Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Desculpem a minha insistência, mas a pergunta que faço agora é parecida com esta, mas não é a mesma. Ademais, a resposta não responde exatamente à pergunta. A pergunta é a diferença entre colocar ou não colocar a preposição, já que, de fato, se usam as duas. A pergunta é se têm matizes distintos e se são as duas corretas, e a resposta limita-se a expor as regras do complemento direito preposicionado, que eu já conheço. Coloco de novo a minha pergunta caso os senhores queiram responder com precisão:

«A minha pergunta é muito concreta: já ouvi falar do complemento direito preposicionado aplicado ao caso de Deus (amar a Deus, conhecer a Deus), mas já vi usar as duas formas muito frequentemente: buscar a Deus/buscar Deus, ver a Deus/ver Deus, sentir a Deus/sentir Deus... e um longo et cetera. Só queria saber se são duas possibilidades corretas, ou se só uma é certa, ou se encerram matizes distintos... Preciso muito da sua resposta, porque trabalho numa equipe de tradução que usa muito estes termos. Agradeceria explicação detalhada. Muito obrigado.»

Resposta:

Ambas as construções são correctas, mas é claro que o complemento directo preposicionado ocorre com mais frequência ou é mais provável em textos de temática e intenção religiosas, sendo este emprego típico do texto bíblico em português; p. ex., lemos na chamada Bíblia dos Capuchinhos (Lisboa/Fátima, Difusora Bíblica-Franciscanos Capuchinhos, 2008):

1) «Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1.ª Carta de João, 4, 8).

2) «[...] se amamos a Deus e cumprimos os seus mandamentos [...]» (1.ª Carta de João, 5, 2).

Pergunta:

Como se deve dizer: «Junto se envia...», ou «junto envia-se...»? É indiferente? E, se não, o que as distingue?

Obrigada.

Resposta:

Não é obrigatória a anteposição (próclise) do pronome pessoal átono se a frase em que este ocorre começar por um advérbio (por exemplo, junto). Mas a próclise tem um valor próprio, dando ênfase ao advérbio e tornando a frase parafraseável por uma construção de foco: «É junto que se envia...»

Se a opção for usar o pronome depois do verbo («envia-se»), então recomenda-se uma vírgula depois de junto: «Junto, envia-se...»

Pergunta:

Gostaria de conhecer a origem do nome do cabo da Roca.

Obrigada.

Resposta:

Como topónimo, Roca tem origem no substantivo comum roca, «penedo, rocha», variante de rocha (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa). É nome que também ocorre na zona de Mogadouro (Trás-os-Montes), Odemira (Alentejo), Pombal (Beira Litoral) e na Galiza (Lugo e Pontevedra).

Sobre roca, o Dicionário Houaiss diz tratar-se de vocábulo com origem no «l[atim] v[ulgar] *rŏcca e, este, de prov[ável] orig[em] pré-lat[ina], f[orma] div[er]g[ente] de rocha». A forma roca terá passado ao português por via do catalão ou do provençal, enquanto rocha parece empréstimo do francês medieval roche (idem, s. v. rocha e roch-).

Pergunta:

A expressão «Lembranças de um homem ridículo» significa lembranças que um homem ridículo tem de algo, ou lembranças que alguém tem de um homem ridículo? Se pode significar tanto uma coisa como outra, é o que suspeito, então, não haveria nesta frase uma ambiguidade? Se a resposta for positiva, de que modo se poderia desfazê-la?

Tenho uma ideia que talvez a desfaça, resolvendo o problema: «Lembranças de um homem ridículo» ficaria apenas como uma frase que significaria as lembranças que um homem ridículo tem de algo; «Lembranças sobre um homem ridículo» ou «Lembranças a respeito de um homem ridículo», por sua vez, significariam somente as lembranças que alguém tem de um homem ridículo.

Todavia, estou em dúvida quanto às duas últimas, pois me parecem que não são normais na nossa língua. Na penúltima, ocorre a preposição sobre, a qual, neste caso, parece ser galicismo, pois, num caso destes, os franceses usariam, salvo engano, sur.

E com relação a palavras análogas, tais como recordação(ões), memória(s), o que falar e escrever?

De qualquer modo, gostaria de dizer que tenho um exemplar de um livro intitulado Memórias sobre a Escravidão, com textos de autores brasileiros, obra que discorre sobre a escravidão africana no Brasil.

Muito obrigado.

Resposta:

A preposição de é a que frequentemente introduz os complementos de lembrança, recordação ou memória, podendo esses complementos referir-se quer ao sujeito que lembra quer ao objecto que é lembrado. Para desambiguar os valores de de, é totalmente aceitável e normal recorrer a outras preposições e locuções prepositivas para distinguir o objecto lembrado, recordado ou memorizado: «lembranças/recordações/memórias sobre/acerca de/a respeito de um homem ridículo».

Não posso confirmar que a preposição sobre se deva a influência francesa. Mas se consultarmos o Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, de Francisco Fernandes, verificamos que a regência de memória também se constrói com sobre. Dada a afinidade semântica de lembrança e recordação com esse vocábulo, é possível supor que a preposição sobre e as locuções prepositivas suas sinónimas se tenham generalizado aos substantivos em questão.

Pergunta:

Gostaria de saber qual das seguintes formas gramaticais é a mais antiga:

estar + a + infinitivo, ou estar + gerúndio

Gostaria também de saber quando e, se possível, o porquê da mudança de uso para a forma mais moderna.

Desde já, agradeço qualquer informação que possam enviar-me.

Resposta:

É provável que a perífrase com gerúndio seja mais antiga, visto encontrar-se em dialectos do português europeu e em línguas próximas do português como castelhano e o catalão. No entanto, é de realçar que a construção com infinitivo também existe em dialectos galegos; a grande afinidade destes com os dialectos do português europeu pode sugerir que a construção de infinitivo tenha estado disponível como alternativa ao gerúndio desde há bastante. De qualquer modo, estudos diacrónicos indicam isso mesmo, desde o século XVIII, em Portugal; neste país, o predomínio da perífrase verbal estar com infinitivo (também chamado, neste caso, infinitivo gerundivo) sobre a de estar com gerúndio terá ocorrido durante o século XX.

Aconselho a leitura do seguinte artigo: Núbia Graciella Mendes Mothé, "Gerúndio versus Infinitivo Gerundivo: Brasil e Portugal em contraste nos séculos XIX e XX", Estudos Linguísticos XXXV, 2006, págs. 1554-1563 (consultado em 26/01/2010).