Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se a locução «até que» sempre é acompanhada do verbo no subjuntivo e, se sim, porque isso ocorre.

«Eu sairei até que tudo passe.»

«O tempo ficará parado até que findem o intervalo.»

«Fico até que todos façam os deveres.»

Obrigado.

Resposta:

Como locução subordinativa temporal, «até que» figura em orações subordinadas adverbiais, com o verbo:

(a) geralmente, no conjuntivo, como acontece nas frases apresentadas na pergunta: «o Rui esperou até que o chamassem» [exemplo da Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2001];

(b) no infinitivo: «o Rui esperou até o chamarem»;

(c) em contexto narrativo, no indicativo (idem, ibidem): «o carro enterrou-se na areia, e ninguém conseguia tirá-lo de lá, até apareceram os bombeiros».

O uso do conjuntivo (subjuntivo, no Brasil) como se ilustra em (a) pode ser entendido como uma propriedade típica das orações subordinadas introduzidas pela locução «até que», as quais, denotando uma situação pontual (o evento marcado por «chamassem»), constituem, em relação à oração principal («o Rui esperou»), um limite temporal impreciso, de caráter genérico e contingente («o Rui esperou o tempo que foi preciso»). O uso do indicativo em c), tem «[...] função predominantemente narrativa, correspondendo a uma situação pontual que interrompe (inesperadamente) uma outra situação de caráter prolongado [...]» (idem, ibidem).

Este contraste entre conjuntivo e indicativo torna-se mais saliente nas orações de «até que», quando se procura associar a locução «de repente»: com efeito, enquanto esta é incompatível com a frase em (a) – é estranha uma sequência como «o Rui esperou até que, de repente, o chamassem» –, já a sua inserção na frase ilustrativa  do uso referido em (c) – «não conseguíamos sair dali, até que, de repente, apareceram os bombeiros para nos ajudar» – é aceite sem hesitação.

Pergunta:

Gostaria de saber se na frase «água é bom para a saúde», o adjetivo bom está funcionando como um advérbio, ou se ele continua como um adjetivo.

Resposta:

Na frase em questão, a palavra bom ocorre como adjetivo, com a particularidade de não concordar com o sujeito da frase, que é «água». Do ponto de vista normativo, trata-se de uma construção aceitável, pela razão que a seguir se expõe.

Seria de esperar que a frase correta fosse «água é boa para a saúde» – e, de facto, é esta uma sequência gramatical. Contudo, o caso de não concordância do adjetivo com o sujeito configura uma situação muito especial, que só se  justifica pela explicação de Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (2003, pág. 551):

«Com as expressões do tipo é necessário, é bom, é preciso, significando "é necessário", o adjetivo pode ficar invariável, qualquer que seja o gênero e o número do termo determinado, quando se deseja fazer uma referência de modo vago ou geral. Poder-se-á também se fazer normalmente a concordância:

É necessário paciência.

É necessária muita paciência.

"O fato de ter sido precisa a explicação (...)" [AP. 1, 424, n.º 25]

"Eram precisos outros três homens" [AM. 1 apud RBa.1, 33] [...].»

No caso em questão, é possível, portanto, empregar «é bom» sem concordar com água, uma vez que o substantivo ocorre em sentido geral, não específico, como se se subentendesse «beber água é bom» ou «isso é bom».

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra cabo da vassoura (por exemplo) é homónima da palavra Cabo (de Cabo Verde ou cabo das Tormentas).

Obrigado.

Resposta:

Trata-se efetivamente de palavras homónimas, que têm etimologias e convergiram na mesma forma (palavras convergentes).

O cabo que se associa à palavra vassoura vem do latim tardio capŭlum, i, «corda para laçar, prender ou guiar animais, especialmente o cavalo», substantivo que derivou do verbo latino capĕre", «pegar, apanhar, agarrar» (Dicionário Houaiss). No português medieval, o termo teve as formas caboo e cabre (séc. XV); noutras línguas europeias, o mesmo vocábulo latino deu origem ao italiano cappio, «nó corrediço», ao francês câble e ao espanhol cable (idem). A palavra latina, pelo vocábulo náutico normando cable, «cabo, amarra», passou ainda ao inglês, como cable, ao alemão, como Kabel, e ao neerlandês, como kabel (idem).

O substantivo homónimo cabo, entendido como «ponta ou porção de continente que avança mar adentro», é uma das palavras que constituem o topónimo Cabo Verde. Como substantivo comum, cabo vem do latim caput, ĭtis, «cabeça, parte superior, bico, ponta, cabo, extremidade», através do latim vulgar capus, i, «do qual se originaram os vocábulos românicos correlatos romeno cap, italiano capo, engadinês ko, friulano kaf, francês chef, provençal e catalão cap, espanhol e português cabo, todas com ampla diversificação semântica» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Sei que se usa travessão seguido de vírgula quando a frase o exige. Por exemplo:

«Em se tratando de crime – e disso entendo bem –, não devemos ser lenientes.»

A minha dúvida é se podemos omitir a vírgula em casos como esse. Entendo que ela é gramaticalmente correta, mas pessoalmente acho muito feio. Para 1) uma pontuação visualmente mais limpa, e 2) como os travessões já quebraram a frase de qualquer maneira e separaram a primeira oração («Em se tratando de crime») da segunda («não devemos ser lenientes»), eu creio que não seria uma grande heresia omitir a vírgula. Isso procede?

Muito obrigada!

Resposta:

Compreende-se a argumentação exposta, mas o uso de travessões é funcionalmente semelhante ao dos parênteses, o que significa que do mesmo modo que, numa sequência como «em se tratando de crime (e disso entendo bem), não devemos ser lenientes»*, a vírgula segue o parêntese que fecha, também numa sequência em que se aplicam os travessões se deverá pôr vírgula após o travessão que fecha a sequência destacada.

Embora não seja este um procedimento formulado em termos obrigatórios, a verdade é que ele é seguido geralmente, como, aliás, confirmam algumas obras, por exemplo, Falar Melhor, Escrever Melhor (Lisboa, Seleções do Reader's Digest, 1991, p. 120), no capítulo "Como adquirir um maior domínio da linguagem", da autoria de Tereza Moura Guedes (manteve-se a ortografia original):

«Uma dúvida mais que por vezes se levanta é a da colocação da vírgula a seguir a um travessão ou a um parêntese. Isso é correcto quando a palavra que imediatamente precede o primeiro travessão ou o primeiro parêntese deva ser seguida pela vírgula. Nesses casos, é só após o grupo de palavras isolado pelos travessões ou pelos parênteses que se põe a vírgula, dado que esse grupo de palavras se relaciona com o que está para trás: "Quem diria que o António Ouriço, depois de morto — excogitava o tio Romualdo —, havia de arregimentar toda aquela fúria!" (Urbano Tavares Rodrigues, AM**, 64)»

Sendo assim, na frase em questão, a vírgula justifica-se, mesmo depois do segundo travessão, porque a oração «em se tratando de crime», a que se refere a sequência entre travessões,...

Pergunta:

Acabo de ler a seguinte frase: «Ela irrompeu sobre nós de modo ameaçador».

Pergunta: «irromper sobre» faz algum sentido? «Soa-me» francamente mal.

Muito obrigado!

Resposta:

Não é possível confirmar a impressão do consulente.

O verbo irromper pode selecionar um complemento de natureza locativa ou temporal:

1. Os meninos largaram a brincadeira e irromperam na sala (abonação do Dicionário Houaiss) – valor locativo (lugar onde);

2. A água irrompeu da parede em jorros (abonação adaptada, idem) – valor locativo (lugar donde)

3. A violência policial irrompeu logo nos primeiros minutos do comício (abonação adaptada, idem) – valor temporal.

É verdade que na maior parte das fontes consultadas não se recolhem exemplos do uso de sobre associado a irromper, mas, considerando que irromper tem por sinónimos arrojar-se e precipitar-se (cf. idem e Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado), verbos compatíveis com essa preposição, afigura-se legítimo que ela também se associe ao verbo em causa. Aliás, pode-se atestar este uso, por exemplo, num escritor da contemporaneidade, tido por excelente cultor da língua culta:

3. «Mas sobre o tremor íntimo irrompeu uma vulcânica consternação, também ela interior, que apenas se manifestou no gesto de apertar o nó da gravata» (Mário de Carvalho, Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, 1995, in