Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No Dicionário Enciclopédico de Teologia, do Prof. Arnaldo Schüler (Editora da ULBRA, Canoas, 2002. p. 172), lemos, no verbete édito: «Ordem judicial tornada pública através de editais ou anúncios»; em edito, temos: «Paroxítono. Norma, lei, determinação oficial, decreto, ordem. P.ex.: Edito de Milão (q.v.). No direito romano, complexo de normas jurídicas.» A obra traz, como aponta a abreviatura q. v. (quod vide), o verbete "Edito de Milão".

Dicionários como o Caldas Aulete e o Priberam corroboram as diferenças conceituais apontadas para esses parônimos (não contemplam, todavia, o exemplo "Edito de Milão").

Minha dúvida reside sobre o assim chamado Edito de Milão. Além do compêndio de Schüler, sei que no meio eclesiástico (o "site" do Vaticano é um exemplo), é comum que se empregue o termo paroxítono para se referir ao decreto imperial que deu liberdade de culto a todos no Império Romano em 313, tornando, por conseguinte, o cristianismo uma religião lícita. A língua italiana também faz distinção (vide, p.ex., o Vocabolario Treccani on-line ou o Dizionario di Italiano on-line do Corriere della Sera) entre edito (pronúncia proparoxítona, com o mesmo sentido do nosso acentuado édito) e editto (pronúncia paroxítona, com o mes...

Resposta:

Parece tratar-se efetivamente de uma criação da língua portuguesa a existência de duas palavras divergentes que entroncam no mesmo vocábulo latino – edictum, «ordem, mandado (de pessoa particular); ordem, ordenação, regulamento; direito estabelecido por um edito; enunciado, exposição, elocução, enunciação» –, conforme se observa no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no qual se acrescenta que edictum vem «do radical de edictum, supino de edicĕre "dizer em voz alta, declarar, fazer saber"».

A mesma fonte sublinha ainda que édito é uma criação do meio forense de língua portuguesa, e que, historicamente, apenas a forma edito teria legitimidade histórica:

«[A]o longo do século XIX, criou-se uma dicotomia entre edito e édito; já Constâncio (1836) registra edicto ou edito 'ordem pública, edital' de édito 'ordem, mandado do rei ou de outra autoridade que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos'; Aulete (1881) segue essa diretriz, e parcialmente Cândido de Figueiredo, que só dicionariza édito na acepção de Constâncio; Bluteau, por sua vez, no século XVII, só registra editto ou edicto 'ordem de um príncipe, República, Magistrado declarada publicamente' e dá como correspondente em latim edictum, i, de edicĕre, apresentando algumas locuções comuns no português, como por exemplo pôr um edicto latim edictum ponere, edictum affigere; Morais (1877) praticamente elucida a questão, registrando édito ou edicto (latim edictum) substantivo masculino 'ordem, mandado do príncipe ou magistrado que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos', cita um exemplo de Vieira ''proceder por éditos a encartamento...

Pergunta:

Distingo sem problemas bíblia (enquanto livro) de Bíblia (texto sagrado). A minha questão prende-se com esta última: por que razão surge frequentemente, até entre conceituados escritores, sem aspas ou sem itálico? Por que razão não segue as normas usuais de título de obra?

Resposta:

É uma convenção antiga, que se encontra registada, pelo menos, desde 1947, quando Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (Coimbra, Atlântida - Livraria Editora, pág. 323), observou o seguinte:

«Há [...] títulos que podem dispensar, por força de usos tradicionais, tanto o sublinhado como as aspas (e, por consequência, também o itálico tipográfico) como é o caso dos títulos de certos livros sagrados universalmente conhecidos: Alcorão, Bíblia, Evangelho, Novo Testamento, Talmude, Velho Testamento, Vulgata, etc.»

CfAs línguas da Bíblia

Pergunta:

Em relação a uma pessoa cujo cônjuge morreu pode dizer-se «viuvou» ou «enviuvou»? Ou ambas as expressões são válidas?

Resposta:

Ambas as formas são legítimas. Note-se, porém, que enviuvar se usa com muito mais frequência, como sugere a remissão da forma viuvar para enviuvar, no Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora (na Infopédia). Refira-se ainda que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa só acolhe enviuvar, o que é elucidativo de como enviuvar é a forma que, pelo menos, em Portugal, mais se salienta. O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira) não faz exatamente o mesmo, quando dá entrada aos dois verbos, mas define-os de modo muito semelhante até inclui enviuvar na própria definição de viuvar.  Isto sugere, portanto, que, também no Brasil, se dá maior relevo ao uso de enviuvar do que ao de viuvar.

Pergunta:

Devemos escrever «mau-humor» ou «mau humor»? Será possível indicar-me a regra que rege a forma correta?

Muito obrigado.

Resposta:

Deve escrever-se «mau humor», sem hífen.

Os compostos de substantivo e adjetivo são hifenizados em função de um critério subjetivo, segundo o qual são compostos e levam hífen aquelas expressões que encerrem um significado próprio, não redutível aos das palavras constituintes. Sucede que o critério se aplica com variações, ficando muitas vezes entregue à tradição dicionarística, o que significa que há muitas locuções que poderiam ser hifenizadas e não são. Por exemplo, mau-olhado tem hífen, mas «mau gosto» não o inclui. Tal é o caso, também, de «mau humor».

Sendo assim, tendo em conta as fontes consultadas, verifica-se que a expressão «mau humor» não tem entrada lexicográfica, mas pode fazer parte de um artigo de dicionário, como subentrada. É o que acontece no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que regista «mau humor» no verbete que corresponde a mau e define a expressão como «estado de quem está agressivo ou irritado», juntando-lhe uma abonação de Júlio Dinis: «Ontem separámo-nos de tão mau humor que hoje acordei com remorsos.» (A Morgadinha dos Canaviais, Porto, Livraria Lello Lta., 1932, pág. 375).

Pergunta:

Quando se utiliza o termo "don juan" como adjectivo, este deve ficar em minúsculas? Por exemplo: «aquele don juan brincou com os meus sentimentos.»

Resposta:

Pode usar o nome próprio como predicativo do sujeito, equivalendo a um adjetivo com essa função – «ele é um Don Juan» (ou «um D. Juan»), tal como diz «ele é um Einstein», para referir uma pessoa genial. A personagem de Don Juan, ou, mais precisamente, D. Juan Tenorio, foi criada pelo dramaturgo espanhol Tirso de Molina (1579-1648), que lhe deu os atributos de sedutor cruel que a imortalizaram na cultura ocidental. 

Refira-se, contudo, que dois dicionários portugueses (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e dicionário da Porto Editora, em linha na Infopédia ) registam dom-joão como substantivo comum, com o significado genérico de «homem que seduz facilmente as mulheres». No dicionário Houaiss (1.ª edição, 2001), também se acolhe a entrada dom-joão, à qual se diz em nota que "donjuan" «foi mais corrente em Portugal»; contudo, as fontes portuguesas, não consignando esta forma, não confirmam a observação do dicionário brasileiro. Este regista ainda donjuán, mas em nota de uso observa-se que tem «emprego não raro irônico» e que «no Brasil [se usa] [...] diretamente o antropônimo castelhano antecedido de seu título, Don Juan, razão por que, ao escrever-se, devem empregar-se iniciais maiúsculas sem o hífen: ser um Don Juan, um sedutor incorrigível». Como foi dito inicialmente, mesmo em Portugal, o nome próprio espanhol também pode ocorrer com maiúsculas iniciais. E diga-se, por último, que existe uma versão portuguesa para o nome desta personagem-tipo – Dom João –, que justifica o substantivo comum dom-joão.