Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Será correcto (não sigo o Acordo Ortográfico), em alguma circunstância da escrita, usar as duas palavras «em antes», ou, pelo contrário, o em antecipando a palavra antes é sempre errado?

O que quero perguntar é se apenas se deve escrever antes.

Resposta:

Existe de facto a locução prepositiva «em antes de», seguida de complemento nominal ou oracional, que, pelo menos atualmente, tem emprego muito escasso, dado preferir-se «antes de». O Corpus do Português (Mark Davies e Michael Ferreira) apresenta apenas duas ocorrências de «em antes de», provenientes da mesma obra, Contos Gauchescos (1912), de Simões Lopes Neto (1865-1916), um escritor brasileiro do Rio Grande do Sul:

«E quando estávamos neste balanço ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo de a pé, encontrando no caminho a mãe Tanásia. Em antes de chegarem, já os cuscos, ponteiros, tinham começado a acuar, por debaixo dos araçazeiros [...].»¹

«Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões.»

¹ Apesar de rejeitada pela norma, a expressão «de a pé» tem uso frequente no português brasileiro coloquial.

Pergunta:

No Brasil a expressão «deitar e rolar» é usada com o significado de «fazer o que se quer, sem se importar com as consequências».

Gostaria de saber qual sua origem.

Resposta:

Não foi possível identificar os factos históricos que deram origem à expressão. No entanto, é aparente o seu valor metafórico, evocativo de qualquer corpo ou volume de grande peso e dimensão (por exemplo, como no bowling ou boliche) que, posto em movimento, derruba outros objetos na sua passagem.

Como subentrada do verbo deitar, o Dicionário Houaiss classifica esta expressão como regionalismo brasileiro que tem uso informal e ocorre nas seguintes aceções:

«d. e rolar Regionalismo: Brasil. Uso: informal. 1 agir segundo o comando dos desejos, sem levar em consideração qualquer limite. Ex.: embriagado, ele deitou e rolou naquele dia; 2 Derivação: por extensão de sentido, fazer tudo o que se quer, sem limites, em decorrência de uma superioridade, um domínio. Ex.: a polícia deitou e rolou quando invadiu a favela; 3 exercer o domínio sobre (outrem), em virtude de superioridade. Ex.: o time deitou e rolou em cima do adversário.»

A expressão ocorre na canção Vou Deitar e Rolar, interpretada por Elis Regina (1945-1982):

Pergunta:

Eu reparei que a maioria das línguas europeias usa n nas palavras que em português terminam em m, mesmo o francês, que também possui vogais nasais. Por que abandonamos o n, comum na Idade Média, em prol do m?

Resposta:

Na escrita do português antigo, no qual se usava o -n e o til – ~ – em posição final, a nasalidade em final de palavra – seja esta considerada vocálica ou consonântica – podia ser também representada por -m, como anota Edwin B. Williams em Do Latim ao Português (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, pág. 35):

«O uso do m final para indicar nasalação da vogal final apareceu talvez em monossílabos da prosa legal por imitação da ortografia latina, e.g. , com, quem, rem (arcaico), tam [...]. O abandono do n em favor do m ocorreu no curso do século XIII [...].»

Refira-se que o -m surgia frequentemente tanto em Portugal como na Galiza, como refere Clarinda de Azevedo Maia, em História do Galego-Português (Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986, págs. 306/307, n. 4):

«[...] [C]ontrariamente ao que pensavam alguns, a grafia -m em final de palavra não é um pormenor que diferencie os documentos da Galiza e de Portugal. [...] Este processo gráfico é [...] comum aos sistemas de escrita medievais de Portugal e da Galiza.»

A ortografia portuguesa acabou por fixar o -m como marca de nasalidade em final de palavra.

Pergunta:

Na minha aldeia há uma comida típica que na oralidade me soa a "borrlhão, burlhão"(o r soa a "rr"). Na zona de Oleiros chamam maranho, e só difere do "burlhão" no ingrediente serpão, em vez de hortelã. Haverá uma maneira correcta de escrever esta palavra?

Resposta:

O nome da especialidade que refere escreve-se borrelhão e está assim registado no Dicionário de Falares das Beiras (Âncora Ediotra e Edições Colibri, 2010), de Vítor Fernando Barros. Numa página da Internet, ocorre este vocábulo, com a respetiva definição:

«A especialidade da casa é o [b]orrelhão, que é um prato que por ser muito trabalhoso costuma ser servido apenas nos casamentos e dias de festa. Faz-se com carne de cabrito temperada e cozinhada em pequenas bolsas feitas com o estômago do animal.»

Pergunta:

Existe, na língua portuguesa, uma palavra que permita traduzir a ideia do que é um whistleblower que não esteja já conotada com outras figuras ou realidades (denunciante, informador, p. ex.)?

Obrigado.

Resposta:

Em inglês, um whistleblower é alguém que alerta para a existência de irregularidades na gestão e no funcionamento de empresas ou instituições. Literalmente interpretável como «soprador de apito», whistleblower tem origens na gíria, mas acabou por adquirir o significado que tem atualmente por extensão metafórica. Não tem por enquanto em português um termo equivalente de uso estável.

Com efeito, este anglicismo pode realmente ser traduzido por denunciante ou informador e por outras palavras sinónimas como denunciador, delator, alcaguete ou caguete¹ (Brasil). Note-se, porém, que os substantivos denunciante e informador estão fortemente conotados em Portugal com situações históricas de repressão política (por exemplo, quando se fala do Estado Novo). Whistleblower, pelo contrário, tem conotação positiva nas culturas anglo-saxónicas, porque se refere (cf. Oxford Dictionary of English) a alguém cujo propósito é, em nome da justiça, tornar conhecidas as ilegalidades praticadas por certas organizações. Não parece, portanto, ter associada a ideia de traição contida nas palavras portuguesas, a que não é estranha a própria palavra denúncia. Sendo assim, há tradutores que optam pela expressão «autor da denúncia» (cf. sítio de tradução