Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra lingerie consta no léxico do Dicionário da Porto Editora e do Dicionário Priberam. O único senão é que a transcrição fonética é [lɐ̃ʒəˈri], ou seja, é a pronúncia francesa. Não se deveria escrever "langerie" em vez de lingerie? Ou, pelo contrário, não se deveria aportuguesar a pronúncia de lingerie para "lingerie"?

Resposta:

Não parece existir ainda aportuguesamento estável e generalizado de lingerie. Mas mantém-se a possibilidade de empregar as expressões vernáculas «roupa interior», «roupa íntima» ou «roupa de baixo» (esta já antiquada) em referência a uma parte do vestuário feminino*.

Ainda assim, quem queira usar o galicismo em questão deve grafá-lo entre aspas ou em itálico, tal como faz o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, conforme o procedimento mais corrente que se aplica aos estrangeirismos. Se procurarmos adaptar a fonética francesa à portuguesa, passando-a depois à escrita, lingerie poderá ter a forma "langeri" ou até "lanjeri", as quais, no entanto, não se atestam e podem até afigurar-se grotescas, tal é o enraizamento da grafia estrangeira na nossa memória visual.

* Segundo o Dicionário Houaiss (edição de 2001), lingerie significa «roupa íntima feminina, considerada em conjunto ou como peça individual, esp. aquela que é de fina qualidade e com ornamentos (bordados, rendas)». A mesma fonte refere que lingerie deriva de linge, «roupa branca», substantivação do adjetivo linge, «de linho»; este, por sua vez, evoluiu do latim linĕus, a, um, «de linho», derivado de līnum, i, «linho».

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra "semi-soberano" tem hífen e, caso tenha, se o perde ou não com o novo Acordo Ortográfico.

Resposta:

No contexto do Acordo Ortográfico de 1945, a palavra tem hífen: semi-soberano. Com a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), o prefixo semi- segue o disposto na Base XVI* e passa a escrever-se sem hífen, ficando aglutinado ao elemento seguinte e dobrando a letra s: semissoberano.

Sobre as regras que, no AO 90, abrangem as palavras ao lado, consultar os Textos Relacionados (indicados à direita).

* Deve dar-se atenção especial ao apartado 2 da Base XVI:

«Não se emprega, pois, o hífen:

a) Nas formações em que o prefixo ou falso prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por r ou s, devendo estas consoantes duplicar-se, prática aliás já generalizadaem palavras deste tipo pertencentes aos domínios científico e técnico. Assim: antirreligioso, antissemita, contrarregra, contrassenha, cosseno, extrarregular, infrassom, minissaia, tal como biorritmo, biossatélite, eletrossiderurgia, microssistema, microrradiografia.

b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por vogal diferente, prática esta em geral já adotada também para os termos técnicos e científicos. Assim: antiaéreo, coeducação, extraescolar, aeroespacial, autoestrada, autoaprendizagem, agroindustrial, hidroelétrico, plurianual

Pergunta:

Acabo de identificar mais uma incoerência entre dicionários. Ora, como o Ciberdúvidas me esclarece sempre, gostaria que me respondessem à seguinte questão: devemos escrever «estou à espera de uma boa-nova», ou «estou à espera de uma boa nova»? Refiro-me ao sinónimo de «boa notícia». É estranho como os dicionários continuam tão baralhados em relação aos hífenes (e eu por arrasto). Será que isto terá fim, algum dia (antes de o Acordo deixar de vigorar)?

Resposta:

Em Portugal, parece ter maior tradição a forma «boa nova», sem hífen, mas, como observa o consulente, a grafia boa-nova tem também registos dicionarísticos que são bem anteriores ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90).

Na verdade, a história da hifenização de«boa nova»/boa-nova não tem que ver diretamente com o AO 90, porque este não afeta a grafia dos compostos de substantivo + adjetivo e adjetivo + substantivo, conforme se pode confirmar pela leitura da Base XV:

«Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido: ano-luz, arcebispo-bispo, arco-íris, decreto-lei, és-sueste, médico-cirurgião, rainha-cláudia, tenente-coronel, tio-avô, turma-piloto; alcaide-mor, amor-perfeito, guarda-noturno, mato-grossense, norte-americano, porto-alegrense, sul-africano; afro-asiático, afro-luso-brasileiro, azul-escuro, luso-brasileiro, primeiro-ministro, primeiro-sargento, primo-infeção, segunda-feira; conta-gotas, finca-pé, guarda-chuva

Este preceito restringe o âmbito de aplicação do hífen do disposto na Base XXVIII das Bases Analíticas da 

Pergunta:

«(...) apesar das sucessivas declarações apaziguadoras de que a maioria das pessoas que vivem em bairros como Molenbeek em Bruxelas são gente pacífica – e são – e que condena com toda a veemência os actos de terrorismo (...)»

[José Pacheco Pereira, "Público", 26/03]

 

«... a maioria das pessoas vivem...», ou é «... a maioria das pessoas vive...»?

Obrigado.

Resposta:

Com a expressão «a maioria de», recomenda-se a concordância verbal no singular, com a palavra maioria, adotando um critério estritamente sintático. Mas, como muitas vezes a construção «a maioria de...» tem por complemento uma expressão nominal no plural, aceita-se que o verbo ocorra também no plural concordando com essa expressão nominal. Por outras palavras, não se pode dizer que estejam incorretas as sequências «a maioria das pessoas vivem» ou «a maioria das pessoas são».

Note-se, porém, que a concordância da ocorrência do verbo viver na frase em causa se verifica numa oração relativa e, portanto, o seu sujeito é o pronome relativo que, e não «a maioria das pessoas» nem «as pessoas»:

1 – «... a maioria das pessoas que vivem em bairros como Molenbeek...»

Em 1, a expressão «a  maioria de...» especifica uma expressão nominal – «as pessoas que vivem em bairros como Molenbeek...» –, modificada pela oração subordinada adjetiva relativa «que vivem em bairros como Molenbeek...». O antecedente de que é, portanto, «as pessoas», e não «a maioria d(as pessoas)», e, como tal, o verbo («vivem») pluraliza de acordo com o pronome que, cujo valor de plural se deve justamente ao seu antecedente, «as pessoas», no plural.

Pergunta:

Escreve-se «abnegação ao trabalho», ou «abnegação do trabalho»?

O contexto é «... a imagem do ser submetido às relações do mercado, cujo sucesso depende apenas da abnegação do trabalho e do génio pessoal...».

Obrigada.

Resposta:

O substantivo abnegação, com o significado de «renúncia», seleciona a preposição de para introduzir o seu complemento: «a abnegação do trabalho e do génio pessoal». Esta é a preposição que se associa a abnegação no Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos de Francisco Fernandes (Editora Globo, 1995); exemplos: Mostrava assim a mais completa abnegação das coisas temporais» (Aulete, idem); «Abnegação de si mesmo» (Vieira, Sermões, idem).

Note-se que o verbo donde este substantivo deriva, abnegar, pode ser usado quer como transitivo direto quer como transitivo indireto – e, neste último caso, é de a preposição que rege o complemento: «transitivo direto e pronominal 1 renunciar a (os próprios interesses e/ou as tendências naturais) ou sacrificar-se em benefício de outrem ou em nome de uma ideia, de uma causa; Ex.: "abnegou a vida de prazeres para lutar pelos grandes ideais"; "aqueles que se abnegarem de si terão altas recompensas morais";  transitivo direto 2 não admitir, não aceitar; lançar fora, desprezar; Ex.: abnegava a injustiça e a impiedade» (Dicionário Houaiss, 2009; sublinhado meu).