Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra congruente é sempre regida pela preposição com? Poderá ser seguida da conjunção como?

Resposta:

Recomenda-se que a regência de congruente seja feita com a preposição com.

O adjetivo congruente, que significa «conforme, concordante», usa-se geralmente com a preposição com (sublinhado nosso):

(1) «Umas e outras exigem, portanto, que... vamos buscar-lhes uma última base, congruente com elas.» (Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, São Paulo, Editora Globo, 2005)

(2) «resultados de uma pesquisa congruentes com as circunstâncias político-sociais» (Dicionário Houaiss)

(3) «De acordo com a sua mecânica celeste, os planetas, o Sol, a Lua e a esfera de estrelas fixas estavam todos dispostos em intervalos congruentes com oitavas.»

Contudo, uma consulta do Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, faculta exemplos deste adjetivo associado à preposição a:

(4) «Alguns parentes, presumidos de circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres congruentes à sua idade [...]» (Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição)

(5) «A propriedade nas figuras exige que a expressão seja congruente aos differentes affectos, e paixões d´alma [...].» (António Leite Ribeiro, Theoria)

Como os exemplos 4 e 5 provêm de textos do século XIX, parece legítimo considerar que a regência...

Pergunta:

Li há dias a seguinte frase: «Aquele casal discutia por terem pontos de vistas diferentes sobre a problemática da pena de morte.»

A minha dúvida é: poder-se-á dizer «pontos de vistas» mesmo que a palavra a seguir esteja no plural, ou a forma correcta de escrever será «ponto de vistas»?

Resposta:

A expressão «ponto de vista» tem o plural «pontos de vista», tal como «ponto de fuga» pluraliza como «pontos de fuga», e pé-de-meia, como pés-de-meia.*

* Esta palavra tem hífenes, ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1945, e também assim é mencionada no próprio Acordo Ortográfico de 1990 (AO 1990), Base XV, 6.º, fazendo parte de um conjunto de exceções ao preceito segundo o qual «[n]as locuções de qualquer tipo, sejam elas substantivas, adjetivas, pronominais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais, não se emprega em geral o hífen [...]» (idem). Os vocabulários ortográficos atualmente disponíveis não são coincidentes quanto à grafia a atribuir a este composto: regista-se apenas pé-de-meia no Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras);  há dupla grafia no Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) do ILTEC e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora (disponível na Infopédia), que , a par de pé-de-meia, admitem  também a variante «pé de meia», generalizando a supressão do hífen a todas as locuções substantivas, adjetivas, pronominais, adverbiais, prepositivas ou c...

Pergunta:

É correto dizer «Finalmente, acabarei as minhas aulas» ou «Finalmente, acabarei com as minhas aulas na proxima semana»? Se sim, existe alguma diferença?

Parabéns pelo vosso trabalho.

Resposta:

No sentido de «chegar ao fim» ou «terminar», a melhor frase é a primeira, em que acabar é usado como verbo transitivo direto, isto é, como verbo que é seguido de um complemento direto: «Finalmente, acabarei as minhas aulas.»

O emprego de acabar com a preposição com a reger uma expressão nominal («acabar com alguém/alguma coisa») adquire uma conotação mais drástica, sugerindo que a ação assim referida tem intenção agressiva ou está revestida de certo espírito de confrontação, sendo por isso o verbo interpretado como «abolir», «destruir, matar» (cf. Dicionário Houaiss; exemplos de Énio ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, Porto, Livraria Chardron e Lello e Irmão, 1985):

(1) «Afirmou que ia acabar com a indisciplina que reinava na escola» («terminar», «fazer desaparecer definitivamente»).

(2) «O marquês de Pombal acabou com a distinção cristãos-velhos e cristãos-novos» («abolir»).

(3) «Tudo isto vai acabar comigo» («destruir, matar»).

Pergunta:

Gostaria de saber se se pode utilizar o termo planificação ou será mais correcto planeamento.

Obrigado.

Resposta:

O vocábulo planeamento é vocábulo usado em sentido genérico, muitas vezes em referência à «elaboração de planos governamentais, esp. nas áreas econômica e social» (Dicionário Houaiss; no português do Brasil, o termo registado em dicionário é planejamento, derivado do verbo planejar): «planeamento urbanístico».

Uma planificação tem significado mais concreto e específico, aplicando-se muitas vezes ao plano de uma atividade com marcação da data e do local em que ocorre: «a planificação de uma aula/um curso/um seminário».

Note-se que há expressões em que a ocorrência de uma destas palavras parece dever-se mais à fixação de um uso do que a uma verdadeira motivação semântica. Por exemplo, usa-se planeamento familiar, e não "planificação familiar", muito embora haja dicionários que definam planeamento familiar como uma planificação (sublinhado meu): «planeamento familiar, conjunto de cuidados de saúde que visam a planificação dos nascimentos e do número de filhos de acordo com as necessidades ou os desejos de um casal e tendo em conta as várias condicionantes fisiológicas, clínicas, económicas, culturais ou religiosas da família» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, na Infopédia).

Pergunta:

Será correcto (não sigo o Acordo Ortográfico), em alguma circunstância da escrita, usar as duas palavras «em antes», ou, pelo contrário, o em antecipando a palavra antes é sempre errado?

O que quero perguntar é se apenas se deve escrever antes.

Resposta:

Existe de facto a locução prepositiva «em antes de», seguida de complemento nominal ou oracional, que, pelo menos atualmente, tem emprego muito escasso, dado preferir-se «antes de». O Corpus do Português (Mark Davies e Michael Ferreira) apresenta apenas duas ocorrências de «em antes de», provenientes da mesma obra, Contos Gauchescos (1912), de Simões Lopes Neto (1865-1916), um escritor brasileiro do Rio Grande do Sul:

«E quando estávamos neste balanço ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo de a pé, encontrando no caminho a mãe Tanásia. Em antes de chegarem, já os cuscos, ponteiros, tinham começado a acuar, por debaixo dos araçazeiros [...].»¹

«Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões.»

¹ Apesar de rejeitada pela norma, a expressão «de a pé» tem uso frequente no português brasileiro coloquial.