Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pode dizer-se «duzentos cinquenta», «quinhentos cinquenta», etc., ou tem de dizer-se «duzentos e cinquenta», «quinhentos e cinquenta», etc.? Há alguma regra que explique a presença do «e» em «vinte e quatro» e a sua ausência em «vinte cinco»?

Resposta:

Na escrita, a conjunção é obrigatória quer com numerais das dezenas quer com os que representam centenas, conforme, aliás, se pode ler na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1984, p. 372):

«1. A conjunção e é sempre intercalada entre as centenas, as dezenas e as unidades:

trinta e cinco

trezentos e quarenta e nove

2. Não se emprega a conjunção entre os milhares e as centenas, salvo quando o número terminar numa centena com dois zeros:

1892 = mil oitocentos e noventa e dois

1800 = mil e oitocentos [...].»

Na pronúncia-padrão, também o [i] correspondente à conjunção é articulado e audível:

duzentos e cinquenta: [duzẽtuzisĩ'kwẽtɐ];

vinte e cinco (ou seja, "vint'e cinco"): [vĩti'sĩ'ku];

vinte e seis ("vint'e seis"): [vĩti'sɐjʃ];

vinte e sete ("vint'e sete"): [vĩti'sɛtɨ].

Contudo, é verdade que, na oralidade, a conjunção nem sempre é audível ou articulada, por fenómenos fonéticos característicos do português de Portugal que não estão totalmente esclarecidos. Parecem estes relacionar-se com a estabilidade do segmento [i] quando se encontra em posição átona numa unidade prosódica como é o caso de um numeral composto. Assim:

1. Em casos como os de «duzentos cinquenta», «trezentos e cinquenta», etc., ou seja, apenas antes de cinquenta, terá de se atender ao contexto fonético. A conjunção e ocorre en...

Pergunta:

Como bem sabido, as terminações -us do latim são, de praxe, transcritas no português como -o para uma enorme quantidade de termos e nomes, tanto da antroponímia como da toponímia. Gostaria de saber, considerando esse dado, se poderíamos admitir que vicus é passível de ser escrito como vico para determinar o termo romano para pequeno assentamento/aldeia e a unidade administração vinculada a este tipo de estrutura urbana. Bem sei que pagus [aldeia; pequena unidade administrativa] já chegou ao português desde muito cedo no português como pago (o que reforça o que disse acima), mas ainda me faltam fontes para vicus, mesmo sabendo que é tendência essa alteração.

Resposta:

Está dicionarizada como vico a adaptação do latim vīcus ao português, por exemplo, no Dicionário Houaiss e no dicionário Priberam.

Sobre a conveniência do seu uso em lugar da forma latina, a resposta não se afigura taxativa. Como a adaptação não é uma palavra que tenha grande difusão*, pode-se sempre discutir se o seu uso em textos especializados não será factor de alguma confusão, por a sua forma moderna sugerir que a sua denotação é também aplicável a realidades urbanas da atualidade. Se o nível e especialização de um texto o exigir, será melhor então manter a forma latina; se se optar pela adaptação portuguesa, será aconselhável deixar uma nota prévia sobre essa opção.

* Vico é um termo da área da arqueologia abonado apenas no século XX, como adaptação do latim vīcus,i [«bairro (de uma cidade), povoação, aldeia»], segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:«1. Bairro de um cidade. 2 Agrupamento de casas; lugarejo, povoação, aldeia. 3. Pequena propriedad...

Pergunta:

Eu leio há muito tempo em textos técnicos de Matemática construções do tipo «Se um conjunto é finito, então qualquer subconjunto deste também é». Ou, quando muito, «Se um conjunto for finito, então qualquer subconjunto deste também é.» Essas parecem-me erradas (um erro aparentemente oriundo de um anglicismo). A que me parece correta é a seguinte: «Se um conjunto for finito, então qualquer subconjunto deste também será.»

Assim, tenho esta dúvida: em uma frase condicional do tipo «Se (...), então (...)», o verbo na oração subordinada deve necessariamente estar conjugado no modo conjuntivo? Ademais, pode-se estabelecer alguma relação a priori entre os tempos nos quais os verbos das orações principal e subordinada são conjugados?

Agradeço desde já.

Resposta:

Em português, usa-se o presente do indicativo em enunciados genéricos, como são os da matemática ou de outra disciplina científica.

O presente do indicativo figura como tempo característico das frases genéricas, como observa a Gramática do Português (GP), da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág.. 516)

«O presente do indicativo é também usado em frases genéricas, que representam características típicas ou essenciais de espécies ou outros tipo de entidades [...] como se ilustra em (8):

(8) a. Os tigres são animais ferozes.

b. O embondeiro está em vias de extinção. [...]»

Este valor genérico pode também estar associado a orações condicionais que têm o verbo no indicativo e são interpretadas factualmente, também como se assinala na GP (pág. 2021):

«[...] [A]s construções condicionais podem ser classificadas consoante a proposição expressa pelo antecedente (ou seja, a oração introduzida pelo conector condicional) tenha tido lugar, possa vir a ter lugar ou não tenha tido efetivamente lugar. Assim, o primeiro do seguintes exemplos tem uma interpretação factual ou real; o segundo tem uma interpretação hipotética – o João pode vir a estar doente ou não; e o terceiro tem um interpretação contrafactual ou irreal, ou seja, depreende-se que o Rui não esteve doente:

(147) a. Se o Rui estava doente, a mãe telefonava-lhe todos os dias.

         b. Se o Rui estiver doente, a mãe telefonar-lhe-á todos os dias.

  ...

Pergunta:

Qual o plural de «instituição mãe»? Li o vosso artigo sobre o plural de nomes compostos mas não fiquei esclarecida quanto à regra a usar. Nem sei se deve ter hífen ou não e se o hífen muda alguma coisa.

Grata pela atenção.

Resposta:

Aconselha-se o uso de hífen: instituição-mãe, cujo plural poderá ser instituições-mães e instituições-mãe.

A palavra em questão não está dicionarizada, nem talvez venha a estar, porque mãe pode funcionar como um elemento de composição a que certas fontes chamam «determinante específico», quando ocorre posposto a outro substantivo «e significa 'fonte', 'origem' (navio-mãe, ideia-mãe, célula-mãe), 'geratriz' (rainha-mãe), 'principal', 'mais importante' (agulha-mãe, nave-mãe)» (Dicionário Houaiss, s. v. mãe) [1]. Existe, portanto, um grande número potencial de substantivos assim compostos que podem ser atualizados pontualmente em discurso, sem necessidade de terem registo em dicionário.

Geralmente, são hifenizados os compostos formados por dois substantivos, como é o caso. Já o plural pode sofrer oscilações, mas, considerando que mãe se usa metaforicamente como sinónimo de importante, afigura-se mais simples aceitar o plural instituições-mães, se cada uma for isoladamente uma instituição e origem de outra instituição. Se várias instituições forem, no seu conjunto, origem de outras, aceita-se instituições-mãe.

 

[1 N.E. – O Dicionário Houaiss define o critério segundo o qual mãe tem hífen associado, quando é determinante espcíico, com o sentido de «fonte, origem»;  nesta perspetiva, deve escrever-se instituição-mãe. No entanto, não é este um procedimento consensual: por exemplo, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como subentrada a mãe as formas não hifen...

Pergunta:

Surgiu uma controvérsia em torno da expressão «tá-se bem», a que, por curiosidade, fui dar num site de conjugação de verbos onde me surgiu o verbo "estar-se". Está todo conjugado e parece-me correcto, embora tenha dúvidas se tal pode ser chamado de verbo. Apesar da dúvida, penso que se trata de assuntos diferentes.

Portanto, no primeiro caso a dúvida é se o correcto é "tá-se", ou "tasse". No segundo caso, se existe este verbo e se o se é um pronome pessoal reflexo que depois nas diferentes conjugações se ajusta ao sujeito.

Desde já agradeço a ajuda que possa receber.

Resposta:

A forma mais adequada não é "tasse", mas, sim, tá-se que, no registo informal, é o mesmo que está-se. A forma estar-se não é um verbo, mas antes uma possibilidade do uso do verbo estar, ao qual se – que é um pronome pessoal, o que significa que o verbo é conjugado pronominalmente – só se associa em certas condições.

Tradicionalmente, está-se e sua variante tá-se (esta só pode ocorrer informalmente) não costumavam ocorrer isoladamente, constituindo por si sós uma frase. No entanto, em associação com um advérbio, faziam e fazem todo o sentido; p. ex.:

1. Aqui está-se/tá-se bem.

Em 1, o se é equivalente a alguém ou até a nós e «a gente», em sentido genérico. Este uso parece estar na origem de dois modismos que têm hoje grande difusão no português de Portugal, sobretudo entre a população mais jovem: «tá-se bem», ou mais simplesmente «tá-se». Nestas duas expressões, figura a forma popular de estar, tar (não se encontra em dicionários gerais1), na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo , isto é, a forma verbal correspondente a ele ou ela. A variante tar surgiu por queda da sequência es- de estar, isto é, por aférese de es-2.

Convém ainda dizer que certas páginas eletrónicas dedicadas à conjugação verbal devem ser consultadas e apreciadas com algum cuidado, justamente porque podem não tratar a informação gramatical de forma mais adequada, como é o caso "estar-se", que como verbo não tem existência autónoma. O que existe...