Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No texto de abertura do passado dia 8 de Abril, fiquei admirado de ter lido que "ôro" é a pronuncia-padrão da palavra ouro. Confessem-me que é uma mentira atrasada do dia 1 de Abril...!

Resposta:

Quando se fala em pronúncia-padrão, não significa que, com esse termo, se refira uma pronúncia vista como a única correta. Nem se julgue que a grafia é espelho da pronúncia (julgar isso é que poderá ser ser, paradoxalmente, a verdadeira mentira de 1 abril). Vou procurar, portanto, esclarecer um pouco melhor a afirmação feita na Abertura em causa.

Em Portugal e noutros países de língua portuguesa, as palavras escritas que exibem ou são geralmente pronunciadas não com o ditongo [ow], mas, sim, com a vogal [ô] (o chamado o fechado). Numa perspetiva puramente descritiva (não normativa), é isto que se observa junto de muitos falantes, se não mesmo entre a maioria dos falantes do português do Centro e do Sul de Portugal.

Nada do que se acaba de referir entra em choque com conservação do ditongo pelos falantes do terço norte de Portugal; mas a verdade é que a pronunciação representada nas transcrições fonéticas disponíveis nos dicionários – dê-se o caso do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – indica uma vogal simples, e não um ditongo. Pode argumentar-se que nos dicionários produzidos no Porto se transcreve <ou> como ditongo – [ow] (ver transcrição fonética de ouro no dicionário da Porto Editora, disponível na Infopédia). É isto verdade, mas o símbolo da semivogal [w] figura entre parênteses, indicando-se que esta semivogal é possível e aceitável na articulação, mas não é obrigatória: «ouro [...] [ˈo(w)ru]».

Parece, portanto, que a pronúncia mais comum que corresponde à grafia <ou> é com uma vogal simples – "ô". E, além de ser mais comum, a redução do ditongo a vogal simples é também um traço da pronúncia-padrão correspondente à grafia <ou>. Não se pense...

Pergunta:

Tanto quanto sei, deve escrever-se «ele tem um Ferrari e um picasso». E se, além disso, o ricaço em questão possuir um violino feito por Stradivarius? O correcto será acrescentar «e ainda um Stradivarius» (equivalente a marca), ou «e ainda um stradivarius» (obra)?

[...] [Recordo] uma [...] resposta dada, por Rui Gouveia, no [...] Ciberdúvidas, e que me parece absolutamente lógica: «Há uma figura de retórica chamada metonímia, que consiste, “grosso modo”, em substituir uma palavra (ou um conjunto delas) por outra com a qual tenha qualquer relação por dependência de ideia. É o que acontece, por exemplo, na frase "Quem me dera ter um picasso na parede da sala!", em que "picasso" está por "quadro da autoria do pintor espanhol Pablo Picasso".»

Relativamente ao violino construído por Stradivarius:

Julgo que deve escrever-se «um Bösendorfer», à semelhança de «um Ferrari», porque esta em causa uma marca (de pianos). E, por extensão, também «um Stradivarius», embora, neste caso, não se trate exactamente de uma marca. Mas isto é apenas um «palpite», motivo pelo qual vos coloquei a minha pergunta.

Mais uma vez, obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

É legítima a minúscula inicial de picasso, usado como nome comum em «um picasso», mas legítima também parece a grafia ferrari (em itálico, mantendo a grafia italiana; ferrári, aportuguesando-a), igualmente com minúscula inicial, para referir um carro da marca Ferrari.

Eis as razões:

1. Os acordos ortográficos que têm vigorado em Portugal (tanto o de 1945 como o de 1990) não se referem diretamente aos casos em questão, os quais consistem na reutilização de nomes próprios de pintores e de marcas como nomes comuns. No entanto, o acordo de 1945 (Base XXXIX) observa que «[..] [r]elativamente a[os nomes de raças, povos ou populações, qualquer que seja a sua modalidade, os nomes pertencentes ao calendário, com excepção das designações dos dias da semana, escritas sempre com minúscula, e os nomes de festas públicas tradicionais], [...] é importante distinguir deles as formas que podem corresponder-lhes como nomes comuns e que, como tais, exigem o emprego da minúscula inicial: "muitos americanos", "quaisquer portugueses", "todos os brasileiros"; "fevereiro" (nome de uma ave), "outonos" (cereais que se semeiam no Outono), "primavera" (nome de plantas)». É verdade que parte do que se diz nesta passagem não é mantida pelo acordo ortográfico de 1990 (AO 1990), o qual determina a minúscula inicial para os «nomes pertencentes ao calendário»; no entanto, interessa é realçar que o texto de 1945 estabelece o princípio da minúscula inicial nas fo...

Pergunta:

A palavra anestesia é derivada, ou composta?

Resposta:

A palavra anestesia é derivada, sendo assim analisada (cf. anestesia, no Dicionário Houaiss):

an-, "não, sem" + estesia, "faculdade de perceção pelos sentidos"

Na Gramática Derivacional do Português (Coimbra, 2013, p. 357), de G. Rio-Torto et al., menciona-se anestesia como palavra resultante da derivação com o prefixo an-:

«O prefixo a-, com origem no grego a(n)-, veicula uma informação de ‘privação de x’ (acaule, amoral) que, no caso de alguns adjetivos, se manifesta sob a forma de ‘não x’ (acatólico, agramatical, anormal, atípico). Como estes exemplos comprovam, o prefixo a- acopla-se a adjetivos de relação, com valor tipicamente classificatório, que em regra são incompatíveis com in-, pelo menos na sua leitura literal. A inexistência de verbos prefixados em a(n)- deve-se ao facto de o sentido de ‘privação de x’ ser semanticamente não compatível com um evento denotado pelo verbo. Daí a agramaticalidade da combinatória. Muitos dos produtos em que ocorre são termos eruditos e/ou técnicos (anaeróbico, anencefalia, anovulatório) e grecismos (analfabeto, anarquia, anemia, anestesia, afónico, anónimo, ateu, átono). Os poucos casos em que o prefixo, com valor privativo, se combina com nomes (assimetria, assintonia, agramaticalidade) são também de feição erudita.»

Pergunta:

Qual a origem do nome da "velha" e, supostamente, fortificante sopa de cavalo cansado, feita com pão e vinho?

Obrigado!

Resposta:

Há quem queira atribuir a denominação «sopas de cavalo cansado» à prática antiga de dar o alimento assim chamado aos animais de tiro ou carga para recuperarem energia:

«Na época das carruagens, nas aldeias de Portugal, quando nas pousadas não havia cavalos descansados ​​para substituir e continuar a viagem, davam estas sopas com vinho e açúcar para os animais, que os deixavam refrescados e cheios de energia» (blogue Portugaldantigamente, consultado em 29/01/2016).

Não encontro confirmação desta tese noutras fontes portuguesas, mas numa página espanhola da Internet (Fran Chef, el cocinero), na qual se comenta a origem das também galegas sopas de cabalo cansado, considera-se que a denominação alude à maneira «[...] como se revitalizaba a los caballos, mulas y asnos que se utilizaban como fuerzas motrices a la hora de mover arados, trilladoras y otros aperos de labranza que necesitaban tracción animal» (= «... como se revitalizavam os cavalos, mulas e asnos que se utilizavam como forças motrizes para puxar arados, debulhadoras e outras alfaias agrícolas que necessitavam de tração animal»). Devo referir, porém, que não pude achar obras de referência que corroborassem esta explicação.

Entretanto, assinalo que, em português, além de «sopas de cavalo cansado», se regista ainda a expressão «sopas de burro cansado» (ver sopas em A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Reg...

Pergunta:

É incorreto escrever «fazer que» ou «faz que»? Só pode usar-se «fazer com que» ou «faz com que»? Qual é a diferença ou em que contexto se justifica o uso de uma e/ou de outra forma?

Resposta:

Não é incorreto empregar «fazer que (alguma coisa aconteça)» – pelo contrário. Contudo, não se diga que é incorreta a construção «fazer com que (alguma coisa aconteça)».

Certos puristas (por exemplo, Cândido de Figueiredo) consideravam que «fazer que» era melhor do que «fazer com que», quando se tratava de marcar um sentido causativo («ele fez que o computador se avariasse» vs. «ele fez com que o computador se avariasse»). No entanto, já Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Subtilezas e Dificuldades do Idioma Português, 1958) defendia que «fazer com que» e «fazer que» eram ambas expressões corretas, estando a primeira documentada, pelo menos, desde os princípios do século XVI, em textos literários, incluindo os dos autores clássicos do século XIX.