Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Desejo saber se 1) «o bastante/suficiente» é uma expressão adverbial; e se 2) algum gramático abona tal classificação. Exemplo: «Eu lhe dei um apartamento. Foi um ato generoso o bastante/suficiente do seu ponto de vista?» Realmente, é curiosa esta construção... não encontrei explicação em lugar algum. Por isso recorri a vocês.

Obrigado!

Resposta:

Os usos adverbiais de «o bastante» e «o suficiente» estão atestados em obras literárias e em dicionários, são legítimos e permitem considerar que essas expressões são locuções adverbiais – note-se que são grupos nominais de comportamento adverbial, à semelhança de «todos os dias» («viajo de autocarro todos os dias»). No entanto, tendo em conta as fontes consultadas para esta resposta, não parece ter-se consagrado tal classificação, nem se deteta doutrina normativa que lhes seja favorável ou desfavorável.

Em textos literários do século XX encontram-se os usos em questão:

1 – «Por conseguinte não as compreendeu logo e confundiram-no o bastante para a Judite tomar a iniciativa de resolver daquela maneira a questão» (Almada Negreiros, Nome de Guerra, 1925, in Corpus do Português).

2 – «Procurei o fecho e levantei-o. Estava aberta. Empurrei-a o bastante para poder passar e na penumbra de uma luz baça, que entrava por uma fresta da parede, vi uma grande cave vazia, que antigamente devia ter sido adega» (Manuel da Fonseca, Rio Turvo, 1945, in Corpus do Português).

3 – Não devia ser assim tão difícil morrer. Não o acompanhava o suficiente, não era a participante ideal da inquietação dele? (Urbano Tavares Rodrigues, Os Insubmissos, 1976, in Corpus do Português).

 «Adhian dominou-se

Pergunta:

"Escortanhar" significa para mim «cortar em pedaços não homogéneos mas pequenos e irreversíveis (irreconstituíveis) e sem uma razão positiva (será por maldade, ou despeito, ou por raiva)». Gostava de saber se existe.

Obrigada.

Resposta:

Nas fontes disponíveis, não se acha a forma "escortanhar". A que se encontra abonada é a forma escortinhar, com o significado de «cortar, recortar em pedacinhos» (Revista Lusitana, XVI, 236; Cândido Figueiredo, Novo Diccionario da Lingua Portuguesa, 1913; José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa – neste último, também se regista escortinar, nas mesmas aceções). É de supor que "escortanhar" seja variante de escortinhar, verbo, de resto, associado a um registo informal, de caráter popular (o que não impede o seu aproveitamento em textos literários e jornalísticos).

Pergunta:

O verbo fugir é regular, ou irregular? Estava convencido de que era irregular porque há alteração do radical (fujo/fugi) mas na Wikipédia encontrei o seguinte: «Não é considerada irregularidade a alteração gráfica do radical de certos verbos para conservação da regularidade fonética, ex.: vencer-venço, fingir-finjo.» Agradeço esclarecimento.

Resposta:

Considera-se geralmente que o verbo fugir (fujo, foges, foge, fugimos...) é irregular, e é assim que ele é tratado no contexto escolar não universitário. Nas gramáticas escolares que seguem o Dicionário Terminológico, os verbos que mostram alternância vocálica no presente do indicativo como fugir  – p. ex., cobrir ou dormir  estão entre os verbos irregulares (ver Nova Gramática do Português, Santillana/Constância, 2011, p. 89; Domínios  Gramática da Língua Portuguesa, Plátano Editora, 2011, p.126). Esta é, portanto, a perspetiva adotada nos ensinos básico e secundário, em Portugal.

Não obstante, importa registar que Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática da Língua Portuguesa, embora aceitassem esta classificação, que é tradicional, observavam que casos como o de fugir não são propriamente enquadráveis entre os verbos irregulares e, por isso,  propunham a definição de uma subclasse de «verbos com alternância vocálica» (p. 412):

«Às vezes a alternância vocálica observa-se nas próprias formas rizotónicas [= as formas cuja sílaba tónica pertence ao radical]. Por exemplo: subo, em contraste com sobes,

Pergunta:

Qual das seguintes hipóteses se encontra correta? Porquê? O pronome reflexivo faz falta?

(a) Quero convidar a ti e à tua família para uma festa que estou a organizar.

(b) Quero convidar-te, a ti e à tua família, para uma festa que estou a organizar.

Muito obrigado!

Resposta:

Aconselho «quero convidar-te a ti e à tua família para uma festa que estou a organizar», mas, neste caso, considero que não se pode dizer que a omissão do pronome -te seja inaceitável. Explico porquê a seguir.

Para que «a ti» tenha a função de complemento direto, é geralmente necessário que seja antecedido do pronome átono correspondente – te: diz-se/escreve-se, portanto, «quero convidar-te a ti», dando-se à relação entre o pronome te e a expressão «a ti» uma função enfática (para se sublinhar que o interlocutor é a pessoa convidada, e não outra pessoa).

Atenção que, na frase, se emprega o pronome átono te, que, nesse contexto, não é reflexo, uma vez que não retoma o sujeito da frase («eu», subentendido). A frase em questão apresenta também um elemento coordenado, «e à tua família». Se não se associasse a «a ti» ou a outra expressão preposicional com pronome («a mim», «a si»), a expressão seria «a tua família», que não poderia ser antecedida do pronome átono correspondente (as expressões nominais não reforçam pronomes átonos): «quero convidar a tua família» (não é possível «quero convidá-la à tua família»).

Contudo, na frase em discussão, «a tua família» está coordenada a «a ti», e, de modo a garantir a congruência sintática entre os elementos coordenados, também a expressão nominal é precedida da preposição a, embora mantendo a função de complemento direto (sobre complementos diretos preposicionados, ler Louvai ao Senhor ou Louvai o Senhor).

Por outras palavras, o pronome átono te é reforçado ou enfatizado por «a ti», que, por último, é coordenado com «à tua família». Esta ...

Pergunta:

Qual a origem do verbo entanguir-se (entanguidos, por ex.)? É algum regionalismo (Algarve, por ex.)? É aceitável a variante "enteguir-se"?

Resposta:

Entanguido não é um regionalismo algarvio, mas, sim, um vocábulo do português popular. Assinale-se, porém, que, entre as fontes consultadas para elaboração desta resposta, as variantes enteguido (pronunciada "entèguido") e intenguido, por exemplo, figuram no Dicionário do Falar Algarvio (Faro, Algarve em Foco Editora, 1996), de Eduardo Brazão Gonçalves, com este significado: «Tolhido de frio. De: entaguecer = encolher-se com frio».

Ambas as formas, entenguido e integuido, ocorrem noutras regiões do país (cf. Tesouro do Léxico Patrimonial Galego e Português). Por exemplo, os dicionários gerais consultados (Dicionário Houaiss, dicionário da Porto Editora e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) registam entanguir e entanguecer como variantes do mesmo verbo ou como sinónimos que, segundo o Dicionário Houaiss, significam «tornar(-se) hirto de frio; enregelar(-se)».

De acordo ainda com esta última fonte, os referidos verbos terão origem em tango, homónimo de tango (dança), mas que será um regionalismo de Portugal com o significado de «galho», «pau». Observe-se, porém, que os dicionários da Porto Editora e da Priberam – elaborados e mantidos em Portugal – não acolhem tango em tal aceção, embora con...