Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na seguinte passagem de um artigo sobre o terramoto que aconteceu no ano passado no Nepal, lê-se:

«Os dois amigos chegaram ao Nepal na noite de 24 de abril, após uma longa viagem de mochila às costas por vários países asiáticos. A aventura, julgavam, estava perto do fim. Quinze horas depois de aterrarem, o chão tremeu, matando quase nove mil pessoas.»

Não será mais correto utilizar aqui o gerúndio na sua forma composta, já que a morte das pessoas foi consequência do tremor de terra («o chão tremeu, tendo matado quase nove mil pessoas»)?

Resposta:

Estando o estado de coisas descrito pela oração gerundiva («matando quase nove mil pessoas») sobreposto ou sendo ele posterior ao estado de coisas referido pela subordinante e se a oração gerundiva aparece depois da principal, como acontece no caso apresentado, é possível empregar tanto o gerúndio simples como o gerúndio composto. Esta possibilidade vem descrita na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 550/551):

«Consideremos agora a ocorrência das orações gerundivas em posição final. Quando há sobreposição temporal [...], a leitura mantém-se, independentemente da ordem, como ilustram os exemplos (89):

(89) a. A atleta percorreu as ruas da cidade, levando a tocha olímpica.

       b. A Maria faltou ao trabalho, estando doente.

      c. A Maria teve uma cãibra, nadando no lago.

Quando não há sobreposição, a relação temporal inverte-se relativamente aos casos de (88); ou seja, a interpretação é a de posterioridade temporal relativamente ao tempo da reação principal, como se ilustra em (90):

(90) a. O diretor assinou o documento, saindo do banco pouco depois.

      b. A Maria desmaiou, batendo com a cabeça na esquina da porta.

      c. A Joana subiu as escadas, entrando de rompante no quarto do filho. [...]»

O confronto da frase em questão com os exemplos da citação permite inferir que, dado a oração gerundiva em apreço marcar a consequência do evento referido pela principal, há uma relação de posterioridade que legitimamente se associa ao gerúndio simples. Tal não exclui, ...

Pergunta:

Gostaria de saber se a forma "Semêndria" é correta para a cidade sérvia de Smederevo e se ela é usada atualmente em Portugal.

Muito obrigado.

Resposta:

O nome Semêndria está correto.

Sendo a cidade em questão raramente referida no discurso em português, compreende-se que a tradição deste nome português não se encontre enraizada. Mesmo assim, é possível encontrar atestada a forma Semêndria, no Dicionário Prático Ilustrado (Porto, Lello e Irmão Editores, 1959), como denominação da «antiga capital da Sérvia, na confluência do Danúbio e do Morava». Mais recentemente, este nome ocorre não só na Wikipédia em língua portuguesa, mas também nos Google Maps (cf. imagem ao lado; os nomes português e sérvio estão inscritos no círculo verde).

Contudo, como foi dito, a cidade só excecionalmente tem constituído tópico de referência na língua portuguesa, pelo que, apesar de existir um nome que parece uma adaptação erudita do latim Semendria e não é muito conhecido,  se afigura admissível a forma Smederevo, transliteração usada noutras línguas e correspondente ao sérvio Смедерево.

Pergunta:

A palavra pode ser usada no feminino e masculino?

Resposta:

A forma é o feminino do adjetivo mau, pelo que poderá ser usada em associação com substantivos apenas do género feminino («mau homem», mas « mulher»).

No entanto, na linguagem popular mais antiga, está documentado o uso de com nomes masculinos, mesmo no plural. É o que se documenta num artigo da Revista Lusitana (RL), publicada em Portugal entre 1887 e 1943:

« (má, mau, maus). Exemplos do emprego dessa forma: má hora; má dia; má génio; má home; má raios!...» (José Diogo Ribeiro, "A linguagem popular de Turquel", RL, vol. XXVIII, p. 233.)

Pergunta:

Qual o exato significado da locução temporal «tanto que»?

Obrigado.

Resposta:

A locução conjuntiva temporal tanto que é sinónima de «logo que» (cf. José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa; ver também Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa). Mas é também usada como conector frásico de valor consecutivo, equivalente a «tanto assim que» (cf. Dicionário Houaiss) como no seguinte exemplo «não sabia de nada, tanto que nem veio trabalhar» (idem)*.

Nos tempos em que os galicismos eram objeto de forte censura, havia quem tivesse tanto que por imitação do francês tant que («tanto quanto», «enquanto»), apesar de a locução portuguesa ter significado distinto. Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário das Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958) contestava tal juízo (mantém-se a ortografia do original):

«Tanto que, modo de dizer vernáculo. É antigo na língua. Podemos citar, por exemplo: "Tanto que Judas recebeu o bocado do pão" (Sermões, VI, 67, P.e António Vieira); "arrebatou sùbitamente para o Céu esse filho varão, tanto que nasceu" (Ibid., XV, 40); "Tanto que desperto pela manhã renovarei o tal propósito". Cf. Luz e Calor, 16, 5.ª ed., P.e Bernardes. Não temos, pois, que recear, por causa do tant que francês, aliás sinónimo do nosso enquanto. [...]»

* Ao encontro deste sentido, Machado (obra citada) parafraseia «tanto que» como «a prova, o testemunho de que é assim», o que deixa entender que a locução introduz uma frase com função argumentativa.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a sílaba tónica da palavra granola. Já ouvi a leitura de duas formas: "GRA-no-la" e "gra-NO-la". Soa-me melhor a primeira, mas gostaria de ter a vossa confirmação.

Grata antecipadamente pela vossa ajuda.

Resposta:

O vocábulo granola pronuncia-se como palavra grave, isto é, com acento tónico na penúltima sílaba (-no-), soando como "granóla" (transcrição fonética: [gɾɐˈnɔlɐ]).

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista granola na aceção de «mistura tostada ou crocante de flocos de cereais, frutos secos, sementes, mel e por vezes arroz tufado, servida geralmente com iogurte ou leite ao pequeno-almoço ou ao lanche» (fonte consultada em 05/09/2016). Trata-se da denominação de uma marca comercial de origem norte-americana. Atendendo às convenções que definem as correspondências entre letras e sons no quadro da ortografia portuguesa, a grafia granola (palavra que também se escreve assim no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras)* tem como leitura correta "granóla", ou seja, trata-se de uma palavra grave (com acento na antepenúltima sílaba). Note que, em inglês, também a palavra correspondente tem acento tónico na penúltima sílaba (cf. Oxford English Dictionary em linha e dicionário inglês-português da Porto na Infopédia.

* Os vocabulários ortográficos elaborados e publicados em Portugal – o vocabulário ortográfico da Porto Editora, o Vocabulário Ortográfico do Português e o