Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o exato significado da locução temporal «tanto que»?

Obrigado.

Resposta:

A locução conjuntiva temporal tanto que é sinónima de «logo que» (cf. José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa; ver também Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa). Mas é também usada como conector frásico de valor consecutivo, equivalente a «tanto assim que» (cf. Dicionário Houaiss) como no seguinte exemplo «não sabia de nada, tanto que nem veio trabalhar» (idem)*.

Nos tempos em que os galicismos eram objeto de forte censura, havia quem tivesse tanto que por imitação do francês tant que («tanto quanto», «enquanto»), apesar de a locução portuguesa ter significado distinto. Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário das Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958) contestava tal juízo (mantém-se a ortografia do original):

«Tanto que, modo de dizer vernáculo. É antigo na língua. Podemos citar, por exemplo: "Tanto que Judas recebeu o bocado do pão" (Sermões, VI, 67, P.e António Vieira); "arrebatou sùbitamente para o Céu esse filho varão, tanto que nasceu" (Ibid., XV, 40); "Tanto que desperto pela manhã renovarei o tal propósito". Cf. Luz e Calor, 16, 5.ª ed., P.e Bernardes. Não temos, pois, que recear, por causa do tant que francês, aliás sinónimo do nosso enquanto. [...]»

* Ao encontro deste sentido, Machado (obra citada) parafraseia «tanto que» como «a prova, o testemunho de que é assim», o que deixa entender que a locução introduz uma frase com função argumentativa.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a sílaba tónica da palavra granola. Já ouvi a leitura de duas formas: "GRA-no-la" e "gra-NO-la". Soa-me melhor a primeira, mas gostaria de ter a vossa confirmação.

Grata antecipadamente pela vossa ajuda.

Resposta:

O vocábulo granola pronuncia-se como palavra grave, isto é, com acento tónico na penúltima sílaba (-no-), soando como "granóla" (transcrição fonética: [gɾɐˈnɔlɐ]).

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista granola na aceção de «mistura tostada ou crocante de flocos de cereais, frutos secos, sementes, mel e por vezes arroz tufado, servida geralmente com iogurte ou leite ao pequeno-almoço ou ao lanche» (fonte consultada em 05/09/2016). Trata-se da denominação de uma marca comercial de origem norte-americana. Atendendo às convenções que definem as correspondências entre letras e sons no quadro da ortografia portuguesa, a grafia granola (palavra que também se escreve assim no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras)* tem como leitura correta "granóla", ou seja, trata-se de uma palavra grave (com acento na antepenúltima sílaba). Note que, em inglês, também a palavra correspondente tem acento tónico na penúltima sílaba (cf. Oxford English Dictionary em linha e dicionário inglês-português da Porto na Infopédia.

* Os vocabulários ortográficos elaborados e publicados em Portugal – o vocabulário ortográfico da Porto Editora, o Vocabulário Ortográfico do Português e o 

Pergunta:

Vários especialistas e reputados políticos têm utilizado ultimamente as expressões “ecossistema informático”, “ecossistema económico”, “ecossistema financeiro”, etc. Não sendo filólogo, penso que ecossistema é uma palavra composta, em que o elemento eco derivou da ciência dita ecologia (ramo da biologia). Ora, de acordo com o livro de ecologia mais frequentemente utilizado no ensino em Portugal – Eugene P. Odum. Fundamentos de Ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian –, «ecologia é definida como o estudo da relação dos organismos ou grupos de organismos com os seus meios ambientes, ou ciência das inter-relações entre organismos vivos e o seu ambiente».

Assim, afigura-se-me que aqueles ilustres senhores talvez queiram dizer (no caso da economia, informática, etc.) “holossistema”, isto é, um sistema “holístico” – «Holo: elemento grego que exprime a ideia de ‘inteiro’, ‘todo’».

Será, pois, correto dizer, como os políticos da recente ‘vaga’, “ecossistema económico”?

Grato pelo esclarecimento.

Resposta:

A expressão «ecossistema económico» está correta.

Pode concordar-se com a reflexão do consulente, porque os termos ecossistema e ecologia têm andado associados à discussão à volta do ambientalismo ou do ecologismo. Contudo, a verdade é que o vocábulo ecossistema está atualmente a ser empregado de forma mais alargada, aplicando-se a qualquer sistema ou rede de elementos e partes que interagem. Esta extensão semântica parece ser, no fundo, um empréstimo semântico do inglês ecosystem, que denomina não só um sistema de seres vivos, mas também qualquer sistema de partes em interação (cf. Dictionary.com). Mas note-se que a legitimidade do uso de ecossistema fora do contexto do discurso ambientalista acha fundamento na própria semântica de um dos seus elementos constitutivos. Com efeito, o radical eco- encontra-se, por exemplo, na palavra economia e, portanto, não se relaciona diretamente com a noção de ser vivo; na verdade, o significado etimológico de eco- tem âmbito mais restrito, uma vez que tem origem no grego oîkos, ou, «casa, habitação; bens, família» (cf. Dicionário Houaiss). Além disso, antes de a expressão «ecossistema financeiro» entrar na moda, já ecologia era definível como «estudo das relações recíprocas entre o homem e seu meio moral, social, económico (Ex.: economia social, economia criminal)» (idem). Sendo assim, compreende-se que ecossistema seja compatível com a extensão semântica que está a emergir em português por pressão do inglês ecosystem.

P. S. – Para quem reaja mal à ambiguidade do radical eco- (ou já

Pergunta:

Na expressão «não vos faz querer ler o livro», se eu quiser substituir «o livro» por um pronome pessoal, como devo proceder? Eu responderia «não vo-lo faz querer ler», mas estou em dúvida também com «não vos faz querer lê-lo». Qual das formas está correta (ou ambas são corretas)?

Agradeço a atenção.

Resposta:

É possível dizer «não vo-lo faz querer».

Nesta construção, vos desempenha a função de complemento indireto, e o, a de complemento direto, funcionando «faz querer ler»  como um complexo verbal, em condições semelhantes à construção de auxiliar + verbo principal (cf. «pode ler»). A este tipo de construção chamam certos linguistas uma «união de orações» (cf. Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 1961-1966). Diga-se, além disso, que a estrutura em apreço tem alguma complexidade, porque associa uma construção causativa («faz querer...») à completiva de um verbo volitivo, querer (na linguística, chamado «verbo de controlo»).

Sendo assim, considere-se o uso de pronomes da 3.ª pessoa nos seguintes exemplos:

1. «Isso não faz querer ler o livro ao aluno.»

2. «Isso não lhe faz querer o livro.»

3. «Isso não lho faz querer ler.»

As frases apresentadas em 1, 2 e 3 são gramaticais. Em 1, o verbo causativo fazer associa-se à sequência verbal «querer ler o livro», cujo sujeito semântico é realizado como um complemento indireto de um complexo verbal que é toda a sequência «faz querer ler». A estrutura de 1 legitima a frase 2, e, sendo assim, também é possível pronominalizar o complemento direto «o livro», fazendo subir o pronome para junto de «faz» e operando uma combinação pronominal, tal como acontece em 3. Na perspetiva da frase 3, entende-se, portanto, que também vos possa ocorrer como complemento indireto, o que permite a combinação pronominal vo-lo:

4. «Não vo-lo faz querer ler.»

Tudo isto não exclui outra po...

Pergunta:

Qual é a origem da palavra jeca?

Resposta:

Os substantivos jeca e jeca-tatu, segundo o Dicionário Houaiss, significam «habitante do interior brasileiro, especialmente da região Centro-Sul, de hábitos rudimentares, morador da zona rural». A mesma fonte anota que os vocábulos têm origem no «nome da personagem [Jeca-Tatu] do conto Urupês (1918), de Monteiro Lobato (1882-1948, escritor brasileiro), tornado substantivo comum». José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (Livros Horizonte, 2003), sugere que Jeca, como nome próprio, é alteração de Zecahipocorístico de José.