Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Referindo o ato de retirar o tubo endotraqueal de um paciente, qual é a grafia certa: estubar, ou extubar?

Resposta:

Deve escrever-se extubar.

O verbo extubar é registado pela edição de 2009 do Dicionário Houaiss como termo usado no domínio da medicina, com o significado de «remover tubo ou sonda de» (exemplo da mesma fonte: «extubar um paciente»).

Pergunta:

Vários dicionários portugueses apresentam a palavra treinamento sem qualquer restrição regional ou nacional. Porém, a verdade é que a sua sonoridade, segundo algumas opiniões, pode remeter para a variante brasileira da nossa língua. Qual é a vossa opinião sobre a palavra treinamento?

Resposta:

Treinamento é palavra que se usa sobretudo no Brasil, muito embora deste país também venham exemplos de treino.

Uma consulta do Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, revela que apenas nos textos brasileiros ocorre a palavra treinamento; contudo, nos mesmos textos, a forma treino, empregada como substantivo, também não está ausente. Uma consulta da Folha de São Paulo evidencia o uso quer de treino quer de treinamento. Além disso, os dicionários brasileiros incluem treinamento como palavra sinónima ou variante de treino1.

Ainda assim, não é possível afirmar que treinamento seja um uso exclusivamente brasileiro. É certo que, consultando o referido Corpus do Português, se verifica que, em textos portugueses, não ocorre treinamento; apesar disso, esta forma consta dos dicionários elaborados em Portugal2.

Quanto à possibilidade de, no português do Brasil, se usarem mais palavras sufixadas por -mento do que em Portugal, não é possível fazer aqui tal generalização. Há casos que podem dar essa impressão – por exemplo, mais uma vez no Corpus do Português, verifica-se que recebimento, surgimento e gerenciamento e são mais frequentes em textos brasileiros do que em textos portugueses (gerenciamento chega a não aparecer em nenhum texto de Portugal). Trata-se, portanto, de um tema merecedor de atenção, mas que terá de ser feito em nova resposta ou num artigo mais extenso3.

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Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se a palavra liberdade tem algum sufixo.

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Na forma liberdade pode reconhecer-se uma variante do sufixo -idade, embora o referido substantivo não seja um caso típico das palavras assim sufixadas.

Com efeito, no vocábulo, o segmento -dade é identificável com o sufixo -idade, à semelhança do que acontece, por exemplo, com a sufixação de beldade. No entanto, é controverso classificar o morfema liber- como base da derivação de liberdade, ainda que ele se associe ao adjetivo livre. Contudo, sabendo que os nomes sufixados com -idade se associam aos radicais dos adjetivos (p. ex., digno – dign- + idade → dignidade), pode sugerir-se que se trata de uma palavra complexa não derivada, tal como acontece por exemplo com palavras como conceber (cf. M.ª Graça Rio-Torto e outros, Gramática Derivacional do Português, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pág. 90). Convém ainda assinalar que há descrições que tomam liberdade não como palavra formada em português, mas, sim, adaptação do latim libertate. Em suma, pode aceitar-se que -dade é sufixo, mas revela-se difícil incluir liberdade entre os derivados sufixais formados em português.

Pergunta:

«A Web Summit Lisboa é a nossa melhor oportunidade depois da Expo-98», era o título da entrevista publicada na Revista do Expresso do passado dia 9/01 ao secretário de Estado da Indústria e (assim identificado) ex-diretor executivo da Startup Lisboa, João Vasconcelos. E, mais adiante: «(...) O poder montar um negócio em Portugal e na semana seguinte ter um cliente no Japão era uma coisa que dantes não era possível. É importante sublinhar que nem todas as startups se tornarão empresas: muitas delas estão a desenvolver um produto, uma feature, e esse produto ou feature será comprado por alguma empresa para os incorporar na sua oferta. (...)» Web Summit, startup, feature. Pergunto: nenhuma destas palavras tem tradução portuguesa, ou trata-se só de mais um (mau) exemplo de um governante português preferir o inglês ao idioma nacional?

Resposta:

1. Web Summit1

Web Summit é o nome de um encontro internacional organizado anualmente por empresas irlandesas (em 2015, Connected Intelligence Limited). Trata-se de um nome próprio resultante da conversão da expressão «web summit», que literalmente é o mesmo que «cimeira da/na rede», «cimeira da/na Web» ou «cimeira da/na Internet»; pode ainda sugerir-se «cimeira web», com web empregado adjetivalmente e em itálico (ou aspas). Como Web Summit se comporta como nome próprio, não tem, em princípio, tradução. Mesmo assim, esse estatuto não o dispensa de se ligar a outro nome próprio, seguindo a sintaxe portuguesa: «a Web Summit de Lisboa» (apesar de, em certos eventos, se observar a omissão da preposição, como sucede com o Moda Lisboa).

2. Start-up

Uma tradução recorrente é «empresa emergente» (existe solução homóloga em espanhol), no sentido de empresa que procura inovar no mercado, apoiando-se na tecnologia.2

3. Feature

É palavra traduzível de diferentes formas, mas, no contexto das empresas emergentes, encontra equivalente em recurso (ver Proz.com) e funcionalidade (Linguee). Este último termo português é polissémico (vários significados) e, revertendo ao inglês, pode encontrar outras traduções (por exemplo, functionality; cf....

Pergunta:

Morfologicamente, trio é um substantivo coletivo? Ou um numeral coletivo?

Resposta:

Pode considerar-se – e muitas gramáticas assim o fazem – que trio é um numeral coletivo.

Dicionário Terminológico não inclui os numerais coletivos entre os quantificadores numerais. Há gramáticas que não chegam a classificar palavras como trio ou dezena como coletivos; mas, por exemplo, no caso da Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2003, pág. 204), de Evanildo Bechara, é dito que se trata de numerais que têm analogia com os coletivos, com a diferença de definirem a quantidade.

No entanto, há várias gramáticas que incluem par e dezena numa série que forma a classe dos numerais coletivos (ver P. Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 1989, pág. 185). Mais recentemente, a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 926/927) apresenta par, trio, quadra, quinteto, dezena, etc. como uma série que constitui os numerais coletivos.

Em suma, trio é geralmente tratado como coletivo e afigura-se legítimo classificá-lo entre os numerais coletivos, o que não impede que outras gramáticas lhe atribuam outra classificação.