Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de conhecer a origem da bela expressão «nem por sombras».

Grato desde já pelo serviço sempre impecável.

Resposta:

Entre várias fontes consultadas para elaboração desta resposta, não se achou informação sobre a história factual da locução «nem por sombras», que significa «nunca, de maneira algumas» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).  O mais que aqui se pode dizer – por enquanto – é que terá génese na negação hiperbólica de uma coisa ou de um estado de coisas : «nem por sombras» = «nunca, nem mesmo a sombra disso». Conhece também a variante «nem por sombra», que não parece diferenciar-se semanticamente.

Observe-se que é possível atestar o uso desta locução adverbial, pelo menos, desde meados do século XVIII:

1. «A consciência não me acusa na matéria, nem por sombra, e para mim isto me basta [...]» (cartas do Abade António da Costa, 1744, in Corpus do Português).

2. «Mas o meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! Esse, nem por sombras me quer aparecer, ou eu pude ver! Bárbaros! Assassinos! Traidores!» [Qorpo Santo (José Joaquim de Campos Leão), Certa Entidade em Busca de Outra, idem)

É de acrescentar que, em castelhano, se conhece expressão homóloga, «ni por sombra(s), pelo menos, desde o século XVII:

3. «Que reconozcáis, os diré, lo general de la vanidad de la cosa en sí misma. Que por aumento sólo de fausto ni por sombra la solicitéis o apetezcáis.» (Antonio Lópe...

Pergunta:

Em 2008, [foi] dada uma resposta relativamente [ao tema de] todo. Depois de ler esta resposta, continuo com dúvidas relativamente a esta questão.

Quando os determinantes significam «inteiro», em frases como «comi o frango todo» ou «comi todo o frango», a segunda opção não me soa tão bem como a primeira. Não sei se existe algum motivo para isso, mas reconheço que pode ser apenas uma questão pessoal, de uso. Porém, quando o quantificador significa «qualquer» ou «cada» (ainda que, por vezes, me custe reconhecer em algumas frases este significado), nem sempre é possível intercambiar o lugar de todo/a.

Em frases como:

1. “procurei-o por todo o lado” vs. *”procurei-o pelo lado todo” (O significado é «qualquer» ou «inteiro»?)

2. “procurei-o por toda a parte” vs. *“procurei-o pela parte toda” (O significado é «qualquer» ou «inteiro»?)

3. “todo o bebé chora” vs. “o bebé todo chora” (no segundo caso, acho que se trata de um uso adverbial, tal como em “ficou todo zangado” e não significa o mesmo).

4. “todo o médico tem a sua maneira de lidar com os doentes” vs. *o médico todo tem a sua maneira de lidar com os doentes”.

5. “toda a gente chora” vs. “a gente toda chora” (no segundo caso trata-se de um uso adverbial?)

A minha dúvida relativamente ao significado deste quantificador, particularmente quando se indica que tem a aceção de «cada» e «qualquer», também está relacionada com os exemplos dados na resposta do Ciberdúvidas em 2008. Todos os exemplos estão [no] plural. Acho que quando se usa todos

Resposta:

Os usos exemplificados de 1 a 5 são casos do uso de todo no sentido de «cada» (ou eventualmente «qualquer», como acontece com 3 e 4). A particularidade deste uso está em o quantificador universal todo assumir a forma de singular, não porque refira uma unidade ou um indivíduo, mas, sim, porque tem valor genérico, isto é, como referência a toda uma classe de seres, sem a ancorar numa situação temporalmente específica:

1. “procurei-o por todo o lado” = «... todos os lados»

2. “procurei-o por toda a parte” = «... todas as partes»

3. “todo o bebé chora” = «todos os bebés choram»

4. “todo o médico tem a sua maneira de lidar com os doentes” = «todos os médicos...»

No caso de 5 – «toda a gente chora» – não é possível evidenciar o mesmo tipo de correspondência, uma vez que gente tem sentido coletivo e semanticamente é uma pluralidade, equivalente a «pessoas».

Os usos antes comentados não são invulgares no português de Portugal. Pelo contrário, até são frequentes, e, para todo ser interpretado como sinónimo de cada, tem de se encontrar em posição pré-nominal e em enunciados genéricos, com o verbo no presente do indicativo; com outros tempos verbais e se aparecer em posição pós-nominal, passa a significar «inteiro»:

(a) «todo o dia é uma aventura» (= «em geral, cada/qualquer dia é uma aventura»);

(b) «todo o dia choveu» (= «o dia inteiro», porque a frase não é genérica, como indicia o uso do pretérito ...

Pergunta:

A expressão «prá frente» existe, é aceitável, está bem escrita?

Resposta:

Escreve-se «prà frente» (com acento grave) e é a grafia de uma forma popular de pronunciar «para a frente». Só se justifica grafar prà* numa mensagem escrita como marca de oralidade, procurando reproduzir o português informal ou popular.

*Forma que só se usa em Portugal, como contração da preposição para e do artigo definido a.

Pergunta:

A minha dúvida está relacionada com a pronuncia do R, pois tenho reparado que algumas pessoas pronunciam o R no início das palavras de forma diferente, pronunciando-o quase como o R em cara, e não tão carregado como se estivesse a arranhar a garganta. Porquê?

Outra dúvida é se essas diferenças são devido a sotaques específicos do local em questão, ou se é devido a outro fator, como a forma que a pessoa diz a palavra. É uma dúvida que tenho e gostaria imenso de ver esclarecida.

Obrigada.

Resposta:

Trata-se de uma pronunciação que é muito anterior à que atualmente cada vez mais pessoas em Portugal tendem a ter.

Antigamente, entre a maioria da população portuguesa, o r inicial – em rolha – e o que ocorre no meio de uma palavra – representado na escrita por rr como em parra – soava como o rr múltiplo do espanhol (por exemplo, em rrafo), o qual, em terminologia linguística, é identificado como uma consoante vibrante apical múltipla. Hoje, muitos falantes, sobretudo os mais jovens, produzem-no como se fosse um r à francesa («como se arranhasse a garganta»), isto é, como uma vibrante uvular múltipla.

A razão desta mudança encontra-se, por um lado, na evolução natural (ou deriva) do sistema fonológico do português e, por outro, na variação regional, pois este tipo de r – terá surgido no litoral, sobretudo na região de Lisboa, donde se espalhou para o resto deste país. Observe-se que o r simples de cara não se alterou, continuando a ser uma consoante uma vibrante apical simples.

CfQual é a origem de «carro»? E «coche»?

Pergunta:

Na língua portuguesa pode utilizar-se a palavra "desrespeituoso/a" (adjetivo), em vez de desrespeitoso?

Em várias notícias de variados blogues e jornais conceituados posso ler a palavra "desrespeituosa/o", como por exemplo, no texto e na notícia abaixo indicados:

«Os trabalhadores encontram-se numa situação totalmente incerta, sem qualquer garantia sequer de que irão receber os seus salários. Esta situação é, evidentemente, completamente ilegal e desrespeituosa dos direitos do trabalhadores e já foi denunciada pelos sindicatos do sector [...].» [de uma notícia das páginas eletrónicas do Partido Comunista Português]

«Declarações que fizeram com que a socialista Luísa Salgueiro pedisse a palavra: “Nunca ouvi nestes 12 anos ninguém a ser tão desrespeituosa com os deputados como a senhora bastonária”, declarou [...].» (notícia do jornal Público de 4 Jan. de 2017)

Obrigada.

Resposta:

Em português, as formas corretas são desrespeitoso/desrespeitosa, tal como, em vez de "respeituoso"/"respeituosa", se deve empregar  respeitoso/respeitosa.

As entradas deste adjetivos em dicionários e vocabulários ortográficos* são sempre respeitoso e desrespeitoso. As formas que incluem um u – "respetuoso" e "desrespeituoso" – parecem recentes e sem grande tradição no léxico português (no Corpus do Português de Mark Davies não se regista nenhuma ocorrência), pelo que não se justifica o seu uso. É possível que o seu aparecimento se deva à analogia com casos como os de afetuoso, conflituoso,  insultuoso, preconceituoso e tempestuoso. Também não se exclui eventual influência de formas cognatas noutras línguas românicas, como o francês respectueux e o espanhol respetuoso (este último tem a variante respetoso).

* Foram consultados dicionários e vocabulários ortográficos elaborados e publicados quer em Portugal quer no Brasil, a saber: Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa ; o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora;...