Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Devemos escrever «Ele adorava-a como a uma deusa» ou «Ele adorava-a como uma deusa»? Devemos escrever «amar a Deus» ou «amar Deus»?

Obrigado.

Resposta:

Todas as frases em questão estão corretas, mas convém compreender de que modo se constroem e em que condições são usadas.

Com verbos que exprimem sentimento, pode acontecer que o complemento direto venha regido de preposição:

1. «Só não amava a Jorge como amava ao filho.» (cf. C. Cunha e L. Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 143)

2. amar ao próximo (exemplo da Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1169)

3. amar a Deus (idem, ibidem)

Em qualquer caso, é também possível o complemento sem preposição (é, aliás, a opção talvez mais intuitiva na atualidade): «só não amava Jorge como amava o filho»; «amar o próximo»; «amar Deus».

Assinale-se, porém, que, no caso da construção com a conjunção como, a preposição a, ao associar-se a expressões referentes a pessoas, permite desambiguar a referência do termo da comparação:

4. Ivone estimava Alda como a uma irmã.

Em 4, a preposição permite indicar que o termo da comparação tem o mesmo referente que o complemento direto marcado pelo pronome -a. Se a preposição não ocorresse, a frase tornar-se-ia ambígua: «Ivone estimava Alda como uma irmã» (= «Ivone, como se fosse uma irmã, estimava Alda», ou «Ivone estimava Alda como se esta fosse uma irmã»?)

A po...

Pergunta:

Num texto que li hoje, uma das personagens dizia o seguinte: «Ele tem um caderno na sala de aulas.»; ao que o interlocutor respondeu com esta resposta: «Vistes-lo?». Ora o [programa] Word quer que eu corrija a resposta/pergunta para «vistes-lho». Faz sentido?

Muito obrigado!

Resposta:

A forma «vistes-lo» está efetivamente incorreta, porque ocorre:

a) ou em lugar de viste-o («tu viste-o»), forma do verbo ver conjugado pronominalmente na 2.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo;

b) ou em lugar de viste-lo («vós viste-lo»), forma do verbo ver conjugado pronominalmente na 2.ª pessoa do plural, também do pretérito perfeito do indicativo.

Em (b), a forma verbal perde o -s final e o pronome toma forma -lo, conforme as regras que alteram os pronomes pessoais átonos o(s) e a(s) de 3.ª pessoa,  quando estes figuram depois da forma verbal (ênclise).

Quanto a vistes-lho, é possível como forma da conjugação pronominal, mas resulta um tanto forçada, pois só se realiza em situações muito especiais. Por exemplo:

1. O aluno fez o exame de manhã. Vós vistes-lho?

Para contextualizar uma sequência como a apresentada 1, pode imaginar-se alguém que conserva o uso das formas correspondentes à 2.ª pessoa do plural e que interpela os examinadores do exame feito por certo aluno. A forma lho é a contração dos pronomes lhe que marca o interessado – «o aluno» – na ação referida pela frase (nos estudos gramaticais, fala-se em dativo de interesse), enquanto o retoma a referência de «o exame».

Pergunta:

Não consigo entender a diferença entre referência, referente e denotação.

Peço, por favor, uma explicação com exemplos para ajudar a compreender, visto que já vi as definições e não sei como distinguir esses conceitos.

Resposta:

Por referente, entende-se a entidade extralinguística que é identificada por um nome comum especificado por um artigo definido ou um demonstrativo («a maçã», «esta/essa/aquela maçã»), por um pronome pessoal (eu, tu, ele/ela, etc.) ou por um nome próprio (Raquel, João, Maria, etc.). Por exemplo, num contexto concreto, vejo uma maçã e, num enunciado, digo «esta maçã». Quando digo «eu falo», refiro-me a mim próprio como enunciador. Quando digo «o João canta», refiro-me a uma pessoa que conheço e se chama João. Os referentes tendem, portanto, a variar em função das pessoas que falam e dos contextos em que falam.

Referência pode ser sinónimo de referente, mas também designa a propriedade de as expressões linguísticas identificarem coisas, animais e pessoas do mundo extralinguístico. O facto de alguém, em dado momento, identificar uma maçã como «esta maçã» constitui um fenómeno de referência.

A denotação de uma palavra ou expressão é o seu significado literal e estável (cf. Dicionário Terminológico*). Por exemplo, maçã significa «fruto da macieira, de forma geralmente esférica», ou seja, trata-se da definição da palavra como um conjunto de propriedades abstratas. Por denotação, também se entende a classe de entidades do mundo a que corresponde essa definição da palavra; assim, a denotação de maçã é também o conjunto de todas as entidades que podem ser designadas por este vocábulo. A denotação «não varia de enunciado para enunciado, em função do contexto situacional ou discursivo, do falante ou do lugar ou do tempo em que se produz o enunciado» (Gramática do Português

Pergunta:

No campo da poesia popular, [o que] devo considerar romance?

Resposta:

No âmbito dos estudos da cultura popular, do folclore e da etnografia, romance ou rimance é um termo que designa «[um] poema de versos simples e curtos, de assunto comovedor e próprio para ser cantado» (dicionário da Porto Editora). Também se usa a palavra xácara como sinónimo (cf. rimance na Infopédia).

Pergunta:

No noticiário à volta do chamado fenómeno, também descrito como "jogo", Baleia Azul, tenho lido, e ouvido, o termo ora com artigo, ora não, no feminino ou no masculino, mas também no género neutro. Por exemplo: «Primeira vítima da Baleia Azul em Portugal», «O Baleia Azul é jogado sobretudo na famosa rede social russa VKontakte», «Desafio da Baleia Azul: o jogo que já matou três pessoas», «Baleia Azul faz vítimas entre os adultos», «Fazer um voto de que você é realmente uma Baleia Azul».

Em que ficamos?

Resposta:

São legítimas as oscilações da atribuição de género – ora masculino, ora feminino* – ao jogo em referência, porque elas se explicam pela maneira como se interpreta o nome em questão.

O nome do jogo ocorre como "Baleia Azul", forma que traduz o inglês Blue Whale, por sua vez tradução do russo Cиний кит (em transliteração latina Siniy Kit), literalmente «baleia-azul», que é do género masculino. Como nome comum, baleia-azul (que tem hífen) é do género feminino em português. Convertendo este nome comum em nome próprio, deveria continuar a usar-se hífen e manter-se-ia o género feminino: «a Baleia-Azul é um jogo perigoso». Contudo, tendo em conta o uso como nome próprio, é também possível «o Baleia-Azul», pressupondo «o jogo que se chama Baleia-Azul».

Uma consulta do Google revela o mesmo tipo de oscilação, embora com certa vantagem para o uso de Baleia-Azul no feminino. Contudo, esta conclusão deve ser considerada com bastante prudência, porque baleia-azul já ocorria antes em páginas eletrónicas para designar a espécie animal assim denominada. Isto significa que a alta frequência de uso do nome no género feminino para que aponta a referida consulta pode ser simplesmente o resultado conjunto do uso antigo, como apelativo de uma espécie animal, e do uso recente, como nome de um jogo.

* Os exemplos em que o nome do jogo figura sem artigo definido não são índice do género neutro, que, aliás, não existe como categoria gramatical no português. A omissão do artigo definido em casos como o de «Baleia Azul faz vítimas entre os adultos» decorre antes de uma possibilidade do estilo abreviado (elíptico) das frases que constituem títulos nos noticiários.