Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se é adequado ou redundante o uso de ambos para se referir ao pronome nós. No inglês, é válido a utilização de «we both» em sentenças, logo adoraria saber se posso fazer o mesmo em português. Se exequível, como se aplica ambos ao caso em questão?

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Se o pronome nós se refere a duas pessoas, diz-se e escreve-se corretamente «nós ambos», numa frase como a que se segue: «nós ambos gostamos de filmes românticos» (= nós os dois, tanto tu como eu...). No entanto, dada a possibilidade de em português se omitir o pronome pessoal na posição de sujeito (sujeito subentendido) é igualmente correta e até mais natural esta versão da frase: «ambos gostamos de filmes românticos».

Examinando ocorrências de «nós ambos» em textos literários e não literários (cf. Corpus do Português), são raros ou nulos os exemplos da sua realização como sujeito, ocorrendo apenas ambos (um quantificador universal) com formas verbais da 1.ª pessoa do plural:

1. «Com um trapo e palavras, ambos subvertemos o mundo – um dia, uma semana, um século.(Raul Brandão, Húmus, 1917, in Corpus do Português)

Na verdade, o que se distingue é a tendência da sequência em apreço estar associada a preposições:

2. «Um silêncio mortal pesa sobre nós ambos, nesta casa amarela com o seu rodapé de velhos azulejos.» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932, idem)

3. «Ou julga que o Diabo não está entre nós ambos a fazer tudo o que pode.» (Branquinho da Fonseca, Rio Turvo, 1942, idem)

Pergunta:

A palavra "garantístico/a" existe? Foi vista neste contexto:

«A inexistência de contrato de trabalho... não invalida que exista uma relação laboral... mas apenas que ela é mais precária e menos garantística para o trabalhador.»

Resposta:

Embora não se encontre em dicionários gerais, o adjetivo garantístico é usado na Filosofia e no Direito, aplicado genericamente a leis e decisões que dão garantias de proteção e defesa de direitos dos cidadãos.

Assinale-se que o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa (1948) de Artur Bivar regista garantismo, «doutrina social e económica de [Charles] Fourier [1772-1837], a qual consiste num estado de garantia mútua, ou antes, uma espécie de economia dirigida», e garantista, «que se relaciona com, ou diz respeito ao garantismo». O adjetivo em questão é um derivado do radical de garantista.

Pergunta:

Há poucos dias procurei a origem da expressão «saber de cor»* e fiquei a saber que cor significa «coração» em latim. Como na expressão portuguesa a palavra é pronunciada de uma maneira diferente do normal ("cór" em vez de "côr"), pesquisei-a em dicionários online e descobri que em português antigo, a palavra cor ("cór") é um substantivo masculino para coração... mas não consegui encontrar as fontes/referências dessa definição. Gostaria de vos perguntar se conhecem algum dicionário em formato físico ou digital em que conste o mesmo, ou qualquer outra fonte de informação que apoie/comprove a informação que encontrei. Os dicionários modernos em que procurei só têm o significado actual, provavelmente porque não incluem arcaísmos de todo, e no Vocabulário Portuguez e Latino digital que consultei através do site da Biblioteca Nacional Portuguesa, só consta a definição actual de cor ("côr").

Desde já com os melhores agradecimentos.

Resposta:

O substantivo cor – com ó aberto – é efetivamente um sinónimo de coração, com a particularidade de apenas ocorrer na locução «de cor», que significa «saber de memória». Este uso limitado de cor tem uma razão histórica que não parece completamente esclarecida.

A pergunta no fundo é a seguinte: porque se diz hoje coração, para denotar e referir o «órgão muscular oco, na cavidade torácica, que recebe o sangue das veias e o impulsiona para dentro das artérias», e só se usa cor em «de cor», como em «saber de cor» e «falar de cor»? No Ciberdúvidas, há várias respostas (ver Textos Relacionados) a respeito da locução «de cor» ("cór") e até informação sobre a etimologia deste homógrafo de cor ("côr"). Contudo, importa apontar de modo breve algumas pistas para o melhor enquadramento histórico quer de cor quer da forma correspondente, coração, que é a palavra comummente empregada.

Assim, encontra informação muito sumária no dicionário da Porto Editora e no Priberam. O Dicionário Houaiss também indica que cor é arcaísmo, em lugar de coração, mas pouco mais adianta. A consulta do Vocabulário Portuguez e Latino (publicado em 1712), elaborado em época anterior ao aparecimento da lexicografia contemporânea e dos seus critérios científicos, indica que, nos começos do século XVIII, a situação era igual à de hoje: cor só figura na locução «de cor».

Nesta discussão, convém lembrar que, noutras línguas europeias, a ideia de «saber de memória» é ex...

Pergunta:

Pode substituir-se a frase «terminarei isto em seis dias» por «terminarei isto em dois tríduos», sem perda de sentido quanto ao tempo em que a tarefa será concluída ?

Resposta:

Emprega-se a palavra tríduo, no sentido de «sequência de três dias» e «festa que dura três» (cf. tríduo, Dicionário Houaiss).

É, portanto, possível dizer «dois tríduos» como sinónimo de «seis dias», muito embora não seja tríduo uma palavra corrente. Na verdade, trata-se de um vocábulo culto – vem diretamente do latim tridŭum, i, «intervalo de três dias» (idem, ibidem) –, mas de uso pouco frequente mesmo na comunicação mais formal ou na expressão literária (observe-se que não ocorre no Corpus do Português). Sendo assim, no discurso quotidiano, se já parece insólita uma frase como «termino isto dentro de um tríduo», mais inusitado será anunciar o remate de alguma coisa no prazo de «dois tríduos», quando simplesmente se declara a intenção de acabar uma tarefa em meia dúzia de dias.

Pergunta:

Deparei com uma frase onde se pode ser que «o Luís postou-se de frente ao Pedro». Pergunta: não deveria ser «em frente a» ou «defronte a»? A construção «de frente a» é admissível e, se sim, é admissível neste contexto?

Obrigado.

Resposta:

Não se recomenda o uso da sequência «de frente a» como locução prepositiva.

Como locuções prepositivas, os dicionários registam as sequências «em frente de», «em frente a» e «de frente de», mas não «de frente a» (cf. frente no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Pode, no entanto, ocorrer sozinha a expressão «de frente», como locução adverbial: «A luz batia-lhe na cara, iluminava-lhe de frente a expressão contraída e triste. » (Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953, in Corpus do Português).

Quanto a defronte, figura este advérbio nas locuções prepositivas «defronte de», muito frequente, e «defronte a», menos frequente, conforme se pode confirmar, por exemplo, numa consulta do Corpus do Português (idem).