Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Lobão é uma freguesia do concelho de Santa Maria da Feira. Como se designam os habitantes e/ou naturais de Lobão – "lobanenses" ou "lobonenses"?

Resposta:

Tendo em conta que as atestações medievais do topónimo (ver Livro Preto. Cartulário da Sé de Coimbra, ed. 1999, doc. 266, p. 398) exibem a terminação -on (Lubon e Lunbon), o gentílico mais adequado será lobonense.

Note-se, porém, que, se a forma lobanense está enraizada e tem longa tradição no uso, há que atender a essa situação e aceitar essa variante – é o caso do gentílico de Lobão da Beira, no concelho de Tondela.

Importa observar que a distribuição as terminações -onense e -anense pode ter razão etimológica. Com efeito, vários nomes próprios hoje terminados em -ão podem ter diferentes terminações medievais (cf. Dicionário de Topónimos e Gentílicos do Portal da Língua Portuguesa): Marvão (Portalegre) < Marvan; Apelação (Loures, Lisboa) < *Apelaçom1. Os nomes que se sabe (ou se supõe) terminarem em -an ou -ã dariam, em princípio, gentílicos terminados em -anense: marvanense (Marvan), lousanense (Lousã); e os derivados de nomes acabados em -on (grafados assim, ou -om) na Idade Média exibiriam a terminação

Pergunta:

Na frase «O outro não lhe emprestava o material», consideramos "o" um determinante artigo definido e "outro" um pronome indefinido?

Obrigada desde já.

Resposta:

Outro, sem estar precedido de artigo, é um determinante indefinido, de acordo com o Dicionário Terminológico (DT), o qual reúne a terminologia gramatical a empregar nos ensinos básico e secundário em Portugal. No entanto, com artigo definido – «o outro» –, não é clara a classificação atribuível no quadro do DT, pelo que teremos de a procurar em obras mais especializadas, como é o caso da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2383), que considera que um caso como «o outro» configura uma elipse, isto é, «[..] a omissão de uma expressão que através do contexto linguístico ou situação enunciativa é possível recuperar» (resposta de Ana Martins, "Elipse", Consultório, 5/06/2007). Nesta perspetiva, voltando ao exemplo da questão, a frase em apreço relaciona-se com outra em discurso – p. ex.: «O rapaz não tinha caderno, mas o outro (rapaz) não lhe emprestava o material.»

Pergunta:

No romance de Aquilino Ribeiro A Via Sinuosa, edição da Livraria Bertrand de 1960, surgiu-me a palavra "àlacremente", com esta grafia; a minha dúvida é se é esta a forma correcta de formar o advérbio de modo. Esta palavra não aparece no dicionário da Priberam.

Obrigado.

Resposta:

Até 1973, os advérbios de modo que derivavam de palavras que apresentavam um acento agudo – , histórico – mudavam esse acento para grave: sòmente, històricamente. O caso de àlacramente, derivado de álacre (= «muito alegre»), enquadra-se nesta regra; não poderá ser um erro, porque, como diz o consulente, ocorre numa edição de 1960, data anterior à referida alteração.

Em 1973, com o Decreto-Lei n.o 32/73, de 6 de fevereiro, esses advérbios de modo perderam o acento: somente, historicamente, alacremente.

Pergunta:

Por influência das telenovelas brasileiras, ouve-se cada vez mais, infelizmente, certas expressões, como «Ela chamou-o de burro». Antes de mais, sabemos que, neste exemplo, o verbo chamar não pede a regência da preposição de, nem está correto o uso do pronome pessoal forma do complemento direto o, devendo usar-se o pronome pessoal forma do complemento indireto lhe. Havendo, porém, necessidade de analisar uma frase deste tipo, em que o verbo chamar aqui seria transitivo direto e indireto, as minhas dúvidas são :

1. O pronome o, identificado como forma do CD, passa aqui a ter a função de CI?

2. Qual a classificação sintática de «de burra»?

Muito obrigada.

Resposta:

É necessário começar por esclarecer que a construção «chamar alguém de...» não é um erro. Apesar de estar hoje identificada com o português do Brasil, sabemos que ela também ocorre na história geral do português, antes da atual diferenciação, e, mais tarde, talvez por reforço do contacto com o português do Brasil, no português de Portugal. Note-se, a propósito, que a construção se encontra em autores portugueses, pelo menos desde os fins do século XIX, o que pode pôr em causa a influência direta das telenovelas brasileiras:

(1) «Iria profanar-lhe os ossos, como um micróbio, visitá-lo até à rede interna dos ossos e a polpa do coração. A isso se chamava de trabalho abominável.» (Lídia Jorge, O Vale da Paixão, 1998, in Corpus do Português de Mark Davies)

(2) «E pouco demorou a que chegassem, convocados pelos brados de um que gritava no que chamavam de minarete [...]. (Mário Cláudio, Peregrinação de Barnabé das Índias, 1998, idem)

(3) «O incidente, que nem de propósito, distraiu da bengala e chamou de águas passadas o assunto da Francelina [...].» (Tomaz de Figueiredo, Gata Borralheira, 1954, idem)

(4) Como o Deão também fosse atacado pela mania oratória, a qual lhe dava para grandes e labirínticas metáforas, foi dizendo: « Antes do tremor de mãos eu noto em V. Ex. o que os peritos

Pergunta:

Que género devemos utilizar para a palavra blockchain?

Resposta:

O uso da palavra inglesa blockchain, que significa «tecnologia que garante a fidedignidade das operações feitas pela Internet», não está estabilizado em português, pelo que, por enquanto, a resposta não será inequívoca.

Tendo em conta que blockchain é traduzível (cf. Abertura de 22/02/2017) por «cadeia de blocos» ou «tecnologia de cadeia de blocos»1, expressões que têm por núcleo vocábulos do género feminino (cadeia e tecnologia), é de esperar que lhe seja atribuído o mesmo género. No entanto, observa-se que, em português, o empréstimo inglês está a ser usado no género masculino, talvez porque há quem o relacione com palavras portuguesas do género masculino como sistema ou processo.

Em suma, recomenda-se o género feminino, mas, por enquanto, não se pode dizer que o masculino constitua erro crasso.

1 Nas páginas da IATE (Interactive Terminology for Europe), entidade que monitoriza o uso e tradução de terminologias no seio da União Europeia, apresentam-se três opções para a tradução do inglês blockchain em português: «tecnologia de blockchain», «tecnologia de cifragem progressiva» e «tecnologia de cadeia de blocos» (informação do consultor Luciano Eduardo Oliveira, a quem se agradece a colaboração).

Cf. 8 palavras  que os ingleses nos roubaram<...