Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho em mãos um livrinho sobre horticultura. Trata-se de um texto especializado que fala em estufas-frias e estufas quentes... E muitas vezes a par... Grafo como composta "estufa-fria", e «estufa quente» sem hífen... Mas balanço sempre a olhar para elas sobretudo seguidas...

Que me dizem?

Resposta:

Há registos de estufa-fria em alguns dos vocabulários ortográficos que aplicam o Acordo Ortográfico de 1990 (AO)* (não nos que seguiam a anterior norma, de 1945), mas nada consta sobre «estufa quente». Atendendo ao hífen de estufa-fria, justifica-se grafar estufa-quente**, com hífen, mas esta forma não pode considerar-se a única correta, porque há muitas locuções formadas por nome + adjetivo que não têm hífen, apesar de funcionarem como palavras simples (não tem isto que ver com o AO, pelo menos, não de maneira direta): «máquina registadora», «polícia sinaleiro»**. Ou seja, o sintagma «estufa quente», não hifenizado, é legítimo, pelo menos, até um vocabulário ortográfico ou dicionário com autoridade reconhecida optarem por fixar a sua entrada como estufa-quente.

* Cf. o  vocabulário ortográfico da Porto Editora (na Infopédia) e o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa (Academia das Ciências de Lisboa). Estufa-fria não tem entrada no Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua), nem no 

Pergunta:

Durante as férias, enquanto lia Kafka, deparei com esta frase que me deixou sobressaltado, não se desse o caso de que não soubesse que fazer, sequer dizer, quanto à concordância. Senão, vejamos: «As crueldades que está na sua natureza eles cometerem.» A fim de que resolvesse esta incongruência, primeiro, elaborei outra frase que pretendia análoga: «Está na sua natureza eles cometerem crueldades.» Não considerei pertinente, pois, introduzir o determinante artigo definido feminino plural.

Obrigado.

Resposta:

A sequência apresentada, que está correta, não é uma frase, mas, sim, um grupo nominal:

1. «As crueldades que está na sua natureza eles cometerem.»

A descrição da sequência em 1 não será das mais acessíveis a uma análise gramatical no contexto escolar de nível básico ou médio. Mesmo assim, diga-se que, nessa sequência, o pronome relativo que (que tem por antecedente «crueldades») desempenha a função de complemento direto de uma oração subordinada substantiva completiva de infinitivo – «cometerem...» –, a qual está contida (ou encaixada) na oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que está na sua natureza [eles cometerem]» (os parênteses retos destacam o encaixe dessa subordinada substantiva completiva). Tal oração subordinada completiva tem a função de sujeito no contexto da oração relativa, função que se torna mais evidente, se considerarmos que a oração relativa «que está na sua natureza cometerem» pressupõe a seguinte frase simples, que retoma na ordem direta a que o consulente apresenta:

2.  «Eles cometerem crueldades está na sua natureza.»

Em 2, «cometerem crueldades» é sujeito, e «está na sua natureza» é o predicado. Repare-se que – como o consulente bem nota – não se determina «crueldades», isto é, em 2 emprega-se o substantivo sem associar o artigo definido; este aparece em 1, é certo, mas a marcar uma operação de determinação que ocorre depois da construção relativa.

De qualquer modo, compreende-se a estranheza do consulente, a qual talvez advenha de esta possibilidade de uma relativa que contém uma completiva aparecer geralmente exemplificada nas descrições linguísticas com completivas que têm a função de complemento direto e apresentam o verbo numa forma finita, como no seguinte exemplo:

3. «São múltiplas as crueldades que vemos que cometem.»

Pergunta:

Examine-se a seguinte frase:

«Muito poucos estudantes estiveram presentes na palestra.»

Poucos, no caso, é pronome indefinido adjetivo, pois modifica o substantivo estudantes. Por sua vez, muito funciona como advérbio, a intensificar o referido pronome adjetivo. Agora vem a dúvida: se escrevermos «Muito poucos conseguiram compreender as palavras do orador», como classificar o termo muito? Não poderia ser advérbio, pois está modificando um pronome, ainda indefinido, mas substantivo. Não se pode aludir a um termo implícito, pois não é o caso: poucos, funcionando como pronome substantivo, não exige a existência de tal termo. E não se faz a concordância com poucos, como se esperaria de um pronome adjetivo a modificar um pronome substantivo. Curiosamente, com outro, também pronome indefinido, ocorre a concordância: «Uns ficaram, outros seguiram os passos do mestre»; «Muitos outros seguiram os passos do mestre».

Obrigado.

Resposta:

As observações do consulente são muito curiosas e estão adequadas. Contudo, é de realçar que certas descrições fora do quadro tradicional abordam o problema identificado tratando o pronome substantivo pouco como um pronome adjetivo indefinido (na verdade, tais descrições consideram-no um quantificador) que ocorre numa construção elíptica, o que permite manter a inclusão de muito na classe dos advérbios, mesmo nesse contexto. Ou seja, «muitos poucos estiveram presentes...» vem a ser «muito poucos (estudantes) estiveram presentes...», com apagamento (elipse) de «estudantes» (sobre este assunto, consulte-se M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, p. 360). É de notar que existe um caso de certo modo paralelo a este, quando se diz «mais pessoas», exemplo em que o advérbio adquire propriedades de quantificação quantificacional, aproximando-se do que tradicionalmente se concebe como um pronome adjetivo (em Portugal, um quantificador).

Pergunta:

Como se deve dizer, «tenho de fazer», ou «tenho que fazer»? E porquê?

Resposta:

Considera-se mais correto «ter de (fazer)», no sentido de «ter a obrigação de (fazer)», argumentando-se que «ter que (fazer)» é outra construção com significado próprio: «ter alguma coisa que (fazer)» ou «ter alguma coisa para (fazer)». Deve reconhecer-se, porém, que, no uso, ocorre muitas vezes «ter que (fazer)» com valor de obrigação, apesar da censura normativa. E sabemos que essa construção aparece em textos dos escritores clássicos do século XIX (por exemplo, Alexandre Herculano) e mesmo antes.

Acerca dos juízos dos autores normativistas do século XX sobre a construção «ter que», mencione-se o caso de Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958), que dizia que empregar «ter que» em lugar de «ter de» era prática que «à nossa sintaxe repugna», rejeitando a alegada confusão, porque, em «ter que», a forma que era pronominal, conforme se lê a seguir (mantém-se a ortografia original):

«[...] Ter de emprega-se correctamente, quando se subentendem palavras como necessidade, precisão, desejo, obrigação, antes da partícula de. [...] Muitas vezes cai-se na incorrecção de escrever: "tenho que ir" por tenho de ir, erros provenientes da analogia que se estabelece entre frases do tipo "tenho que fazer" e "tenho de fazer isto ou aquilo". O professor Augusto Moreno citou exe...

Pergunta:

A propósito nomeadamente da sequência em inglês «... determine the most efficient within- and between-model transitions...», coloco a questão de como converter devidamente para o português os adjetivos ''within-model'' e ''between-model''.

Uma hipótese seria «dentro do modelo» e «entre modelos», respetivamente. Mas não é possível usar através do uso dos elementos de composição intra e inter uma outra tradução, possivelmente mais elegante, adjetivando as referidas transições? Analogamente, a expressão «within- and between-sample analyses'» não se poderá traduzir por «análise intra-amostra e análise interamostras»?

Muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

Em matéria de tradução, encontram-se várias soluções corretas, como acontece com as apresentadas na pergunta.

A segunda solução, que é mais económica, é possível e legítima, porque os prefixos de significado locativo inter- e intra- (considera-se que são prefixos – cf. M.ª Graça Rio-Torto et al.,Gramática Derivacional do Português, 2013, pp., 370/371), tomando substantivos como base de derivação, formam palavras de uso adjetival como intramuros e intercidades. Sendo assim, é correto dizer e escrever «análise intra-amostra e análise interamostras», e o mesmo se diga acerca de «intramodelo e intermodelos».

Assinale-se que os derivados prefixados com intra- aceitam o singular e o plural da base de prefixação: intra-amostra, intra-modelo/intra-amostras, intra-modelos. O mesmo não é possível com inter-, que, intuitivamente, parece apenas compatível com o plural, dado que pressupõe uma relação especial entre duas ou mais entidades: interamostras (?"interamostra") e intermodelos (?"intermodelo").