Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Uma pergunta inusitada mas com pertinência circunstancial: deve dizer-se «Eu telefono-a» ou «Eu telefono-lhe».

O segundo modo é o corrente. Por que motivo?

Obrigado.

Resposta:

No sentido de «comunicar por telefone com alguém», só se aceita a segunda frase, ou seja, a frase em que telefonar é um verbo que seleciona um constituinte com a função de complemento indireto: «telefonei à Teresa» > «telefonei-lhe».

Pode considerar-se que este comportamento sintático é simplesmente idiossincrático, mas a equivalência de telefonar com «ligar a/para alguém» e ou com as perífrases «falar a/com alguém ao/pelo telefone» e «fazer um telefonema a/para alguém» sugerem que o verbo em causa seguiu o modelo sintático de outros verbos de comunicação, ao mesmo tempo que absorveu um complemento direto que está implícito na sua significação («fazer um telefonema», «usar o telefone»).

Pergunta:

No ensino de Português a estrangeiros como justificar o uso do pretérito perfeito numa situação passada que se prolonga no presente, como no seguinte caso: «sempre foste gordo»?

Resposta:

Não existe uma forma única de explicar esse uso do pretérito perfeito do indicativo, porque muito depende também da língua materna dos alunos. Mesmo assim, para falantes de espanhol, inglês, italiano, francês e alemão, que têm um tempo perfeito formado por um auxiliar equivalente a ter (e também a ser no italiano, no francês e no alemão) + particípio passado, pode explicar-se que, em português, o mesmo tempo verbal recobre os valores temporais que, nessas línguas, estão separados entre um tempo simples (pretérito simples, passé simple, past tense) e um tempo composto (pretérito prefeito composto, passé composé, present perfect, etc.).

Assim, a diferença que existe em inglês entre:

(1) I lived in England many years ago.

e

(2) I have always lived in England.

reduz-se em português ao mesmo tempo verbal:

(3) Vivi em Inglaterra há muitos anos.

(4) Vivi sempre em Inglaterra.

É natural que alunos estrangeiros perguntem que valor tem então o pretérito perfeito composto em português. Este tempo tem usos mais restritos que os tempos compostos correspondentes nessas línguas. Diga-se, de uma maneira muito genérica e simplificada, que marca um estado ou uma ação que têm o seu começo no passado e se repetem ou se prolongam até ao presente: «tenho lido muito desde o ano passado» (= «do ano passado até agora, li um livro, depois li outro e li mais outro, etc.»; cf. respostas indicadas nos Textos Relacionados).

Pergunta:

Pode dizer-se «duzentos cinquenta», «quinhentos cinquenta», etc., ou tem de dizer-se «duzentos e cinquenta», «quinhentos e cinquenta», etc.? Há alguma regra que explique a presença do «e» em «vinte e quatro» e a sua ausência em «vinte cinco»?

Resposta:

Na escrita, a conjunção é obrigatória quer com numerais das dezenas quer com os que representam centenas, conforme, aliás, se pode ler na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1984, p. 372):

«1. A conjunção e é sempre intercalada entre as centenas, as dezenas e as unidades:

trinta e cinco

trezentos e quarenta e nove

2. Não se emprega a conjunção entre os milhares e as centenas, salvo quando o número terminar numa centena com dois zeros:

1892 = mil oitocentos e noventa e dois

1800 = mil e oitocentos [...].»

Na pronúncia-padrão, também o [i] correspondente à conjunção é articulado e audível:

duzentos e cinquenta: [duzẽtuzisĩ'kwẽtɐ];

vinte e cinco (ou seja, "vint'e cinco"): [vĩti'sĩ'ku];

vinte e seis ("vint'e seis"): [vĩti'sɐjʃ];

vinte e sete ("vint'e sete"): [vĩti'sɛtɨ].

Contudo, é verdade que, na oralidade, a conjunção nem sempre é audível ou articulada, por fenómenos fonéticos característicos do português de Portugal que não estão totalmente esclarecidos. Parecem estes relacionar-se com a estabilidade do segmento [i] quando se encontra em posição átona numa unidade prosódica como é o caso de um numeral composto. Assim:

1. Em casos como os de «duzentos cinquenta», «trezentos e cinquenta», etc., ou seja, apenas antes de cinquenta, terá de se atender ao contexto fonético. A conjunção e ocorre en...

Pergunta:

Como bem sabido, as terminações -us do latim são, de praxe, transcritas no português como -o para uma enorme quantidade de termos e nomes, tanto da antroponímia como da toponímia. Gostaria de saber, considerando esse dado, se poderíamos admitir que vicus é passível de ser escrito como vico para determinar o termo romano para pequeno assentamento/aldeia e a unidade administração vinculada a este tipo de estrutura urbana. Bem sei que pagus [aldeia; pequena unidade administrativa] já chegou ao português desde muito cedo no português como pago (o que reforça o que disse acima), mas ainda me faltam fontes para vicus, mesmo sabendo que é tendência essa alteração.

Resposta:

Está dicionarizada como vico a adaptação do latim vīcus ao português, por exemplo, no Dicionário Houaiss e no dicionário Priberam.

Sobre a conveniência do seu uso em lugar da forma latina, a resposta não se afigura taxativa. Como a adaptação não é uma palavra que tenha grande difusão*, pode-se sempre discutir se o seu uso em textos especializados não será factor de alguma confusão, por a sua forma moderna sugerir que a sua denotação é também aplicável a realidades urbanas da atualidade. Se o nível e especialização de um texto o exigir, será melhor então manter a forma latina; se se optar pela adaptação portuguesa, será aconselhável deixar uma nota prévia sobre essa opção.

* Vico é um termo da área da arqueologia abonado apenas no século XX, como adaptação do latim vīcus,i [«bairro (de uma cidade), povoação, aldeia»], segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:«1. Bairro de um cidade. 2 Agrupamento de casas; lugarejo, povoação, aldeia. 3. Pequena propriedad...

Pergunta:

Eu leio há muito tempo em textos técnicos de Matemática construções do tipo «Se um conjunto é finito, então qualquer subconjunto deste também é». Ou, quando muito, «Se um conjunto for finito, então qualquer subconjunto deste também é.» Essas parecem-me erradas (um erro aparentemente oriundo de um anglicismo). A que me parece correta é a seguinte: «Se um conjunto for finito, então qualquer subconjunto deste também será.»

Assim, tenho esta dúvida: em uma frase condicional do tipo «Se (...), então (...)», o verbo na oração subordinada deve necessariamente estar conjugado no modo conjuntivo? Ademais, pode-se estabelecer alguma relação a priori entre os tempos nos quais os verbos das orações principal e subordinada são conjugados?

Agradeço desde já.

Resposta:

Em português, usa-se o presente do indicativo em enunciados genéricos, como são os da matemática ou de outra disciplina científica.

O presente do indicativo figura como tempo característico das frases genéricas, como observa a Gramática do Português (GP), da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág.. 516)

«O presente do indicativo é também usado em frases genéricas, que representam características típicas ou essenciais de espécies ou outros tipo de entidades [...] como se ilustra em (8):

(8) a. Os tigres são animais ferozes.

b. O embondeiro está em vias de extinção. [...]»

Este valor genérico pode também estar associado a orações condicionais que têm o verbo no indicativo e são interpretadas factualmente, também como se assinala na GP (pág. 2021):

«[...] [A]s construções condicionais podem ser classificadas consoante a proposição expressa pelo antecedente (ou seja, a oração introduzida pelo conector condicional) tenha tido lugar, possa vir a ter lugar ou não tenha tido efetivamente lugar. Assim, o primeiro do seguintes exemplos tem uma interpretação factual ou real; o segundo tem uma interpretação hipotética – o João pode vir a estar doente ou não; e o terceiro tem um interpretação contrafactual ou irreal, ou seja, depreende-se que o Rui não esteve doente:

(147) a. Se o Rui estava doente, a mãe telefonava-lhe todos os dias.

         b. Se o Rui estiver doente, a mãe telefonar-lhe-á todos os dias.

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