Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao ler este poema de Amadeu Ferreira dei conta desta parte:

«....Já não precisas de afiar
dias para rebentar fragas de pão
palpa o cheiro que o ar traz nas veias
esquece o acarrejo adormecido em extensas sestas
e acende outeiros infinitos em teus calados olhos

Deixa-te andar
Já te sobram mundos e caminhos
muito calor cresceu nos pousios
suamos nós a carga enfeixemos carreiros
mas tu fica até que
o poial se torne calo...»

Este extrato [é] de um poema [traduzido] do livro Eternidade das Ervas da Editora  Âncora tem uma palavra de difícil significado no contexto: o que significa acarrejo?

Este extrato de um poema do livro Eternidade das Ervas [1] da Editora  Âncora tem palavras de difícil significado no contexto: acarrejo (verbo acarrejar), "acente" (não encontro). Têm dicionário para saber o significado de "acente", ou é uma corruptela do mirandês?

 

[1] N. E. – Trata-de de uma obra bilingue (mirandês e português) de Amadeu Ferreira (1950-2015), publicada sob o pseudónimo Fracisco Niebro: L'Eiternidade de las Yerbas/ A Eternidade das Ervas – Poemas (Es)colhidos, Lisboa, Âncora Editora, 2015

Resposta:

1. Acarrejo significa «transporte do cereal ceifado para a eira» ou «transporte de produtos agrícolas para casa» (A. M. Pires Cabral, Língua Charra - Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Âncora Editora, 2013). Trata-se de um derivado regressivo de acarrejar ou carrejar, sinónimo de carrear (ou acarrear) e acarretar (ou carretar) – verbos todos sinónimos quando significam «transportar em carro» (cf. Dicionário Houaiss).

Obs.: O linguista José Pedro Ferreira, a quem se agradece a colaboração, confirma que acarrejo é de facto regressivo de acarrejar, variante transmontana de carrear, com o mesmo sentido de «carregar em carro», verbo atestado, em geral, a par da forma feminina acarreja, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves, no Aurélio Séc. XXI, no Michaelis – Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e no dicionário de Caldas Aulete).

Pergunta:

Na frase «Dê Vossa Reverença lição de esgrima», a expressão «Vossa Reverença» (que não está entre vírgulas) é sujeito do verbo "dê" – no imperativo – ou é um vocativo?

Se alterarmos a ordem da frase para «Vossa reverença dê lição de esgrima», talvez pareça mais sujeito do que vocativo... O vocativo poderá aparecer sem estar isolado por vírgulas? Há exceções?

Grata pela vossa atenção

Resposta:

Tal como se apresenta a frase, sem vírgulas, trata-se do sujeito da forma verbal «dê».

Não se trata de um vocativo, mas, sim, de um sujeito. Nas frases imperativas em que ocorra imperativo o sujeito pode ficar explícito, em posição pós-verbal, com a condição de ser pronominal ou estar realizado por uma forma de tratamento – cf. M.ª Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa, Editorial Caminho, 2003, pp. 457/458); exemplos desta fonte:

1. «Empresta-me tu o livro!»

2. «Arrume o senhor o carro!»

Na frase em questão – «Dê Vossa Reverença lição de esgrima» –, a expressão «Vossa Reverência» é o sujeito da frase. Tudo isto não impede que «Vossa Reverência» ocorra como vocativo, mas, neste caso, é necessário destacar esta expressão por vírgulas:

3. «Vossa Reverência, dê lição de esgrima.»

4.  «Dê lição de esgrima, Vossa Reverência.»

Observe-se que a frase em questão é do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, obra que, ao longo das suas numerosas edições, exibe muitas variantes. É o caso de «dê Vossa Reverença lição de esgrima», em que ocorre o arcaísmo reverença, correspondente à forma atual reverência; à mesma sequência tem também sido dada diferente pontuação, com a expressão «Vossa Reverença» a aparecer ora sem vírgulas, ora com elas. Obviamente que a escolha desta ou daquela edição terá repercussão na ...

Pergunta:

Uma dúvida me assola: no Brasil, é muito estendido o uso da expressão «que nem» no lugar de como. Ex.: «Ele cozinha que nem o pai» / «o teclado se toca que nem piano». Há anos procuro entender a origem dessa expressão, pois me parece estranha e até mesmo incongruente. Na canção "Sebastiana", de Gal Costa (1969)[*], há a frase «(...) pulava que nem uma guariba». Mas em outras gravações se substitui a expressão por «que só», o que para mim soa mais lógico, no sentido de "como apenas". Seria esse o caminho etimológico da expressão? Existem registros históricos de maior importância? Por favor ajude-me a solucionar esse mistério!

[*] N. E. – "Sebastiana" é uma composição de Rodil Cavalcanti (1922-1968) e foi interpretada pela primeira vez, em 1953,  por Jackson do Pandeiro (1919-1982), com enorme êxito .

Resposta:

A expressão «que nem» é bastante antiga na língua portuguesa:

1. «Isto consola que nem o copo de água que a gente, em dias de calma, pede à borda da estrada, quando se leva a boca seca e queimada da poeira!» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, 1868, in Corpus do Português).

Trata-se de uma «expressão comparativa (como) usada na linguagem coloquial» (Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, Editora UNESP, 2003).

Quanto à suposta incongruência da expressão, é possível pensar o contrário, se aceitarmos que a expressão se relaciona historicamente com uma construção consecutiva que, por elipse, fica com alguns dos seus elementos subentendidos (os parênteses assinalam a informação omissa):

2. Ela pula que nem uma guariba. = Ela pula (de tal maneira) que nem uma guariba (pula assim).

A construção ter-se-á fixado (gramaticalização), associando-se-lhe um significado comparativo: «ela pula que nem uma guariba» = «ela pula como uma guariba não pula» (contextualmente, depreende-se «ela pula melhor/mais que uma guariba»). Daqui, a construção ganhou valor super...

Pergunta:

Por que a ortoépia indicada para o substantivo "obséquio" é /zé/ enquanto, para "subsídio", se indica /sí/?

Agradecido por vossa atenção.

Resposta:

Parece desconhecida a razão dessa pronúncia, que é tida como correta, mas sabe-se que ela é bastante antiga, conforme se dizia Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, de 1958 (mantém-se a ortografia original):

«Obséquio e derivados. Há quem profira afectadamente obcéquio, mas a pronúncia normal determina que o s se leia como z [...] Em certo documento de 1742 [...] vimos que já vem escrito: "Em obzequio de Cezar compunha Virgílio o seu poema..." Evidentemente, a grafa deve ser com s, pois assim exige o latim – obsequiu –, mas aquela escrita revela que a prosódia com z não é recente [...].»

Pergunta:

No dicionário de verbos portugueses da Porto Editora – 1.ª edição, de 1999, pág.687 –, a regência indicada para o verbo abalroar é com. E dão um exemplo de frase: «O navio de passageiros abalroou com a traineira». Há muito que 'adoptei' (e sou 'gozado' por isso) essa regência. Contudo, por todo o lado e especialmente na imprensa, ouvimos notícias do género: «O autocarro abalroou o táxi'» A minha questão é: não se deveria dizer , antes, «O autocarro abalroou com o táxi»?

Com os meus melhores cumprimentos e antecipados agradecimentos pela resposta,

 

 

Resposta:

O verbo abalroar (que significa «ir um barco, um veículo, de encontro a outro ou ir bater contra um obstáculo») ocorre frequentemente sem preposição:

– «O navio abalroou um pequeno veleiro.» (exemplo do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)

Também se atesta o uso deste verbo com regência, que pode realizar-se com a preposição com ou contra:

– «Nadando com os olhos abertos, lá foi abalroar com o homem» (Camilo Castelo Branco, Anos de Prosa, pág. 229, in dicionário da ACL)

– «Leonel falou das caravelas, que [...] abalroavam contra os traiçoeiros rochedos do mar vingativo.» (Winfried Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses, Livraria Almedina 1994)

Em conclusão, a frase «o autocarro abalroou com o táxi» está correta, mas a regência que ela ilustra não é a única possibilidade de uso do verbo em questão.

Por outras palavras, «o autocarro abalroou» é outra opção correta, que se revela até mais acessível à intuição.