Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual o plural da palavra leso-patriotismo.

A frase abaixo está certa ou errada, ou [...] pode ser melhorada?

«Os crimes de lesos-patriotismos não são definidos em lei.»

Grato.

Resposta:

O plural do substantivo em questão é lesos-patriotismos (cf. Dicionário Houaiss, 2001).

Quanto à concordância no interior de uma sequência formada por crime e leso-patriotismo ligados por um preposição, observe-se que o plural do primeiro substantivo não acarreta o plural do segundo. Com efeito, é adequado o uso do singular desta palavra, mesmo que crime ocorra no plural: «crime de leso-patriotismo» → «crimes de leso-patriotismo». No entanto, leso-patriotismo pode ter plural, quando ocorre sozinho, fora da referida construção atributiva: «o leso-patriotismo»/ «os leso-patriotismos».

Recorde-se que o elemento leso- aparece mais frequentemente sob a forma lesa-, em compostos, a concordar com um substantivo do género feminino: lesa-majestade, lesa-pátria, lesa-literatura. Sobre o elemento de composição leso-/lesa-, observa o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, s. v. lesa-):

«antepositivo, em composição por justaposição, sob influxo do francês lèse-majesté (1344); a forma se funda na locução latina crimen laesae majestatis 'crime', laesae, genitivo do particípio passado. de laedĕre  'ferir, prejudicar, ofender' e majestatis, genitivo de majestas 'majestade'; em francês, lèse-majesté, a partir do século XVI em diante, é tomado como padrão para lèse-république, lèse-société, lèse-humanité, lèse-catholicité, lèse-nation, lèse-patrie, lèse-amour, lèse-...

Pergunta:

Gostaria de saber se há algum documento que comente que a manutenção do h em Bahia foi uma reivindicação dos baianos, conforme o escrito [na resposta "Bahia e baía: porquê?].

Resposta:

Para a elaboração desta resposta, não foi possível encontrar fontes que documentem a «reivindicação dos baianos», que, segundo Duda Guennes (falecido em 2011), teria levado a Academia Brasileira de Letras a permitir que forma Bahia fosse usada. No entanto, supõe-se que, segundo a crítica feita por Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), no seu Dicionário de Questões Vernáculas (1994), à legitimação da forma Bahia1, «um decreto de 1931 do estado baiano e a pessoal injunção do chefe da delegação brasileira do sistema de 1945, natural desse estado, é que nos impingiram essa vileza gráfica».

Sem hipótese de acesso ao referido «decreto de 1931 do estado baiano», consegue-se, no entanto, saber quem era «o chefe da delegação brasileira dos sistema de 1945», isto é, a pessoa que estava à frente da representação do Brasil nas negociações conducentes ao Acordo Ortográfico de 1945 (AO 1945): tratar-se-á de Pedro Calmon (1902-1985), que aparece identificado como presidente da delegação brasileira. No entanto, no texto das Bases Analíticas do AO 1945, não se encontra indicação de Bahia constituir a grafia correta do topónimo em apreço, o que poderá levar a pensar que, afinal, Pedro Calmon não terá interferido diretamente na imposiç...

Pergunta:

Receio não conseguir acompanhar, neste caso, a opinião já expressa pelo saudoso e ilustre vernaculista Dr. José Neves Henriques.

Contratual será referente à condição de uma ou mais premissas de um contrato a estabelecer, ou já estabelecido, de cujas cláusulas se ajuíza da sua validez, exequibilidade, pertinência, legalidade, etc., a fim de um dado contrato poder ser aceite, juridicamente e pelas partes contraentes. A verbalização conferida pelo sufixo [-iz(ar)] tem o propósito de indicar a ideia de fazer que uma acção seja praticada. E a ideia tem como base o contrato; e não contratual/contratualidade (>contratualizar), que será a circunstância/condição de um exercício.

Assim, parece-me que – declinando contratualizar – deverá ser contrat(o) + iz(ar) >> contratizar que se me afigura mais escorreito: «acto de estabelecer contrato». Quando muito, tentando "salvar" o que já existe, contratualizar será «estabelecer condições pelas quais as cláusulas de um contrato sejam conformes à legalidade e interesses». Destarte, contratualizar = «atribuir a condição exigível para que algo possua contratualidade». Aceito que contratar nem sempre tenha o sentido de contratizar, visto esta acepção ter uma vertente mais formal.

Terei alguma "ponta" de razão? [...]

O meu muito obrigado pela atenção que possam conceder a esta dúvida e opinião.

Resposta:

Do ponto de estritamente linguístico, observa-se que, sem contestar a boa formação de contratizar (não dicionarizado), não há razão para rejeitar o verbo contratualizar, no sentido de « fazer contrato de; pôr em contrato» [cf. dicionário da Porto Editora, na Infopédia; ver também o Dicionário Houaiss (2001), o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa] o qual, aliás, está fixado por vários dicionários e tem uso significativo. Este verbo deriva de contratual1, o mesmo que «relativo a contrato», entre outras aceções.

Importa realçar  igualmente que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista contratual em duas aceções: na que já foi referida, «fazer contrato de; pôr em contrato», e na de «(aquilo) que está estipulado num contrato», aceção esta abonada na mesma fonte pelo seguinte exemplo: «As obrigações contratuais devem ser respeitadas pelas partes que assinaram o contrato». Sendo assim, contratualizar é definível quer como «passar a contrato», quer como «passar a estar definido em contrato», abarcando assim os significados que o consulente atribui, por um lado, a contratizar (como se disse, possível, mas não atestado nem em dicionário nem noutras fontes) e, por outro, a contratualizar.

Refira-se, por último, que há quem defenda (ver Textos Relacionado...

Pergunta:

Gostaria de saber a origem do termo «grande soda», quando queremos dizer que alguém é chato/melga.

Resposta:

Não parece haver dados que esclareçam cabalmente a origem da expressão «grande soda».

Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa (que é a 10.ª edição do chamado dicionário de Morais), inclui entre as várias aceções de soda (genericamente, em linguagem vulgar, o mesmo que carbonato de sódio) a de «pessoa maçadora, importuna» e «maçada» (ver também Afonso Praça, Novo Dicionário do Calão, Lisboa, Casa das Letras, 2005). Soda também poderá ocorrer por vezes como o mesmo que soda cáustica (hidróxido de carbono), produto que tem efeitos adversos à saúde humana. Neste contexto, a expressão «grande soda» seria, afinal uma metáfora, pela qual se encara alguém que nos é desagradável como algo de extremamente nocivo.

No entanto, José Pedro Machado, no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa – cuja nomenclatura e artigos são devedores da 10.ª edição do Morais – separa a entrada de soda, «carbonato de cálcio», da de soda, «pessoa maçadora», assim deixando supor que se trata de palavras homónimas, e não de duas aceções constituintes da polissemia de um mes...

Pergunta:

Descobri recentemente que o verbo chegar tem sua origem no verbo latino plicare (assim como o arrivare deriva de ad ripa > arripare). Plicare significava, então, «dobrar», que era exatamente a ação realizada quando os navios CHEGAVAM a terra: dobrar as velas, recolhê-las. Na época, havia já ao menos um verbo que devia significar literalmente «chegar», mas, mesmo assim, surgiu esse outro com sentido figurado, usado concomitantemente.

Dito isso, gostaria de saber qual teria sido a figura de linguagem praticada pelos falantes quando usavam plicare em vez de «chegar»? Metáfora ou metonímia? Outra?

Resposta:

Aceitando a etimologia referida pelo consulente, trata-se de uma metonímia, dado o verbo que marca a ação de recolher velas – plicare – substituir o que denota uma ação prévia, cronologicamente muito próxima, a de chegar, que, em latim clássico, podia ser expressa pelo verbo advenire, por exemplo.

No entanto, existe outra hipótese, que faz pensar antes num uso metafórico do verbo latino applicare, «dobrar», sentido extensível a «dobrar (o rumo) em direção», que evoluiu para «aproximar-se de, abordar, dirigir-se a, apoiar, aplicar (sentido físico e moral), juntar, ajuntar» (Dicionário Houaiss; ver também Joan Coromines e Antonio Pascual, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, s. v. llegar). Deste verbo se deduziria mais tarde o que está na origem de chegar, plicare.