Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A minha questão relaciona-se com o uso frequente do termo município com o significado de «câmara municipal». Este uso é correto ou a palavra mágica município apenas se refere a território, concelho?

Resposta:

A questão em apreço – que se relaciona com outra tratada anteriormente – diz respeito à nomenclatura da divisão territorial estabelecida por lei em Portugal (continente e ilhas)1.

A «câmara municipal» é «o órgão executivo colegial do município», conforme o art.º 252 da Constituição portuguesa. Por outras palavras, «câmara municipal» denota um órgão administrativo e, por isso, não é sinónimo de município, palavra que se aplica a uma divisão territorial.

Quanto à denominação da unidade administrativa designada tradicionalmente como concelho, usa-se hoje o termo município, substituição cuja história se sintetiza numa página do Instituto Nacional de Estatística (sublinhado nosso):

«O Decreto-Lei nº 46 139/64, de 31 de dezembro referia como circunscrições administrativas os distritos, os concelhos e as freguesias. Nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, as autarquias locais são pessoas coletivas de base territorial, dotadas de órgãos representativos cujo objetivo é a promoção dos interesses próprios das populações respetivas (artigo 235º). Para o Continente, são contempladas três categorias de autarquias locais: a freguesia, o

Pergunta:

Apesar de os epítetos serem aplicados a nomes próprios de modo a enaltecer ou qualificar uma figura (cognome, por exemplo), são também utilizados para qualificar substantivos comuns, tal como os adjetivos.

Qual a distinção entre epíteto e adjetivo?

Obrigado.

Resposta:

O termo epíteto é polissémico, ou seja, pode ser entendido de várias maneiras.

Considera-se genericamente epíteto como sinónimo de qualificativo, ou seja, trata-se de palavra ou expressão cuja função é qualificar um substantivo (cf. dicionário da Infopédia). Considera-se também, em abordagens da gramática tradicional, que epíteto é «qualquer adjetivo ou expressão com valor de adjunto atributivo não ligada ao substantivo por um verbo» (Dicionário Houaiss). Epíteto é igualmente usado como sinónimo de cognome e de «modificador apositivo» – o tradicionalmente chamado aposto (cf. epíteto no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa). Finalmente, na análise da literatura greco-latina, emprega-se epíteto para referir os atributos (epítetos) dos heróis, como em «Aquiles, o dos pés ligeiros»1.

Ao encontro de usos mais especializados, na perspetiva da linguística, lê-se na Gramática do Português (Fundação Calosute Gulbenkian, 2013-2020, p. 410, n. 17) a seguinte nota (o itálico assinala os epítetos):

«Os epítetos são expressões nominais com uma das seguintes formas: (i) um determinante combinado com um nome modificado por um adjetivo qualificativo (cf. ia)), (ii) um sintagma nominal inverso predicativo (cf. (ib) [...]) ou (iii) um determinante combina...

Pergunta:

Gostaria de saber se o termo defunto pode ser usado para, de maneira respeitosa, referir-se a quem morreu, tal como o latim de cujus é usado.

Certamente a palavra defunto é muito usada de maneira jocosa e desrespeitosa, mas ela também não pode ser usada simplesmente como sinônima de falecido?

Resposta:

A palavra defunto é sinónima de falecido e, como este, pode ser empregada de forma neutra, em referência a uma pessoa falecida.

Em textos de natureza jurídica, provenientes quer do Brasil quer de Portugal, defunto e falecido ocorrem como palavras não especializadas1, às quais, dada a seriedade do seu contexto, não se pode atribuir qualquer intenção irónica nem jocosa2. Por exemplo, num Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, data do 25/10/2015, detetam-se ocorrências de defunto e falecido em contextos praticamente iguais, sugerindo a sua sinonímia (sublinhado do consultor):

(1) «Como escreve o Prof. Rabindranath Capelo de Sousa “nas despesas com o funeral abrangem-se, v.g., as que ocorrem com a conservação, preparação e transporte do cadáver antes da sepultura, as dos ritos funerários, participações e agradecimentos, as do enterramento e as de trasladação, em conformidade com a condição do defunto ou o costume da terra” [...].»

(2) «E, segundo o mesmo Autor, “as despesas com os sufrágios respeitam, tomando o seu significado teológico-cristão, às piedosas intervenções dos fiéis vivos (v.g. missas, preces, esmolas e outras obras de caridade) em favor do fiel defunto autor da sucessão, na altura e na sequência do funeral e segundo a condição do falecido ou os costumes da terra” [...].»3

Nas traduções para português que se produzem no quadro do atividade da

Pergunta:

A construção gramatical «ante a» ou, de forma sincopada, "ant'a", é muito usada por moradores do interior do meu estado, Pernambuco, em frases como: «vá ant'a sua mãe», «fui ant'a meu pai, ele está muito doente», etc.

Todavia eu nunca ouvi tal construção em referência a objetos, só a pessoas. Quero saber se a línguística histórica da nossa amada flor do Lácio algum dia abonou tal construção.

Grato!

Resposta:

A construção em apreço é uma possibilidade do uso de ante. Com efeito, ao uso de ante como preposição atribuem-se as seguintes aceções, segundo o Dicionário Houaiss:

(1) «Em posição próxima ou frontal a; em frente a, em presença de, perante.» Ex.: "ali estava, ante seus olhos, a prova."

(2) «Em conseqüência de; em vista de, diante de.» Ex.: "ante tamanha insistência, só nos restou aceitar o convite"; "ante nada fazer, preferiu arriscar-se com um produto transitório".»1

Casos como os apresentados na pergunta – «vá ant'a sua mãe», «fui ant'a meu pai, ele está muito doente»–  correspondem à aceção (1), e podem ser considerados sinónimos dos de perante – «perante seus olhos» – ou, com verbos de movimento, dos da locução «à presença de» ou da preposição até – «vá à presença da sua mãe», «fui até (junto de) meu pai».

O uso em questão2 converge portanto, com a língua corrente e o registo culto.

 

1 Na mesma fonte (ibidem), lê-se em nota de uso, sobre ante preposição: «vocábulo considerado galicismo pelos puristas quando é usado como preposição antes de termos que denotam realidades imateriais; sugere-se, como alternativa vernácula, à ou à vista de".»

2 Observe-se, contudo, que a associação de ante a verbos de movimento, como acontece nos exemplos em questão, pode disfarçar, afinal, um uso arcaico, ainda existente nos dialetos portugueses setentrionais, o de «onde a» ou «onda a», em expressões «vou ond'ò fulano» ou «ond'à fulana», no sentido de «vou a casa de fulano/fulano» (cf. Xosé Manuel Sánchez Rei,

Pergunta:

Relativamente à expressão idiomática «pedra no sapato», perguntava-vos se a mesma pode ser acompanhada, dependendo do contexto, dos verbos estar ou ficar.

Obrigado.

Resposta:

Vários verbos são possíveis com «pedra no sapato»: ficar, andar, vir, ter e outros.

A expressão «pedra no sapato» significa «obstáculo que importuna incessantemente; estorvo» (Dicionário Houaiss).

No Corpus do Português, podem recolher-se exemplos literários e não literários que abonam tais associações:

(1) «[...] o Sr. Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca» (Eça de Queirós, Os Maias, 1888)

(2) «Mas ele, Abílio Rocha, havia tempo que andava com a pedra no sapato» (Manuel da Fonseca, Cerromaior, 1943)

(3) «A menina é que já veio com a pedra no sapato» (José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 1942)

(4) «Não tem uma pedra no sapato relativamente ao projecto de que fez parte, chamado Praça Viva

Refira-se que em (2) a substituição de andava por estava, forma do verbo estar, é também correta.