O advérbio citius («mais depressa»), comparativo de superioridade do advérbio cito («depressa, rapidamente»), encabeça o tão frequentemente citado, e muitas vezes mal traduzido, mote olímpico citius, altius, fortius («mais depressa, mais alto, com mais força»), no qual o Ministério da Justiça de Portugal se terá inspirado para batizar a aplicação informática Citius, que tanta polémica tem gerado.
Quanto à pronúncia do vocábulo em questão, a resposta não poderá ser taxativa nem linear. Na verdade, no curso da sua longa história de mais de dois milénios, a pronúncia do latim passou por sucessivas transformações, pelo que não existe, nem existiu, apenas uma, mas várias pronúncias desta língua.
Em termos didáticos, é habitual falarmos de três pronúncias do latim, embora existam mais:
1) Pronúncia tradicional portuguesa, ensinada durante muitos anos nos liceus e nas universidades deste país;
2) Pronúncia romana ou eclesiástica, usada no Vaticano e ensinada nos seminários de Portugal e de muitas outras nações;
3) Pronúncia restaurada, atualmente ensinada nos liceus e nas universidades de Portugal e de muitos outros países. Esta última pronúncia, que procura reproduzir a pronúncia do latim literário do tempo de Cícero e de Virgílio, é igualmente a que preferem os defensores da Latinitas viva («latim vivo») e a que os mesmos utilizam nos seus encontros e congressos internacionais desde os anos 60 do século passado.
Aplicando ao advérbio citius os critérios inerentes a estes três sistemas de pronúncia, verifica‑se que o mesmo soa de três formas diferentes:
1) /sisius/, de acordo com a pronúncia tradicional portuguesa (nesta notação, o s intervocálico profere-se da mesma forma que o s inicial, ou seja, como o ç em caça);
2) /tʃitsius/, de acordo com a pronúncia romana ou eclesiástica (em que o símbolo ʃ representa o mesmo fonema que ch em chá);
3) /kitius/, de acordo com a pronúncia restaurada.
O leitor interessado poderá escutar aqui a pronúncia deste vocábulo de acordo com o último sistema referido (pronúncia restaurada).
Ora, a pronúncia que se ouve nos órgãos de comunicação social e nos meios judiciais não é nenhuma destas três! O que ouvimos da boca de toda a gente é /sitiuʃ/. Trata-se, portanto, de uma pronúncia híbrida, em que o ci é proferido de acordo com a pronúncia tradicional portuguesa; o ti, segundo a pronúncia restaurada, e o s final, à portuguesa...
O cliente referido pelo consulente, ao que percebi, propõe a pronúncia /sitsius/ (que provavelmente dirá /sitsiuʃ/). Trata-se igualmente de uma pronúncia híbrida, que não me parece mais defensável do que o hibridismo que se vai ouvindo por aí...
O grande problema da pronúncia do latim é que a maior parte das pessoas que precisam de pronunciar termos latinos por motivos profissionais (advogados, jornalistas, publicitários, etc.) nunca estudou a língua, nem sequer uns rudimentos, e pronuncia tudo por instinto ou imitando outros que também não sabem pronunciar...
A pronúncia restaurada, apesar da sua crescente aceitação e utilização em meios académicos, é praticamente desconhecida do público em geral, mesmo daqueles que ainda aprenderam latim nos bancos da escola. Em bom rigor, todos deveríamos pronunciar /kitius/, mas os operadores que utilizam a plataforma, bem como os profissionais que recorrentemente falam da mesma, dizem, todos eles, /sitiuʃ/, e julgo que já não há volta a dar...
Aliás, o problema levanta-se em relação a muitas outras palavras e expressões latinas que são do domínio comum e que se pronunciam de forma mais ou menos híbrida, como seria de esperar.