Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho dúvidas no plural da expressão «não fora». Como se faz a concordância do verbo ser na frase «não fora o polícia estar distraído, ter-me-ia apanhado», no caso de nos referirmos a vários polícias?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «não fora» mantém-se no singular, porque se refere a uma oração no infinitivo, e não a «o polícia» ou «os polícias» – «[não fora] o/os polícia/polícias estar/estarem distraído/distraídos». Compreende-se que é assim, quando substituímos a oração pelo pronome isso:

1 – «Não fora os polícias estarem distraídos, ter-me-iam apanhado.»

2 – «Não fora isso, ter-me-iam apanhado.»

Claro que 2 só terá sentido se ocorrer num contexto como se ilustra em 3:

3 – «Os polícias estavam distraídos. Não fora isso, ter-me-iam apanhado.»

 Refira-se ainda que construção «não fora» é equivalente a «se não fosse» ou «não fosse», que têm o mesmo comportamento com orações:

4 – «Se não fosse/Não fosse os polícias estarem distraídos, ter-me-iam apanhado.»

5 – «Se não fosse/Não fosse isso, ter-me-iam apanhado.»

Pergunta:

É frequente verem-se cartazes de divulgação de congressos e seminários em que se coloca numeração romana com numeral ordinal. Exemplos: «IV.º Congresso»; «XIX.º Colóquio», etc. É correto?

Obrigado.

Resposta:

Transcrevo o que é dito na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 924):

«Quando representam numerais ordinais, os símbolos romanos nunca são seguidos das letras elevadas o(s) e a(s) (p. e., X Encontros da APL), contrariamente ao que acontece na escrita dos numerais ordinais do sistema de numeração indo-árabe (p. e., 1.º classificado).»

Pergunta:

Encontro o sufixo elo ou elos, em muitas palavras, como por exemplo: Mindelo, Ermelo, Barcelos, Formoselos...

Será correcto afirmar que é um sufixo que significa «lugar de...», semelhante ao sufixo -eiro, que significa «profissão de...»?

Resposta:

O sufixo -elo tem um valor diminutivo herdado da forma que está na sua origem, o latim -ellu-1: Mindelo (Vila do Conde) < *amenetellu (de *amenetum, «amial, amieiral, lugar onde existem amieiros» – o * indica forma hipotética ou não atestada nas fontes do latim); Ermelo (Mondim de Basto, Arcos de Valdevez), como diminutivo de ermo («lugar deserto, solitário procurado por eremitas» e, daí, «ermida monástica, cenóbio»; ver Ermelo em A. Almeida Fernandes, Toponímia Portuguesa – Exame a Um Dicionário, 1999); Barcelos < *barcellos, de uma forma não atestada *barc(u)-, talvez de origem pré-romana, no sentido de «depressão no terreno» (ver Barcelo, idem). O topónimo Formoselos (Ribeira de Pena) parece ter origem num nome próprio ou, mais especificamente, num apelido, Formoselo  – ou *formosellu- –, que já integraria o diminutivo -elo ou -ellu (ver Formoselos em José Pedro Machado,

Pergunta:

Permitam-me apresentar a seguinte questão que, para vocês, pode não ter qualquer interesse linguístico, mas, para mim, que aprendi a falar o português dos meus antepassados e conterrâneos, que muito respeito, ficava-lhes grato se me pudessem esclarecer se ela tem ou não justificação e se deveria ou não ser tida em consideração e respeitada.

Quanto ao significado do substantivo eirô, escrito com “ô” fechado, nome de um velho casal (unidade de exploração agrícola antiga), como sempre foi reconhecido, assim escrito e pronunciado, os dicionários da língua portuguesa desconhecem-no, mas reconhecem o termo "eiró" (com “ó” aberto), como derivando do latim hydreôla, diminutivo de hidra: «cobra de água (doce e fria)», ou «enguia»; ou então do nome masculino, regionalismo de eira de piso térreo, do latim, aréola: «pátio pequeno». Nos documentos que encontrei, a partir de 1519, relacionados com este casal ou casa, feitos, nomeadamente, por escrivães e tabeliães de Mosteiros (gente erudita da época, conhecedores de português e latim), a palavra eirô vai aparecendo, sucessivamente escrita, nas seguintes formas: eyroo, eiroo, eiro ou eyro e eyrô ou eirô, eirô, o que, como mero leigo observador, me parece poder conduzir à derivação da palavra latina hydreôla, independentemente de estar relacionada com eira (existindo, efectivamente, no interior da actual multissecular Casa do Eirô, um pátio térreo chamado eira), ou com «hidra de água doce e fria» ou enguia (espécie de peixe que, em outras eras, poderia ter vivido no ribeiro que passava junto).

Em reforço do apresentado, é verdade que o substantivo eirô, ainda hoje, aparece escrito, nesta forma, em vá...

Resposta:

O mais provável é que todos os topónimos que refere tenham origem no latim vulgar *areolu-1 ou *areola-, e não se relacionem com *hydreola-, que terá dado eiró, «enguia» (cf. eiró2 em José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, 1987).

É no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa que José Pedro Machado sugere as duas etimologias para o topónimo Eiró (com acento agudo). No entanto, a possibilidade de os topónimos Eirô e Eiró terem a mesma origem que eiró («enguia) é muito discutível, como bem ilustra a posição de A. de Almeida Fernandes, que em Toponímia Portuguesa – Exame a Um Dicionário (1999, s.v. Eiró), autor que considera que Eiró só poderá ter origem no latim *areola, diminutivo do latim area, areae, «superfície plana, espaço geométrico, terreno, praça, horta, campo» (Dicionário Houaiss). E, de facto, a documentação medieval atesta formas como eiroo e eiroa, as quais parecem ser o resultado de *areolu- e *areola, com a queda do -l- intervocálico característica do romance galego-português e a metátese de E (deslocação para o...

Pergunta:

Devo escrever «leitora beta», ou "leitora-beta"?

Resposta:

A palavra beta, no sentido de «versão experimental (de programa informático)», é usada como adjetivo dos dois géneros*. Nesse caso, não é obrigatório o hífen; na verdade, até já se regista beta como adjetivo dos dois géneros, tal como acontece com lisboeta, o que permite aceitar «leitora beta» e «leitor beta», sem hífen, tal como se escreve «leitora lisboeta» e «leitor lisboeta».

Acrescente-se que «leitor beta» é a tradução do inglês «beta reader», denominação do leitor não profissional que lê um livro geralmente de ficção no intuito de propor correções e alterações de caráter gramatical, ortográfico, estilístico ou narrativo antes de a obra ser publicada (cf. Beta reader, artigo em espanhol na Wikipédia).

* Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista beta como adjetivo de dois géneros que se aplica ao «que constitui ou é relativo a uma versão experimental ou de teste de um programa informático ou afim (ex.: versão beta)». O dicionário da Porto Editora inclui como subentradas de beta as expressões «teste beta» e «versão beta», ambas usadas no domínio da informática: a primeira refere-se à «utilização experimental de um programa ou produto na fase final do seu desenvolvimento para deteção de problemas por parte de utilizadores selecionados (beta testers)»; e «versão beta» designa um «programa ou produto destinado a testes de verificação que é distribuído, na fase final do seu desenvolvimento, a utilizadores selecionados (beta testers)».