Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como devemos escrever em português o nome dos mercados cobertos tipicamente árabes: "souk", "souq", ou "suque"? E como pluralizar a palavra?

[...] [E]ncontrei no dicionário da Porto Editora o substantivo soco, com a seguinte definição: «Moçambique: mercado; feira; centro comercial», e com etimologia apontada ao suaíli soko. Será possível que estejam relacionados?

Um muito obrigado.

Resposta:

Tendo em conta a forma francesa souk e as inglesas souk, suk, sukh e suq, todas elas grafias estranhas ao português, pode criar-se suque, cujo plural será suques. Quanto a soco (homónima de soco, «murro»), confirmo que a palavra se regista como o mesmo que «mercado; feira; centro comercial», em relação ao português de Moçambique. Deve, porém, ficar a ressalva de que as formas portuguesas aqui mencionadas ou são neológicas ou têm uso apenas numa variedade do português, sem tradição lexicográfica noutras variedades. O que aqui se apresenta são, portanto, formas legítimas sem uso efetivo que as enraíze de algum modo na língua.

É também de sublinhar que, em português, o árabe suq deu origem a açougue, cuja evolução semântica lhe impede a possibilidade de servir como equivalente das formas estrangeiras já mencionadas: açougue significa hoje «estabelecimento onde se vende carne», e, sendo assim, a palavra é usada no Brasil como o mesmo que talho.

Pergunta:

Uma vez que a palavra pixel entrou já no vocabulário português por via da informática e da digitalização e electrónica, é legítimo criar a palavra "pixelar" como verbo e conjugá-lo pelo menos nalgumas pessoas e no infinitivo – a acção de transformar em píxeis?

Resposta:

É possivel formar o verbo que se refere na pergunta, mas os dicionários já registam pixelizar, o que, por se tratar de forma legítima, dá primazia sobre pixelar.

O dicionário da Porto Editora regista pixelizar, que poderia ser sinónimo, mas que o dicionário define de outro modo: «tornar difícil perceber (parte de uma imagem), ampliando-a muito de forma a causar a sua distorção.» O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa também regista pixelizar e pixelização, atribuindo a este substantivo a seguinte aceção: «Visualização de quadrados numa imagem digital, para criar determinado efeito visual ou por causa de um aumento excessivo da imagem relativamente à sua resolução.» Dir-se-ia, portanto, que o Dicionário Priberam legitima pixelizar como o verbo que a consulente procura. Refira-se que pixelar pode eventualmente ocorrer em português por influência do espanhol, língua em que também existe forma verbal igual, pixelar (igualmente se regista pixelear). Apesar do estreito parentesco entre o português e o espanhol, até é plausível que o pixelar português se tenha formado autonomamente. Mesmo assim, se já temos pixelizar, que está bem formada e é, portanto, legítima, parece necessário tomar em atenção o facto, dando prioridade à forma já registada.

Pergunta:

A grafia correta é quatrilhão, ou quadrilhão? São sinônimos?

Resposta:

A palavra em questão tem várias formas, todas legítimas e todas registadas, por exemplo, pelo Dicionário Houaiss: quatrilião, quadrilião, quatrilhão, quadrilhão. De todas estas formas, a mais referida por gramáticas e dicionários é quatrilião.

Cf.  Milhões, Mil milhões, Biliões ou Triliões? Esclareça a confusão!

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra coirmandade existe e se se escreve sem o hífen, de acordo com as novas regras ortográficas.

Obrigada.

Resposta:

Aceita-se a palavra coirmandade como o mesmo que geminação, em referência a um acordo de cooperação entre duas cidades. A palavra não apresenta hífen, tal como não tem agora a palavra coirmão, no contexto do novo acordo ortográfico.

Pergunta:

A respeito das perguntas Os ditongos 'ou' e 'oi' e Ouro e oiro,  ser-vos-ia possível aprofundarem (há fontes?) essa «pronúncia particular dos judeus»? Neste contexto, que validade científica têm as palavras do gramático:

«Em quanto á substituição de i por u; v. g. em dois, oiro, por dous, ouro, ou coisa, loiro, por cousa, louro, não ha razão para preferir o u, visto ser o i conforme á pronunciação moderna, e existir no latim a substituição inversa, sendo constante que os antigos Romanos escrevião optumus, maxumus, antes de terem escripto optimus, maximus. Alem do que, muitas das palavras que os nossos antigos escrevião por ou, e que hoje se pronuncião geralmente oi, já estão mui torcidas dos radicaes latinos; v. g. ouro de aurum, louro de laurus, dous de duo.

Cousa não deriva immediatamente do latim. He pois licito escrever cousa ou coisa, dous ou dois, etc. Em muitas palavras oi corresponde melhor ao radical latino; v. g. coiro de corium, por transposição de letras.»

Francisco Solano Constancio (1831), Grammatica analytica da lingua portugueza, pp. 237-238.

Resposta:

A troca de ou por oi – ou, por outra, em transcrição fonética, a troca de [ow] por [oj] – tem sido efetivamente atribuída à influência do falar da antiga comunidade judaica em Portugal. Por exemplo, é um dos traços mais característicos das personagens que representam os Judeus nas peças do dramaturgo português Gil Vicente (c. 1465-c. 1536). Contudo, Paul Teyssier, em A Língua de Gil Vicente (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, págs. 235-268), registando embora essa permuta como traço caracterizador dos Judeus, enquanto personagens do teatro vicentino, considera que não foi este grupo o difusor dessa inovação fonética (mantém-se a grafia da obra consultada):

«O "oi dos Judeus" é [...] a primeira manifestação de uma tendência muito geral que se encontra em seguida em alguns falares regionais e, em menor grau, na própria língua comum. Esta tendência geral é, por seu lado, um caso particular de um fenómeno fonético ainda mais geral que consiste em transformar os ditongos com -u em ditongos com -i, cf. multu- > muito. [...] [O] fenómeno ou > oi de que os Judeus nos fornecem o mais antigo testemunho é mais poderoso e geral. Trata-se de uma verdadeira vaga de fundo que, a pouco e pouco, vai alcançar toda a língua. Sob o ponto de vista fonético, ou > oi [...] é uma diferenciação. No ditongo ou, o elemento vocálico inicial e o elemento vocálico final estão extremamente próximos um do outro e tendem portanto a aproximar-se ainda mais por assimilação e a fundir-se numa vogal única (o fechado). Hoje, é este o ponto de chegada normal de ou, em toda a metade sul de Portugal e no Brasil. A diferenciação ou > oi é um modo de lutar contra esta tendência, um modo de salvar o ditongo. Consiste, de facto, em s...