e fechado ou aberto em Portugal? A que se deve o e fechado, sendo tão comum em Portugal a pronúncia aberta de e e o antes de m e n, como em cónego?

Muito obrigado!

Resposta:

Na pronúncia-padrão de Portugal, a vogal tónica da palavra fêmea pronuncia-se com e fechado. Contudo, há falantes que articulam essa vogal como e aberto, facto que se documenta em observação feita no texto do Acordo Ortográfico de 1990, na Base XI, 3.º:

«Levam acento agudo ou acento circunflexo as palavras proparoxítonas, reais ou aparentes, cujas vogais tónicas/tônicas grafadas e ou o estão em final de sílaba e são seguidas das consoantes nasais grafadas m ou n, conforme o seu timbre é, respetivamente, aberto ou fechado nas pronúncias cultas da língua: académico/acadêmico, anatómico/anatômico, cénico/cênico, cómodo/cômodo, fenómeno/fenômeno, género/gênero, topónimo/topônimo; Amazónia/Amazônia, António/Antônio, blasfémia/blasfêmia, fémea/fêmea, gémeo/gêmeo, génio/gênio, ténue/tênue

A pronúncia com e fechado deve-se a razões etimológicas (vem de um E latino longo). Já a articulação do e tónico como e aberto parece ter surgido posteriormente e não tem explicação óbvia, embora encontre paralelo no caso do nome próprio Eufêmia ou Eufémia. É também possível que se deva a analogia com gémea, que em Portugal, tem e aberto.

Pergunta:

Qual a origem da palavra periclitante?

Obrigada!

Resposta:

O adjetivo periclitante, que significa «que corre perigo, pouco seguro», tem origem no latim periclitans, antis (Dicionário Houaiss). Esta forma é o particípio presente de periclitare, variante do verbo periclitari, que significava «ensaiar, experimentar, tentar; estar em perigo, correr risco de vida; pôr em perigo, arriscar».

Pergunta:

Vi a expressão latina odium figulinum ser traduzida como "ódio figadal".

É realmente a expressão mais adequada nesse caso?

Resposta:

«Ódio figadal» não é a tradução adequada do latim odium figulinum.

Odium figulinum, cujo significado literal é «ódio entre oleiros», é expressão referente à rivalidade ou inveja entre quem pratica o mesmo negócio.

Numa página eletrónica em espanhol, em que se apresenta um texto do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) intitulado "A competição homérica", encontra-se em nota a explicação de odium figulinum:

«Odium figulinum se cree traducción latina del texto citado [Los Trabajos y los Días] de Hesíodo, verso 25, para expresar el odio entre tenderos. Este mismo verso lo cita Platón en el Lisis, 215 c, discutiendo si se puede dar amistad entre semejantes o más bien entre contrarios.»

Tradução livre: «Crê-se que odium figulinum é tradução latina do texto citado [Os Trabalhos e os Dias] de Hesíodo, verso 25, para expressar o ódio entre lojistas. Platão cita este mesmo no Lísis, quando discute se a amizade pode nascer entre semelhantes ou, pelo contrário, entre contrários.»

Não parece haver uma tradução exata e estável em português, mas pode propor-se que odium figulinum seja equivalente a «ódio/inveja entre concorrentes».

 

N. E. – Resposta alterada em 11/12/2022. Figulinus, a, um, «de barro, de oleiro»...