Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho um trabalho em mãos cujo título provável será:

"Árabes e Islão na literatura e no pensamento portugueses (1826-1935)"

"Árabes e Islão na literatura e no pensamento português (1826-1935)"

Qual é a formulação gramaticalmente mais correta?

Obrigado.

Resposta:

Os dois títulos estão corretos.

Depois de dois substantivos de géneros diferentes, cada qual no singular («na literatura e no pensamento»), o adjetivo faz a concordância de duas maneiras, conforme explicam Celso Cunha e L. Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 274; manteve-se a ortografia original):

«[...] Se os substantivos são de géneros diferentes e do singular, o adjectivo pode concordar:

a) com o substantivo mais próximo (concordância mais comum):

A professora estava com uma saia e um chapéu escuro.

Estudo o idioma e a literatura portuguesa.

b) Com os substantivos em conjunto, caso em que vai para o masculino plural (concordância mais rara):

A professora estava com uma saia e um chapéu escuros.

Estudo o idioma e a literatura portugueses

Confrontando as sequências em questão com as regras enunciadas na citação, conclui-se que o primeiro título está conforme a regra b), e o segundo título decorre da regra a).

Refira-se que os preceitos estabelecidos por Cunha e Cintra (1984) são reiterados por outras fontes; p. ex.: Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2003, pág.s 545/546); Paul Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 1989, ...

Pergunta:

O uso de um infinitivo simples no lugar de um infinitivo composto marca uma simplificação dos tempos verbais, depende do grau de formalidade ou possuem uma intercambialidade plena, sem comprometer o significado ou sentido da frase?

«Depois de correr até a esquina, voltou sem fôlego», ou «depois de ter corrido até a esquina, voltou sem fôlego??

«Depois de ser soldado nunca deixou de ser», ou «depois de ter sido soldado nunca deixou de ser»?

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Trata-se  da possibilidade da substituição de uma forma pela outra – de "intercambialidade", como se sugere na pergunta –, sem incorrer em incorreção ou alteração significativa no significado da frase. O infinitivo simples (IS) pode substituir o infinitivo composto (IC), mas a inversa não é sempre possível.

Assim, nos contextos apresentados são possíveis os dois tipos de infinitivo. No entanto, se numa frase ocorre um advérbio ou uma locução adverbial com sentido de futuridade, só é possível o IS (o * indica incoerência semântica):

1. A Catarina lamenta viajar para Paris amanhã.

2. *A Catarina lamenta ter viajado para Paris amanhã.

Note-se, porém, que o IC pode ter valor de futuro. Por exemplo, quando faz parte de uma frase em que ocorre uma oração temporal com o verbo no futuro do conjuntivo:

3. A Maria espera ter acabado Guerra e Paz, quando o pai regressar do estrangeiro.

Em 3, o IC «ter acabado» exprime uma ação futura – «ter acabado Guerra e Paz – que é anterior a outra também futura – ««regressar do estrangeiro». Na frase 3 pode, contudo, ocorrer também o IS, conforme o princípio geral acima enunciado, como acontece no exemplo a seguir:

4. A Maria espera acabar Guerra e Paz quando o pai regressar do estrangeiro.

Obs.: Informação e exemplos da Gramática do Português da Fundação Calouste Gu...

Pergunta:

Gostaria de saber de onde vem o significado da palavra orelhudo enquanto «viciante e facilmente memorizável para o ouvido», patente em expressões como «riffs orelhudos» ou «refrães orelhudos», usadas frequentemente por críticos de música, e que, curiosamente, não se encontra como uma das definições nos verbetes da Infopédia nem do Priberam.

Resposta:

Trata-se de uma extensão do significado de orelhudo, muito provavelmente a partir de um jogo com a aceção de «teimoso, obstinado; estúpido», fazendo com que esta denotação passe das pessoas que ouvem – tanto até chegar quase à falta de inteligência ou à insanidade – para a música que as põe nesse estado. Este processo conceptual e semântico é enquadrável na metonímia e na hipálage, que, sendo figuras de retórica associadas habitualmente à literatura, têm também incidência na construção e evolução do significado lexical. Observe-se ainda que este uso de orelhudo, ao contrário do que é dito em parte da pergunta, já tem registo e definição no dicionário da Priberam: «[Portugal, Informal] Diz-se da música cuja melodia facilmente se recorda e se consegue reproduzir após a sua audição (ex.: canção orelhuda).»

Recorde-se que orelhudo é um derivado adjetival de orelha que genericamente quer dizer «que tem orelhas grandes». As aceções acima mencionadas já são, portanto, desenvolvimentos semânticos deste significado básico.

Obs. – Um breve esclarecimento sobre o anglicismo riff, usado pelo consulente. É um substantivo que designa «uma frase em ostinato num solo improvisado no jazz» e «o fragmento melódico baseado nessa frase» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

«Depois disso, espreguiçava-se lentamente, deixava-se cair sobre a relva, braços e pernas esticados ao máximo, olhos fixos no azul celeste, por onde tufos de nuvens, aqui e acolá, passavam indolentes.»

Na frase acima, pode-se grafar «azul celeste», assim, sem o hífen, considerando não a cor, mas um tipo de azul que seja celeste, significando «do céu»?

Obrigado.

Resposta:

Pode escrever-se «azul celeste» assim mesmo, sem hífen, não para denotar um tom de azul (neste caso, grafa-se azul-celeste), mas para fazer referência à cor azul que o céu apresenta.

Com hífen, azul-celeste – como se já respondeu aqui – é um adjetivo e uma palavra composta que significa «cor azul-clara, como a do céu quando limpo» (Dicionário Houaiss).

Já a sequência «azul celeste», interpretável como «azul do céu», não constitui um composto, funcionando como combinação sintática que mantém a sua composicionalidade, isto é, cuja semântica é redutível à literalidade dos seus elementos constituintes – o substantivo azul e o adjetivo celeste. Neste caso, não se emprega hífen, porque celeste é um adjetivo relacional que significa «relativo ao céu», tal como ocorre em «corpos celestes» e «espíritos celestes» (=«corpos/espíritos que aparecem ou estão no céu»; cf. Dicionário Houaiss). Celeste ocorre igualmente como adjetivo nas aceções de «divino» e «sobrenatural» (ex.: «voz celeste»; cf. idem).

Pergunta:

É correcto dizer ou escrever «penso-te»?

Resposta:

«Penso-te» é um uso correto, que tem o seu devido contexto, quando o verbo significa «julgar» ou «imaginar».

O verbo pensar tem muitas vezes associada a preposição em, conforme o esquema «penso em alguma coisa/alguém», o que legitima uma frase como «penso em ti». Contudo, quando pensar ocorre com complemento direto («pensar alguma coisa») parece dificultada a realização de tal complemento, quando este tem por por núcleo um substantivo ou um pronome pessoal que façam referência a entidades concretas animadas (animais ou pessoas, às quais é comum o traço semântico [+animado]). É, pois, estranho, se não mesmo inaceitável, que se diga «penso o cão», «penso o João», ou, com pronome pessoal, «penso-te».

Regista-se, porém, a possibilidade de pensar equivaler a «julgar» ou «imaginar», numa aceção que torna este verbo compatível com um complemento direto realizado por uma expressão nominal com o traço semântico [+animado], desde que seguida de um predicativo do complemento direto (complemento direto sublinhado e o seu predicativo em negrito): «pensei o cão cheio de fome» (mesmo neste caso, a intuição linguística pode levar à rejeição da frase), «pensas o João dececionado», «pensava-te no Porto». Esta possibilidade é equivalente a pensar seguido de uma oração com o verbo num tempo finito: «pensei que o cão estava/estivesse cheio de fome»; «pensas que o João está dececionado»; «pensava que tu estavas no porto».

O emprego de pensar com complemento direto + predicativo do complemento direto  não é desconhecido dos dicionários de verbos, co...