Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Vinha perguntar como classificar a locução «por isso», uma vez que surge sempre nas gramáticas como locução conjuncional ou conjuntiva, apesar de se constituir exatamente como as locuções adverbiais.

Obrigada pelo vosso ótimo trabalho!

Resposta:

A descrição gramatical tradicional classifica «por isso» como uma locução, muito embora haja divergências quanto ao seu caráter funcional, que umas fontes definem como conjuncional e outras como adverbial. Atualmente, porém, a sua inclusão entre os advérbios e as locuções adverbiais tem maior favor, pelo menos, em Portugal, no contexto da descrição gramatical não universitária –ver Dicionário Terminológico (DT).

No quadro tradicional de análise, há quem mencione «por isso» entre as conjunções coordenativas conclusivas (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, João Sá da Costa Editores, p. 577). Contudo, diga-se que a expressão «por isso» está classificada como locução adverbial no verbete correspondente a isso do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa1. Por outro lado, mesmo entre gramáticos tradicionais, não é aceite a inclusão de «por isso» entre as conjunções – ou, mais especificamente, entre as locuções conjuntivas, dado a sequência «por isso» estar formada por duas palavras. Por exemplo, Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (Editora Nova Fronteira/Editora Lucerna, 2009, pág. 322) considera que, na coordenação, existem unidades adverbiais que não são conjunções, observando o seguinte:

«Levada pelo aspecto de certa proximidade de equivalência semântica, a tradição gramatical tem incluído entre as conjunções coordenativas certos advérbios que estabelecem relações interoracionais ou intertextuais. É o caso de pois, logo, portanto, entretanto, contudo, todavia

Pergunta:

Numa troca de ideias surgiram opiniões diferentes quanto à palavra agarra na expressão «agarra, que é ladrão!». Pode, ou não, ser considerada uma interjeição neste contexto?

Obrigada.

Resposta:

A forma verbal agarra está registada como interjeição no Dicionário Houaiss. No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, figura, em subentrada de agarrar, a expressão «agarra, agarra» como «grito para chamar a atenção e avisar que há alguém em fuga, geralmente um ladrão», que tem a variante «agarra, agarra, que é ladrão!»; note-se que não se lhe atribui explicitamente a classificação de interjeição, muito embora esta não seja descabida, dado o uso exclamativo. Em suma, confirma-se que agarra é classificável como interjeição.

Cf. Interjeição

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o galicismo existente no trecho abaixo transcrito, extraído da obra Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco (1825-1890):

«Paula fitou-me e coçou a testa com o leque. Noutro intervalo da dança continuei: Por que não respondeu à minha carta? Era impossível. Eu já dei o meu coração. Por delicadeza lhe não devolvi a sua carta, e peço-lhe que me não escreva outra, que me compromete, respondeu ela. Não me soou bem este galicismo dos lábios de Paula. Eu, em todas as situações da minha vida, quando vejo a língua dos Barros e dos Lucenas comprometida, dou razão ao filósofo francês que, à hora da morte, emendava um solicismo da criada, protestando defender até ao último respiro os foros da Língua. E com que admiração eu leio aquilo do gramático Dumarsais, que, em trances finais de vida, exclamava: "Hélas! Je m'en vais... ou je m'en vas... car je crois toujours que l'un et l’autre se dit ou se disent!"»

Muito obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

O verbo comprometer, no sentido de «pôr alguém em risco» ou «levar alguém a uma situação desonrosa», é etimologicamente um galicismo, mas, pelo menos, há perto de 60 anos, já se considerava que era palavra assimilada pela língua, conforme se pode verificar por um comentário de Vasco Botelho de Amaral, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, de 1958 (mantém-se a ortografia do texto original):

«Comprometer. É galicismo muito vulgarizado, na acepção de: deixar ficar mal, arriscar, deixar a qualquer em má posição, aventurar, pôr a risco, expor a desar a honra, o crédito, ou a reputação de alguém. Com estas dições se variará o estilo, mesmo que o comprometer já não saia, como parece.»

Pergunta:

Porque é que enviamos cumprimentos no fim de um e-mail ou de uma carta? Procurei o significado da palavra em várias fontes diferentes, e tudo o que surge é uma definição da palavra que surge do verbo cumprir, no sentido de se sujeitar a, realizar o prometido e outras definições na mesma linha.

Obrigada!

Resposta:

O verbo cumprir tinha em português – à semelhança das palavras cognatas noutras línguas de origem europeia – o sentido de «cumprir com a suas obrigações», incluindo as da cortesia e da delicadeza. O derivado cumprimento terá tornado mais saliente essa aceção; mas sabemos que o inglês compliment («elogio») e o francês compliment (o mesmo significado) adquiriram esse significado por analogia com o italiano complimento, «expressão de reverência». Esta forma italiana também influenciou a semântica do espanhol cumplimiento e do português cumprimento. Na nossa língua, cumprimento acabou por ser muito usado como o mesmo que «ato de expressar saudações», ou seja, como forma de despedida que satisfaz o dever de cortesia ou deferência.

Pergunta:

Tenho-me deparado com uma expressão que não conheço e não consigo compreender. Sempre usei «vergonha alheia», num sentido que agora vejo ser usado por algumas pessoas como «vergonha reflexa». Será que me pode explicar se estas expressões estão correctas ou qual a diferença entre elas, se é que a segunda existe sequer?

Obrigada.

Resposta:

Não encontro registo dicionarístico da expressão «vergonha alheia», mas reconheço que a expressão se usa ou já se usou mais para referir a vergonha que se sente pelo comportamento ou pela apresentação de outrem. Noutras fontes, é possível encontrar a expressão quer em textos portugueses quer em textos brasileiros, por exemplo nos corpora da Linguateca (mantém-se a ortografia original):

1 –  «Ou melhor o que me fez sentir uma puta vergonha alheia dela e o jeito que Malu conta parece piorar a situação...»

2 – «A mãe Ângela Cristina é a personagem mais engraçada do livro, suas cenas são sempre as mais legais, passei tanta vergonha alheia lendo esse livro.»

3 – «Confundir irreverência com sensacionalismo e imbecilidade, como bastas vezes aconteceu ao longo da primeira emissão com o inestimável e prestimoso auxílio daquele clown madeirense que em tempos foi conhecido pelo "Barão do Quebra-Costas" e que hoje lidera o Governo regional, deixa no espectador a desagradável sensação de passar por vergonha alheia

4 – «A princípio lhe dava coisa, uma certa vergonha alheia, mas pouco a pouco ele foi se acostumando aos amigos de José e começou a apitar os partidos de voley dos campeonatos promovidos pelo Grupo Gay de Madri.»

Quanto a «vergonha reflexa», também não encontro registos lexicográficos, mas depreendo que significa o mesmo que «vergonha alheia» pela informação disponível numa página da Internet. Ocor...