Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na explicação sobre os apelidos portugueses [resposta n.º 33455], li a invocação de uma tradição portuguesa que não vi fundamentada em sitio algum que, argumenta o articulista, manda colocar primeiro o(s) apelido(s) maternos e depois os paterno(s), no final. De facto, lá pelos anos 30 do século passado, houve uma lei que, contrariando, precisamente algumas tradições lusas impunha essa regra. Mas foi lei de curta duração.

Quem se dedicar, mesmo como amador, à genealogia verifica que tradicionalmente a utilização de apelidos em Portugal foi sempre muito arbitrária. Há irmãos que possuem apelidos diferentes: uns ficam com o apelido da mãe, outros com o apelido do pai (não raro as filhas ficavam com o apelido da mãe e os filhos com o do pai, mas não era imperativo e as excepções são muitas, o que até faz supor que são regras nalgumas famílias). Não raro se veem apelidos que se "suspendem" por algumas gerações e que depois vêm a ser "recuperados", bem como se transmitirem por via feminina e depois se transmitem por via masculina.

Também é de referir, pelo menos nalgumas zonas da Beira Baixa, a concordância de género entre o apelido e a pessoa que o utiliza. Assim, por exemplo, Leitão-Leitoa, Silveiro-Silveira, Carrasco-Carrasca, Lourenço-Lourença, etc. Registo, para ilustrar, um caso de uma pessoa, do sexo masculino, natural de Caria, Belmonte, que é Silveira, nascido no final do séc. XVII, a filha casa-se numa localidade onde se faz essa concordância de género, sendo, pois, natural que a filha e a neta, sejam Silveira, mas o trisneto passa a ser Silveiro e aí nasce esse apelido Silveiro. Porém, esta concordância de género terá já caído em desuso no século XX.

Há tradições que não "traditam", perdem-se, vão progressivamente caindo em desuso...

Resposta:

Agradeço o reparo e as observações feitas pelo consulente, a quais me permitiram juntar uma retificação e um comentário em nota à resposta em causa.

Gostaria, no entanto, de juntar algumas observações ao que já foi dito sobre este assunto:

– A obrigatoriedade de aos apelidos se seguirem os apelidos paternos ficou consignada, em Portugal, no Código do Registo Civil de 10 de abril de 1928 (art.º 213) e na versão deste código de 1932 (art.º 242) – cf. Nuno Gonçalo Monteiro, "Os nomes de família em Portugal: uma breve perspectiva histórica", Etnográfica, n.º 12(2), 2008, pp. 46. Esta norma não existia nem no Código Civil de 1867 nem no Código do Registo Civil de 1911; e, nas versões que se seguiram aos códigos de 1928 e 1932, desapareceu igualmente tal disposição.

– Se por tradição e tradicional se entende a existência de uma prática muito antiga de colocação dos apelidos maternos e paternos no nome completo, é verdade que não se pode dizer que tal ordem é tradicional. No entanto, não parece descabido falar no enraizamento desta ordem no registo dos nomes completos, pelo menos a partir dos anos 30 do século passado. A atestar que essa ordem ainda hoje é aceite – que, se quisermos, se "naturalizou" e se tornou tradição – é o que se lê na Gramática do Português, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2013 (pág. 1004; sublinhado meu): «[O nome completo] consiste de duas partes: o nome de batismo (também chamado

Pergunta:

Gostaria de saber se poderei considerar as palavras garagem e manada como sendo derivadas por sufixação?

Muito obrigada.

Resposta:

As palavras em questão não são derivadas. Para falar de derivação a propósito das palavras garagem e manada, seria preciso identificar as palavras que estão na base de derivação. Acontece que tal não é possível, porque se trata de empréstimos – garagem, do francês garage, e manada talvez do castelhano (cf. Dicionário Houaiss) – e, portanto, são unidades lexicais autónomas que não foram formadas em português.

Poderia objetar-se que nas palavras em questão são reconhecíveis sufixos,– -agem em garagem e -ada em manada –, pelo que seria legítimo considerá-las vocábulos derivados. Mesmo assim, os radicais isolados pela análise encontrariam dificuldades para encontrar as formas autónomas correspondentes: *gara não é uma palavra do português, e man- , de manada, não parece ter o mesmo significado que man- em manejar ou em manar. Diz-se, então que palavras como garagem e manada são palavras complexas não derivadas (ou não construídas), isto é, trata-se de palavras que «[...] não apresentam uma relação de derivadas com um lexema do português» (M. Graça Rio-Torto et al., Gramática Derivacional do Português, 2016, pág.  75).

Pergunta:

Sou brasileiro e fascinado por idiomas, e o português não fica longe desse fascínio apenas por ser minha língua materna. Muito pelo contrário! Adoro ouvir e aprender as diferenças entre as variantes da nossa língua: o dialeto europeu, os dialetos africanos, assim como os mil e um sotaques do dialeto brasileiro.

Mas enfim, sendo mais direto, ao ouvir o português de Portugal, tenho um pouco de dificuldade em entender exatamente como é pronunciado o ditongo EI (como em manteiga, beira, eira, maneira, feira, etc.), soando na maioria das vezes como /éi/, porém as vezes também me soando como /ai/ (como o ei é pronunciado no alemão, por exemplo). Eu já tinha essa dúvida há um tempo, mas decidi finalmente perguntar algo sobre após ouvir várias vezes a voz sintética do iPhone (em português de Portugal) pronunciar os dias da semana, onde a palavra feira me soa perfeitamente como “faira”.

Fato inegável é que, de maneira ou outra, é bem diferente do dialeto brasileiro, onde EI se pronuncia /êi/ ou em alguns casos, /ê/.

Mas, assim, o que devo concluir sobre a pronúncia portuguesa?

Resposta:

No português de Portugal padrão, o ditongo grafado ei soa aproximadamente como "âi", ou seja, o a é fechado, mais próximo do -a final de missa ou leva. Não se confunde com os sons associados a ai, pois é perfeitamente audível a diferença entre pares como sei  e sai, ou ceia e saia. Não se trata, portanto, do ditongo [aj], que em alemão, como bem diz o consulente, se representa por ei, como em frei («livre»), que se pronuncia "frai". Assim, feira, maneira e deixei soam, respetivamente, como "fâirâ", "mânâirâ" e "dâixâi" – em transcrição fonética, [fˈɐjɾɐ ], [mɐnˈɐjɾɐ], [dɐjʃˈɐj] (cf. Portal da Língua Portuguesa ou Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, disponível na Infopédia). Sugere-se a audição de palavras em que ei ocorra, por exemplo, nas páginas do sítio eletrónico Forvo.

Pergunta:

Eu era um dos muitos que pronunciavam a palavra Antioquia como "Antióquia": aliás, eu até colocava o acento.

Recentemente percebi que a sílaba tónica era o qui e não o o, mas no entanto uma dúvida persistiu:

Lê-se "AntiuQUÍa" [ɐ̃tiu'kiɐ], ou "AntióQUÍa" [ɐ̃tiɔ'kiɐ]? A segunda sílaba tónica é ti?

Muito obrigado!

Resposta:

O nome próprio Antioquia tem motivado o envio de algumas perguntas (ver Textos Relacionados) ao Ciberdúvidas, mas a agora feita aborda um tópico ainda não tratado aqui.

Como já aqui foi dito, em português, o nome da cidade turca é Antioquia, cuja sílaba tónica é qui, como em maquia. Quanto ao timbre da vogal correspondente ao grafema o, é ele o de um [u] átono, em consequência da regra do vocalismo átono do português europeu. O nome tem, portanto, a seguinte pronúncia: [ɐ̃tiu'kiɐ], no discurso pausado, ou, num registo de débito normal ou rápido, [ɐ̃tju'kiɐ], com formação de ditongo crescente – [ju] – em posição pré-tónica.

No português do Brasil, a referida vogal átona corresponderá geralmente a um o fechado: [ɐ̃tio'kiɐ] ou, com palatalização de [t] antes de [i] ou [j], [ɐ̃tʃio'kiɐ].

Pergunta:

Poder-se-ão considerar corretos estes dois termos (que são usados como referências ao conceito de bem-estar): "eudaimónico" e "eudemónico"?

Por exemplo, na Infopédia, não se encontra o termo "eudaimónico", mas apenas o termo "eudemónico".  Já uma pesquisa no Google pelo termo "eudaimónico" devolve 14100 resultados, ao passo que a pesquisa do termo "eudemónico" devolve menos 2800 resultados (i.e., 11300).

Resposta:

Recomendam-se as formas eudemonia, «sensação de bem-estar ou felicidade»1, e eudemónico, «relativo a eudemonia ou a eudemonismo»2, vocábulos registados quer no Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, quer no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras3. São palavras que encerram o mesmo radical que dois termos há mais tempo registados em dicionário – eudemonismo, « doutrina filosófica segundo a qual a moralidade consiste na procura da felicidade, tida como o bem supremo» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia), e eudemonista, «relativo ao eudemonismo ou seu partidário» (cf. idem).

O radical eudemon- tem a seguinte história, segundo o Dicionário Houaiss (2001):

«antepositivo, do grego eudaimonía,as 'felicidade', derivado de eudaímón 'de destino feliz'; ocorre já em vocábulos originalmente gregos, como eudemonia e eudemonismo (eudaimonismós), já em cultismos cunhados no século XX: eudêmone, eudemônico, eudemonista, eudemonística, eudemonístico, eudemonologia, eudemonológico, eudemonólogo

É de realçar que o ditongo grego ai passa a e em português, de acordo com o que constitui...