Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradeço o trabalho de vocês, com o qual ajudam a propagar o conhecimento.

Gostaria de perguntar a origem da palavra guardião. Pesquisei que ela teria origem do termo latino guardianus, do frâncico wardianus, latinização de wardon, «guardar, vigiar».

Procede esta informação?

Resposta:

A etimologia de guardião que parece ter mais aceitação na dicionarística é devedora do Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, de Joan Coromines e José Antonio Pascual, e encontra-se exposta no Dicionário Houaiss:

«latim medieval guardianus < *wardianus, romanização do acusativo gótico wardjan < warda "sentinela"; cp. italiano guardiano "que tem o encargo de vigiar" e espanhol guardián "idem", de mesma origem [...].»

No entanto, não é de excluir outra hipótese, a de a palavra portuguesa (e os seus cognatos noutras línguas românicas, entre elas, o castelhano) ter origem em guardianus, forma que o latim medieval deu a um empréstimo não do gótico (uma língua germânica), mas, sim, do frâncico (outra língua germânica), uma palavra que teria a forma *warding-. Este vocábulo faria parte da família do verbo frâncico *wardon, que de algum modo manteria a forma *wardon, «guardar», do protogermânico (cf. Online Etymology Dictionary). A palavra portuguesa (com a sua homóloga castelhana) poderá, portanto, remontar a uma palavra latina introduzida pela influência francesa e

Pergunta:

O Expresso de [3/09/2018] usa a expressão «regressa o forrobodó».

Eu contestei: «Lastimo mas diz-se FARROBODÓ. Vem de Joaquim Pedro Quintela, 1.º Conde de Farrobo. Era o nome dado às festas sumptuosas da sua Quinta das Laranjeiras, actual Zoo de Lisboa e palacete onde está o Teatro Thalia por ele construído.» Um amigo comentou: «Mas nos dicionários Diciopédia, Michaelis, Priberam e Linguee, assim como no Portal da Língua Portuguesa (ILTEC), está "forrobodó"...»

Provavelmente, digo eu, uma expressão do Brasil.

Qual será a correcta (admitindo serem ambas)?

Obrigado.

 

[N. E. – A pergunta mantém a ortografia anterior à norma atualmente em vigor, a do Acordo Ortográfico de 1990.]

Resposta:

A história dos registos da palavra em dicionários e vocabulários ortográficos parece favorecer a forma forrobodó, mas igualmente se acham entradas para farrobodó e farrabadó, por exemplo, na 10.ª edição do dicionário de Morais.1 É duvidoso que a forma farrobodó, como farrabadó, seja anterior a forrobodó, mas muito mais duvidoso é que qualquer uma destas formas se relacione com Farrobo, como pretendem quantos argumentam com uma história veiculada mais recentemente pelos media portugueses com certos contornos de lenda urbana.

Com efeito, a partir da consulta de uma muito útil cronologia disponibilizada pelo sítio DicionárioeGramática – na qual se arrolam os vários dicionários monolingues publicados desde o séc. XVIII –, é possível concluir que só na 1.ª edição, de 1899, do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo se acolhe a palavra em questão, escrita forrobodó e identificada como brasileirismo que significa «baile reles». Anos mais tarde, é também forrobodó a entrada que figura na 1.ª edição (1909) do Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa, de Gonçalves Viana.

É certo que a atestação é posterior à época em que se diz ter sido criado o vocábulo, com a forma farrabodó, em alusão a Joaquim Pedro Quintela (1801-1869), 1.º conde de Farrobo, conforme a tese aceite num ...

Pergunta:

Queria saber se na língua portuguesa existe a dupla pronominalização.

Eu sou hispanofalante e surgiu a dúvida porque em espanhol podemos dizer cómetelo (come=verbo; te=pronome; lo=pronome) e eu quis fazer a tradução mas não consegui.

Obrigada!

Resposta:

A estrutura espanhola em causa traduz-se em português muito simplesmente por um único pronome: «come-o» ou «come».

Em português, existe dupla pronominalização, mas geralmente em relação ao objeto direto e indireto:

(1) «Dei um livro ao João.» → «Dei-lho [lhe+o]»

Pode também ocorrer com verbos pronominais:

(2) «As portas abriram-se para mim.». = «Abriram-se-me as portas.»

No entanto, a dupla pronominalização com verbos transitivos que é característica do espanhol, em que ao pronome de objeto direto (-lo) se soma um pronome reflexo (te), não ocorre em português. Com efeito, enquanto em espanhol, a uma frase como «me bebí el zumo» corresponde «me lo bebí», em português nada disto acontece, a não que se junte um quantificador a marcar a noção de culminação que está associada ao pronome reflexo no caso espanhol: «bebi o vinho (todo)» → «bebi-o (todo)».

A este tipo de pronominalização típica do espanhol, a Nueva Gramática de la Lengua Española (Asociación de Academias de la Lengua Española, 2010) chama dativo aspetual, que define assim (idem, p. 683/684; tradução minha):

«O chamado DATIVO ASPETUAL parece-se com o dativo ético no seu valor fundamentalmente afetivo, mas diferencia-se dele pelo facto de, como os pronome reflexos, concordar em número e pessoa com o sujeito, DATIVO CONCORDADO: Ya me [1.ª pessoa do singular] leí [1.ª pessoa do singular] toda la prensa.1 Nos [1.ª pessoa plural] fumábamo...

Pergunta:

Qual a pronúncia correta da palavra Dinamene? É uma palavra grave ou esdrúxula?

Resposta:

Existem duas pronúncias aceites, que se distinguem na grafia, conforme regista Rebelo Gonçalves, no seu Vocabulário da Língua Portuguesa (1966):

– uma esdrúxula, representada na escrita pela forma Dinâmene;

– outra grave, Dinamene, que, neste caso, soa como "dinaméne", pronúncia mais difundida, que Camões já teria dado ao nome quando o usava nos seus sonetos.

Dinâmene era como se chamava uma das nereidas (ou nereides), isto é, uma das ninfas marinhas, filhas de Nereu.

Pergunta:

Sei com toda certeza que a pronúncia padrão do dígrafo nh é a consoante nasal palatal /ɲ/ (exatamente igual à pronúncia padrão da minha lingua materna, o castelhano), porém também sei que pelo menos no Brasil a pronúncia mais comum é uma consoante nasal palatal aproximante [j̃], e usualmente nasalizando a vogal anterior a esta mesma (Compare-se a pronúncia da palavra Espanha, padrão europeu [ɨʃˈpɐɲɐ] vs. o padrão brasileiro [isˈpɐ̃j̃ɐ]).

Acaso há outras regiões da Lusofonia onde a pronúncia local do nh seja como no Brasil [j̃]?

Também gostaria que me aclarasse a origem desta pronúncia tão particular. Apenas ouvi por rumores que a influência é possivelmente africana, ameríndia ou que era até a pronúncia primigênea do dígrafo em galego-português (como com a palavra vinho, entre várias outras), mas não o sei com certeza.

Antes de tudo, obrigado.

Resposta:

É possível confirmar a existência de trabalhos no campo da linguística descritiva que apontam para a possibilidade de o segmento fonológico /ɲ/ ser realizado com semivogal nasal – isto é, como um i nasal – em vários dialetos brasileiros. Mas não se diga que esta pronúncia corresponde ao padrão do Brasil; trata-se tão-só de uma tendência detetável no discurso oral de muitos falantes brasileiros.

Por exemplo: «[...] os movimentos de [ɲ] > [y] e [ɲ] > [ø] já foram descritos por outras pesquisas, como a de Aguiar (1937) que encontrou realizações como [põ´bĩʊ] (pombinho), e também de Penha (1972) que encontrou formas como [pa´mõyɐ] (pamonha) e [veh´gõyɐ] (vergonha)» (Neffer Pinheiro, O processo de variação das palatais lateral e nasal no português de Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 2009, p. 21).

Já sobre a génese deste fenómeno, poderá defender-se que é resultado da ação de um substrato de língua banta ou outra da África subsariana, dada a deslocação de falantes dessas línguas durante o período em que o tráfico de escravos foi intenso. No entanto, não conhecemos trabalhos que fundamentem esta hipótese de forma plausível, até porque poderá também dever-se a um substrato ameríndio, o qual, aliás, pode criar o mesmo tipo de dificuldades quando se pretende detetá-lo na língua contemporânea. Do mesmo, não parece haver certezas quanto à possibilidade de esta articulação de nh ter origem em casos como o de vinho, que, no período galego-português, deveria apresentar uma vogal nasal intervocálica – vĩo –, provavelmente configurando uma pronúncia semelhante à que têm muitos falantes brasileiros.