Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Vi recentemente que havia um «mercado caramelo» em Pinhal Novo e pensei que seria de doces. Mas depois vi «sopa caramela» e a imagem é como sopa de pedra, nada de caramelo, e finalmente «cultura caramela». Qual o significado ou raiz deste termo caramelo(a)? É desta região, como alfacinho ou tripeiro?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se efetivamente de uma alcunha que já se usa como gentílico de uso popular para designar os naturais da região de Palmela. Parece que o termo começou por ser usado depreciativamente para identificar os trabalhadores oriundos da Beira Litoral que iam para o Alentejo. Mas não há certezas quanto à origem do nome, que alguns autores atribuem a uma deturpação de Caramulo, nome da serra – «serra do Caramulo» –  que domina a paisagem das terras baixas do litoral, entre o Mondego e o Vouga.

Pergunta:

Quando me refiro à Bíblia, digo que é algo bíblico, leis bíblicas, etc. E quando me refiro ao Torah/Torá? Digo que é algo "toraico"? Leis "toraicas"? E ao Alcorão?

Desde já agradeço pela atenção.

Resposta:

De Torá1, pode-se criar corretamente o termo "toraico", muito embora este ainda não se encontre dicionarizado. Mas é palavra legítima, tendo em conta que, de Mixná, outro termo referente ao judaísmo, se deriva mixnaico, que tem registo lexicográfico (cf. Dicionário Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).

Quanto a Alcorão, o adjetivo correspondente é alcorânico. Embora não se aconselhe a forma Corão, nota-se que corânico é o adjetivo relacional geralmente usado; é o que sucede, por exemplo, no Corpus do Português (de Mark Davies), que, aliás, não faculta nenhum resultado para alcorânico. Esta seria, sem dúvida, a forma correta e recomendável, até porque deriva do nome tradicional português; contudo, parece atualmente difícil combater a força do uso para pretender que uma «escola corânica» passe a ser, como deve, uma «escola alcorânica».

1 O nome próprio Torá identifica as escrituras religiosas judaicas, incluindo os livros que no contexto cristão são conhecidos como Pentateuco (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). Em português, também se registam e aceitam ...

Pergunta:

Venho solicitar, por gentileza, uma opinião sobre o diminuto "sh", usado para criar silêncio. Ocorreu-me a dúvida, e estou dúbia quanto a isto.

Aplicando em relacionais contextuais, deve ser feita a refração do s ou h? Em inúmeras obras literárias, é utilizado “shhhhhh”, mas na maioria das representações escritas de interjeições, o uso de tal forma é correto? O h não é mudo, no alfabeto latino? Sendo assim, não deveria ser “sssssh”, constatado que a refração consonantal do “h” seria de ínfima importância e representação prosódica? É correto “shhhhhh” ou “ssssssh”?

"Shiu" é considerada uma interjeição?

Grata pelo retorno.

Resposta:

Quando se escreve sh, emprega-se uma grafia estrangeira – inglesa, como em shirt («camisa») ou na interjeição shh, tal como se regista no Oxford English Dictionary –, que corresponde ao som que em português é representado pelo ch de chave ou o x de xaile. Como equivalente ao inglês shh, que ocorre quando se quer mandar calar alguém, o Dicionário Houaiss (no artigo correspondente à entrada interjeição) sugere x ou ch, mas adverte que a representação das interjeições pode não estar padronizada; e a verdade, neste caso, é que não é hábito estes grafemas representarem tal interjeição em português. Isto explica que se encontre escrita a forma "shh" ou variações ora com muitos ss, ora com muitos hh, que parecem ter ganho certa difusão, apesar da sua configuração estrangeira. Trata-se, portanto, de um caso em que ainda está por definir ou estabilizar a forma de representar esta interjeição que até tem uso bastante frequente.

Quanto a shiu, não é esta forma legítima, porque já existem disponíveis grafias em português para este sinónimo de caluda: xiu (Dicionário Houaiss) ou chiu (cf. Dicionário Aulete Digital  e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Pergunta:

[Dizem-me que] na frase «o povo deu crédito à pessoas ruins» não existe a crase. Por que não existe a crase? É pelo fato de que a palavra crédito não admite o artigo a? E se fosse uma palavra que admitisse o artigo a, teria a crase? Ex.: «O povo deu as roupas à pessoas ruins.» E se eu escrevesse dessa maneira: «O povo deu roupas à pessoas ruins», sem o artigo as em «as roupas», estaria correto?

Obrigado!

Resposta:

O uso da crase nada tem que ver com a associação do artigo definido a um verbo precedente. Se escrevermos «o povo deu crédito a pessoas ruins»  ou «o povo deu as roupas a pessoas ruins», temos duas sequências corretas, independentemente da ausência de artigo definido na ocorrência de «crédito» ou da sua presença em «as roupas». A situação em que usamos incorretamente à também evidencia o mesmo: «dar crédito à pessoas ruins» e «dar as roupas à pessoas ruins» são formas incorretas, sem que esta avaliação se relacione com a questão do artigo definido em «crédito» e «as roupas».

Para se verificar a crase, tem de se perceber que se trata da contração da preposição a com o artigo definido a, que dá à. Ora, é impossível  empregar à antes de «pessoas», porque este substantivo está no plural e, como tal, a contração tem de ser às, resultado da preposição a com as, forma de plural do artigo definido, no género feminino:

1. O povo deu crédito às pessoas ruins.

Se a crase é sempre a contração da preposição a com o artigo definido a, a atenção deve focar o substantivo que é determinado pelo artigo definido, e não outra palavra à sua volta.

Sem crase (ou sem contração, como se diz em Portugal), obtém-se a sequência 2, em que o artigo definido não está associado a pessoas, e, portanto, a preposição ocorre sozinha (sendo invariável, não há concordância):

2. O povo deu crédito a pessoas ruins.

Veja-se o que aco...

Pergunta:

Qual a década da introdução do ioiô em Portugal?

Resposta:

No Ciberdúvidas, esclarecem-se questões sobre língua, e não sobre história geral. No entanto, falando de objetos e artefactos, é inevitável associar a história destes com a das suas denominações. É o caso do nome deste brinquedo.

Convém, portanto, dizer que a palavra ioió ou ioiô é adaptação do anglicismo yo-yo, difundido a partir de 1932 (cf. em inglês o sítio Online Etymology Dictionary). A palavra deve ter sido introduzida em português pouco depois, atendendo à observação de José Pedro Machado no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa (1981), que a regista sob a forma "io-iô", hoje não aceite (manteve-se a ortografia do original):

«Iô-iô, s.m. Distracção que estava em moda em 1932 e 1933 e que consiste num disco, com funda ranhura no aro, atravessado por um cordel que se enrola nessa ranhura e faz subir o disco até à mão de quem segura o cordel, e assim desce e sobe alternadamente.»

O Dicionário Houaiss indica que, no Brasil, este vocábulo está dicionarizado, pelo menos, desde a 3.ª edição do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, publicada no Rio de Janeiro em 1942.

Atualmente, escreve-se ioió ou ioiô. Há dicionários que consideram que a segunda forma é brasileira, mas esta é a que há muito se emprega também na região de Lisboa.