Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Vários especialistas e reputados políticos têm utilizado ultimamente as expressões “ecossistema informático”, “ecossistema económico”, “ecossistema financeiro”, etc. Não sendo filólogo, penso que ecossistema é uma palavra composta, em que o elemento eco derivou da ciência dita ecologia (ramo da biologia). Ora, de acordo com o livro de ecologia mais frequentemente utilizado no ensino em Portugal – Eugene P. Odum. Fundamentos de Ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian –, «ecologia é definida como o estudo da relação dos organismos ou grupos de organismos com os seus meios ambientes, ou ciência das inter-relações entre organismos vivos e o seu ambiente».

Assim, afigura-se-me que aqueles ilustres senhores talvez queiram dizer (no caso da economia, informática, etc.) “holossistema”, isto é, um sistema “holístico” – «Holo: elemento grego que exprime a ideia de ‘inteiro’, ‘todo’».

Será, pois, correto dizer, como os políticos da recente ‘vaga’, “ecossistema económico”?

Grato pelo esclarecimento.

Resposta:

A expressão «ecossistema económico» está correta.

Pode concordar-se com a reflexão do consulente, porque os termos ecossistema e ecologia têm andado associados à discussão à volta do ambientalismo ou do ecologismo. Contudo, a verdade é que o vocábulo ecossistema está atualmente a ser empregado de forma mais alargada, aplicando-se a qualquer sistema ou rede de elementos e partes que interagem. Esta extensão semântica parece ser, no fundo, um empréstimo semântico do inglês ecosystem, que denomina não só um sistema de seres vivos, mas também qualquer sistema de partes em interação (cf. Dictionary.com). Mas note-se que a legitimidade do uso de ecossistema fora do contexto do discurso ambientalista acha fundamento na própria semântica de um dos seus elementos constitutivos. Com efeito, o radical eco- encontra-se, por exemplo, na palavra economia e, portanto, não se relaciona diretamente com a noção de ser vivo; na verdade, o significado etimológico de eco- tem âmbito mais restrito, uma vez que tem origem no grego oîkos, ou, «casa, habitação; bens, família» (cf. Dicionário Houaiss). Além disso, antes de a expressão «ecossistema financeiro» entrar na moda, já ecologia era definível como «estudo das relações recíprocas entre o homem e seu meio moral, social, económico (Ex.: economia social, economia criminal)» (idem). Sendo assim, compreende-se que ecossistema seja compatível com a extensão semântica que está a emergir em português por pressão do inglês ecosystem.

P. S. – Para quem reaja mal à ambiguidade do radical eco- (ou já

Pergunta:

Na expressão «não vos faz querer ler o livro», se eu quiser substituir «o livro» por um pronome pessoal, como devo proceder? Eu responderia «não vo-lo faz querer ler», mas estou em dúvida também com «não vos faz querer lê-lo». Qual das formas está correta (ou ambas são corretas)?

Agradeço a atenção.

Resposta:

É possível dizer «não vo-lo faz querer».

Nesta construção, vos desempenha a função de complemento indireto, e o, a de complemento direto, funcionando «faz querer ler»  como um complexo verbal, em condições semelhantes à construção de auxiliar + verbo principal (cf. «pode ler»). A este tipo de construção chamam certos linguistas uma «união de orações» (cf. Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 1961-1966). Diga-se, além disso, que a estrutura em apreço tem alguma complexidade, porque associa uma construção causativa («faz querer...») à completiva de um verbo volitivo, querer (na linguística, chamado «verbo de controlo»).

Sendo assim, considere-se o uso de pronomes da 3.ª pessoa nos seguintes exemplos:

1. «Isso não faz querer ler o livro ao aluno.»

2. «Isso não lhe faz querer o livro.»

3. «Isso não lho faz querer ler.»

As frases apresentadas em 1, 2 e 3 são gramaticais. Em 1, o verbo causativo fazer associa-se à sequência verbal «querer ler o livro», cujo sujeito semântico é realizado como um complemento indireto de um complexo verbal que é toda a sequência «faz querer ler». A estrutura de 1 legitima a frase 2, e, sendo assim, também é possível pronominalizar o complemento direto «o livro», fazendo subir o pronome para junto de «faz» e operando uma combinação pronominal, tal como acontece em 3. Na perspetiva da frase 3, entende-se, portanto, que também vos possa ocorrer como complemento indireto, o que permite a combinação pronominal vo-lo:

4. «Não vo-lo faz querer ler.»

Tudo isto não exclui outra po...

Pergunta:

Qual é a origem da palavra jeca?

Resposta:

Os substantivos jeca e jeca-tatu, segundo o Dicionário Houaiss, significam «habitante do interior brasileiro, especialmente da região Centro-Sul, de hábitos rudimentares, morador da zona rural». A mesma fonte anota que os vocábulos têm origem no «nome da personagem [Jeca-Tatu] do conto Urupês (1918), de Monteiro Lobato (1882-1948, escritor brasileiro), tornado substantivo comum». José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (Livros Horizonte, 2003), sugere que Jeca, como nome próprio, é alteração de Zecahipocorístico de José.

Pergunta:

Ao apresentar uma lista de palavras formadas pelo sufixo -ança (abastança, chegança, chibança, chupança, cobrança, etc), Houaiss (2009) cita "constança". Ao buscar esta entrada tanto em Houaiss (2009) como também no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (2009), não encontrei nenhum resultado. Em ambos, apenas a forma constância. Assim, uma pergunta advém: a forma "constança" é inexistente no léxico comum da língua portuguesa?

Resposta:

A forma Constança é, no português contemporâneo, um nome próprio de pessoa e um topónimo (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico, Livros Horizonte, 2003), e não um nome comum sinónimo ou variante de constância, «qualidade do que é constante» (cf. Dicionário Houaiss e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Pode, no entanto, encontrar-se essa forma, em correspondência com a forma latina constantia, numa obra do século XVIII – Indiculo (1716), de António Franco (1662-1732)*. É, portanto, legítimo concluir que constança é variante arcaica de constância.

* Na fonte aparece constanciae, ae, e não a forma correta em latim clássico, constantia, ae.

Pergunta:

Qual a origem da palavra jangada? Ameríndia (tupi), ou asiática (malaiala)?

Resposta:

Sobre o nome comum jangada, parece consensual a atribuição da sua origem ao malaiala, língua do grupo dravídico (ao qual pertence o tâmil), que se encontra especialmente concentrado no Sul da Índia. Transcreva-se, portanto, a nota etimológica que o Dicionário Houaiss (edição brasileira de 2001) dedica a este vocábulo:

«[do] malaiala cʰanggāᵈam, "balsa, dois barcos ligados para passagem nos rios", filiada ao sânscrito sánggaᵈ, "junção de dois objetos iguais; justaposição; contraposição"; segundo [Sebastião Rodolfo] Dalgado, a acepção "naire que guia ou guarda com o empenho da própria vida" explica-se por extensão de sentido "a ligação moral e indissolúvel de um indivíduo nobre, que empenha nisso a sua honra, a sua vida e até a sua família, e se faz amouco, se é necessário".»*

Outras fontes que apresentam etimologia igual ou semelhante: António Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (2.ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986); José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 4.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987); Antenor Nascentes, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955).

* Segundo a mesma fonte, nai...