Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Surgiu uma controvérsia em torno da expressão «tá-se bem», a que, por curiosidade, fui dar num site de conjugação de verbos onde me surgiu o verbo "estar-se". Está todo conjugado e parece-me correcto, embora tenha dúvidas se tal pode ser chamado de verbo. Apesar da dúvida, penso que se trata de assuntos diferentes.

Portanto, no primeiro caso a dúvida é se o correcto é "tá-se", ou "tasse". No segundo caso, se existe este verbo e se o se é um pronome pessoal reflexo que depois nas diferentes conjugações se ajusta ao sujeito.

Desde já agradeço a ajuda que possa receber.

Resposta:

A forma mais adequada não é "tasse", mas, sim, tá-se que, no registo informal, é o mesmo que está-se. A forma estar-se não é um verbo, mas antes uma possibilidade do uso do verbo estar, ao qual se – que é um pronome pessoal, o que significa que o verbo é conjugado pronominalmente – só se associa em certas condições.

Tradicionalmente, está-se e sua variante tá-se (esta só pode ocorrer informalmente) não costumavam ocorrer isoladamente, constituindo por si sós uma frase. No entanto, em associação com um advérbio, faziam e fazem todo o sentido; p. ex.:

1. Aqui está-se/tá-se bem.

Em 1, o se é equivalente a alguém ou até a nós e «a gente», em sentido genérico. Este uso parece estar na origem de dois modismos que têm hoje grande difusão no português de Portugal, sobretudo entre a população mais jovem: «tá-se bem», ou mais simplesmente «tá-se». Nestas duas expressões, figura a forma popular de estar, tar (não se encontra em dicionários gerais1), na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo , isto é, a forma verbal correspondente a ele ou ela. A variante tar surgiu por queda da sequência es- de estar, isto é, por aférese de es-2.

Convém ainda dizer que certas páginas eletrónicas dedicadas à conjugação verbal devem ser consultadas e apreciadas com algum cuidado, justamente porque podem não tratar a informação gramatical de forma mais adequada, como é o caso "estar-se", que como verbo não tem existência autónoma. O que existe...

Pergunta:

Durante a releitura de Capitães da Areia, do escritor brasileiro Jorge Amado, deparei-me com a palavra treita no seguinte contexto:

«– Tu vai longe, menino. Tu pode enricar com essas treitas» (Capitães da Areia, 2008, p. 45).

Fiquei com a dúvida quanto à acepção da palavra treita no contexto acima e a consulta ao dicionário me levou à palavra treta ou, insistindo na busca do significado, «à treita». No contexto dado, treita, assim ditongada, será alteração fonética de treta com sentido de «ação que se vale de astúcia; ardil, estratagema, manha» (Houaiss, 2009)?

Resposta:

Classificado como brasileirismo, treita pode constituir uma variante de treta, mas não se exclui que seja palavra portuguesa patrimonial de origem latina, com um percurso divergente.

Considerando que em muitos dialetos brasileiros o ditongo ei tende a monotongar-se como e, pode registar-se a tendência contrária, ao interpretar como ditongo uma vogal que nunca o foi. Por outras palavras, numa região onde se diz "manêra", em vez de "maneira", é possível que, por analogia com vocábulos como direita ou maleita, os falantes comecem a interpretar a vogal fechada como supostos ditongos; seria este o caso de treta, que não incluindo historicamente o ditongo ei passou a tê-lo por restituição etimologicamente injustificada1.

Contudo, há que prestar igual atenção à etimologia de treta, «destreza no jogo da esgrima» e, por extensão de sentido, «ação que se vale de astúcia; ardil, estratagema, manha».  Segundo o Dicionário Houaiss, este vocábulo tem origem no castelhano treta, por sua vez adaptação do francês traite,  do feminino substantivado do particípio passado de tractus, a, um, de trahĕre, «tirar, puxar, arrastar, mover, rolar, levar de rojo, atrair, etc.»

Refira-se, porém, que este brasileirismo tem um homónimo relacionado com a atividade agrícola. Com efeito, o Dicionário Houaiss regista treita – do latim tracta, com a mesma etimologia que a referida forma traite, do francês –, nas seguintes aceções: «pegada ou marca deixada por homem ou animal nos caminhos por onde passa; rastro, pista», «nesga de terra; belga» (regionalismo português da Bairrada); «cada uma das faixas de...

Pergunta:

Como se pronuncia balaústre e balaustrada?

Resposta:

O substantivo balaústre, que significa «pequena coluna, geralmente mais grossa no meio do fuste, que se alinha com outros para sustentar um corrimão, uma travessa ou um peitoril» – cf. o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) –, pronuncia-se "bâ-lâ-us-tre" – transcrição fonética  [bɐlɐˈuʃtɾɨ] (Vocabulário Ortográfico do Português – VOP). Separa-se, portanto o u do a precedente, ou seja, ficam estas vogais em hiato, não formando ditongo.

Quanto a balaustrada, que designa uma fila ou barreira de balaústres («parapeito que consiste numa fila de balaústres usado como remate de uma construção ou anteparo de um vão de uma varanda, de uma janela ou de um terraço», segundo o dicionário da ACL), mantendo-se o hiato da base donde deriva, articula-se esta palavras como  "ba-la-us-tra-da" – transcrição fonética [bɐlɐuʃˈtɾadɐ ] (cf. VOP). No entanto, está muito difundida a pronúncia  "ba-laus-tra-da" – em transcrição fonética [bɐlɐwʃˈtɾadɐ] –, em que sequência au é se pronuncia com o mesmo ditongo que se ouve em autor.

Nota-se, portanto, que balaustrada, apesar de derivar de balaústre, oscila entre duas pronúncias e os dicionários dividem-se: se o VOP e o Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001) indicam hiato ("a-u"), o dicionário da Porto Editora e o da ACL transcrevem foneticamente a palavra com o ditongo [aw]. Importa també...

Pergunta:

Gostaria de saber se a locução «até que» sempre é acompanhada do verbo no subjuntivo e, se sim, porque isso ocorre.

«Eu sairei até que tudo passe.»

«O tempo ficará parado até que findem o intervalo.»

«Fico até que todos façam os deveres.»

Obrigado.

Resposta:

Como locução subordinativa temporal, «até que» figura em orações subordinadas adverbiais, com o verbo:

(a) geralmente, no conjuntivo, como acontece nas frases apresentadas na pergunta: «o Rui esperou até que o chamassem» [exemplo da Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2001];

(b) no infinitivo: «o Rui esperou até o chamarem»;

(c) em contexto narrativo, no indicativo (idem, ibidem): «o carro enterrou-se na areia, e ninguém conseguia tirá-lo de lá, até apareceram os bombeiros».

O uso do conjuntivo (subjuntivo, no Brasil) como se ilustra em (a) pode ser entendido como uma propriedade típica das orações subordinadas introduzidas pela locução «até que», as quais, denotando uma situação pontual (o evento marcado por «chamassem»), constituem, em relação à oração principal («o Rui esperou»), um limite temporal impreciso, de caráter genérico e contingente («o Rui esperou o tempo que foi preciso»). O uso do indicativo em c), tem «[...] função predominantemente narrativa, correspondendo a uma situação pontual que interrompe (inesperadamente) uma outra situação de caráter prolongado [...]» (idem, ibidem).

Este contraste entre conjuntivo e indicativo torna-se mais saliente nas orações de «até que», quando se procura associar a locução «de repente»: com efeito, enquanto esta é incompatível com a frase em (a) – é estranha uma sequência como «o Rui esperou até que, de repente, o chamassem» –, já a sua inserção na frase ilustrativa  do uso referido em (c) – «não conseguíamos sair dali, até que, de repente, apareceram os bombeiros para nos ajudar» – é aceite sem hesitação.

Pergunta:

Gostaria de saber se na frase «água é bom para a saúde», o adjetivo bom está funcionando como um advérbio, ou se ele continua como um adjetivo.

Resposta:

Na frase em questão, a palavra bom ocorre como adjetivo, com a particularidade de não concordar com o sujeito da frase, que é «água». Do ponto de vista normativo, trata-se de uma construção aceitável, pela razão que a seguir se expõe.

Seria de esperar que a frase correta fosse «água é boa para a saúde» – e, de facto, é esta uma sequência gramatical. Contudo, o caso de não concordância do adjetivo com o sujeito configura uma situação muito especial, que só se  justifica pela explicação de Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (2003, pág. 551):

«Com as expressões do tipo é necessário, é bom, é preciso, significando "é necessário", o adjetivo pode ficar invariável, qualquer que seja o gênero e o número do termo determinado, quando se deseja fazer uma referência de modo vago ou geral. Poder-se-á também se fazer normalmente a concordância:

É necessário paciência.

É necessária muita paciência.

"O fato de ter sido precisa a explicação (...)" [AP. 1, 424, n.º 25]

"Eram precisos outros três homens" [AM. 1 apud RBa.1, 33] [...].»

No caso em questão, é possível, portanto, empregar «é bom» sem concordar com água, uma vez que o substantivo ocorre em sentido geral, não específico, como se se subentendesse «beber água é bom» ou «isso é bom».