Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o o adjetivo do nome Cluny? Qual a forma mais correta "clunicense" ou "cluniacense"?

Obrigada.

Resposta:

A forma mais correta é cluniacense, porque derivada da forma Cluníaco, forma portuguesa de Cluny, conforme regista no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves.

O topónimo francês Cluny, denominação de uma famosa cidade da região da Borgonha, tem uma forma portuguesa, Cluníaco, que constitui uma adaptação do latim Cluniacum. Foi na cidade de Cluny que surgiu no séc. X um movimento monacal – a Ordem de Cluny – que levou a cabo uma reforma da Ordem de São Bento e se expandiu pela Europa, nomeadamente na Galiza e no norte de Portugal, onde teve importante influência estética, espiritual e política.

Há quem registe também a forma cluniense, mas o seu uso afigura-se mais adequado como gentílico de Clúnia, uma cidade da Hispânia romana.

Pergunta:

Eu sempre [soube] que o ditongo õe se pronuncia nos padrões europeu e brasileiro como um ditongo /õj/, mas um dia vi que o Instituto Camões registra a pronúncia deste ditongo como um monotongo [õ] na sua página de Internet.

É por esta razão que solicito a sua ajuda, a fim de esclarecer esta questão.

Obrigado.

Resposta:

Em relação à grafia <õe>, de calções, a transcrição só pode ser a do ditongo [õj̃] no português padrão tanto de Portugal como do Brasil.1

No entanto, é possível que haja pronúncias regionais em que ocorra a vogal [õ] com queda da semivogal (o ditongo passa a um som simples, ou seja, torna-se um monotongo). Por exemplo, em certos falares açorianos a forma <calções> é pronunciada [kalsõʃ], conforme observa J. M. Soares de Barcelos no seu Dicionário de Falares dos Açores (Coimbra: Livraria Almedina, 2008, pág. 22)2:

«[...] Os substantivos terminados em [ão], que no português padrão terminam em [ões], apresentam – tal como no Baixo AlentejoAlgarve – em muitas das ilhas a forma [ons], certamente com maior intensidade na Ilha de S. Miguel: calçons, garrafons, limons, varons, em vez de calçoes, garrafões, [limões], varões. Esta terminação também se ouve muito na Madeira e na parte sul-ocidental da Galiza

1 Verificámos a página em causa, e deteta-se um pequeno erro: num dos quadros intitulados "Vogais nasais" – o primeiro –, a forma verbal põe...

Pergunta:

Recentemente, li num site linguístico brasileiro, sobre o tema «ar condicionado com ou sem hífen», que o termo «ar condicionado», sem hífen, se refere ao sistema de refrigeração do ar, ou ao ar por ele "condicionado". No entanto, com hífen, "ar-condicionado", refere-se ao aparelho em si.

Exemplos: «O meu escritório tem ar condicionado», mas, por outro lado, «Tive de mandar o meu ar-condicionado para arranjar». Ou seja, "ar-condicionado" é o mesmo que «aparelho de ar condicionado».

Penso que isto faz sentido, mas não encontro esta distinção em nenhum dicionário, nem nas entradas anteriores do Ciberdúvidas. Pergunto se concordam.

Resposta:

A distinção semântica e gráfica que descreve tem registo nos dicionários do Brasil, mas não nos dicionários publicados em Portugal.

No Dicionário Houaiss, encontra-se ar-condicionado como o mesmo «condicionador de ar», ou seja, «qualquer aparelho usado para regular a temperatura e a humidade de um ambiente fechado». O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras também acolhe a forma hifenizada.

No entanto, no contexto português, nem o dicionário da Porto Editora (na Infopédia), nem o da Academia apresenta a forma com hífen. É o dicionário Priberam que a consigna, considerando-a um sinónimo brasileiro de «ar condicionado». Por esta razão, embora ar-condicionado seja grafia correta, que se justifica por introduzir uma distinção semântico-referencial pertinente, acontece que não faz parte do elenco de grafias características de Portugal.

Nada impede o consulente de escrever ar-condicionado, se assim entender, até a bem da clareza da expressão. Mas as necessidades desta não permitem classificar como erro a locução nominal «ar condicionado», na aceção de «aparelho para regular a temperatura de um ambiente fechado».

Pergunta:

Qual o significado da exclamação «e vai roupa!»?

Continuação de bom trabalho em prol da língua portuguesa.

Resposta:

Trata-se de um regionalismo algarvio recolhido por Abel Viana em Subsídios para um Vocabulário Algarvio (separata da Revista de Portugal, Lisboa, 1954, pág. 68), com a forma «aí vai roupa», que significa «aí vai trabalho». A forma «E vai roupa» parece, portanto, uma variante, «'i vai roupa», na qual se usa "i" como variante de . Note-se ainda que na obra consultada se regista também a expressão semanticamente afim «isto agora é que é roupa!», equivalente a «agora é que isto dá que fazer».

Pergunta:

Como trabalho com design gráfico, às vezes fica complicado saber que termos usar de forma correta. Gostaria de saber qual a diferença entre as palavras motivo e padrão. Os dicionários não são claros.

Resposta:

Numa perspetiva técnica e de um modo muito sintético, motivo é um elemento isolado que se pode repetir, ou não, e o padrão é a sequência de um motivo.1

Refira-se que motivo vem do latim medieval motivum (neutro), «motivo, razão», substantivação do latim tardio motīvus, a, um, «relativo ao movimento, móvel», de motum, supino2 de movēre, «mover»; contudo na aceção de «fragmento melódico ou rítmico que unifica uma composição», que é afim da que se associa ao termo empregado em design, a palavra entrou no português por via do francês motif (cf. Dicionário Houaiss). Quanto a padrão, nos sentidos genéricos de «base de comparação» e «esquema», o étimo é o latim patrōnu- de patrōnus, i, «patrono, protetor dos plebeus; advogado, defensor» e, em sentido figurado, «arrimo, apoio» (cf. idem).

1 Agradeço o esclarecimento prestado pelos designers Henrique Cayatte e Marta Teives.

2 «[O supino é uma] forma nominal do verbo latino, em -um, de sentido ativo, que se usa apenas junto a verbos que indicam movimento, como, p.ex., ire, venire etc. (fuerunt rogatum auxilium "foram pedir ajuda"), e em -u, de sentido passivo, que se emprega somente como adjunto de alguns adjetivos (spectacŭlum mirabĭle visu "espetáculo admirável de se ver")» (Dicionário Houaiss).<...