Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Mãepai, etimologicamente, são provençalismos, arabismos, latinismos arabizados (ou berberizados?), “infantilismos” (por apócope da 2.ª sílaba de madre e padre e ditongação da vogal da 1.ª sílaba?), ou outra coisa?

Resposta:

São palavras patrimoniais de origem latina vulgar, ou seja, são o resultado do latim vulgar MATRE e PATRE.

As sequências etimológicas mais aceites são como seguem:

(1) MATRE > *made > *mae >mai> mãe

(2) PATRE > *pade > *pae > pai

As formas hipotéticas *pade e *made teriam aparecido por sonorização de T latino intervocálico e queda da consoante vibrante configurando uma articulação característica da linguagem infantil (cf. Dicionário Houaiss, s. v. mãe e pai; ver também José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa). Teria depois ocorrido a síncope de [d] intervocálico e resolução do hiato "ae" no ditongo "ai". No caso de mãe, há a considerar ainda um fenómeno fonético adicional que é a nasalização do ditongo por efeito da consoante nasal bilabial [m].

Importa destacar que pai é forma comum ao português e ao galego, e que mãe é (ou era) também mai em certos dialetos portugueses e galegos (ainda que na Galiza se use preferencialmente nai, que tem origem em mai).

Sobre a origem latina não haverá dúvida – não se trata de provençalismos, nem de arabismos.

Apesar de no domínio occitânico, mais especificamente no gascão (sudoeste da frança), se registarem as formas pai e mai,1 é muito provável que estas formas tenham surgido de forma independente (cf.

Pergunta:

Sou natural de Santa Maria da Feira e sempre utilizei a palavra "quantal", que exprime a ideia de «daqui a pouco», mas unicamente em situações hipotéticas, ou para efeitos de exageração, como no exemplo: «Dá de comer ao cão, que quantal o bicho morre-me de fome.» Gostaria de saber se este é uma palavra típica do Norte de Portugal e qual a forma correta de a escrever, no caso de haver uma: talvez se escreva "cantal".

Resposta:

Não me foi possível encontrar registo lexicográfico ou outro da palavra em questão. No entanto, posso confirmar que a forma "quantal" tem uso regional, ao que parece, numa região a norte de Aveiro, continuando o distrito do Porto. Com efeito, para além do caso descrito pelo consulente, atesta-se o uso de "quantal" como uma aglutinação da expressão «quando tal», no falar de S. João de Sobrado (Valongo, Porto) – ler comentário no blogue Estórias da Minha Terra. Pela grafia que o consulente toma por hipóteses, é possível inferir que a palavra quanto, que se transcreve foneticamente como [ˈkwɐ̃tu] no português padrão e em muitas variedades regionais de Portugal, é também pronunciada com perda da semivogal [w], como acontece maioritariamente nos dialetos galegos e na sua norma-padrão: "canto", donde «canto tal» e "cantal".

Registe-se que se atesta igualmente  o emprego de "sinquetal", outra aglutinação, de «assim que tal» – cf. blogue Metakritico, em janeiro de 2012. 

Pergunta:

É correto dizer «O homem de que te falei» / «O homem do que te falei», ou devo dizer exclusivamente «o homem do qual te falei»?

De igual maneira, posso usar indiferentemente as suas formas no seguinte caso, ou usar o que com preposição é incorreto/arcaico/extremamente formal?

«A pessoa com a qual trabalho.» / «A pessoa com a que trabalho.»

Agradeço muito a resposta.

Resposta:

Em português, as formas corretas são as seguintes (destacadas a negrito):

(1) «O homem de que falei.»

(2) «O homem do qual te falei.»*

Do mesmo modo, em relação à segunda frase em questão:

(3) «A pessoa com que trabalho.»

(4) «A pessoa com a qual trabalho.»*

Nestas construções não se empregam nem do/da que, nem com o/a que, ou seja, não é possível traduzir literalmente o castelhano «del/ de la que» ou «con el/la que».

Note-se que, em castelhano, existem os chamados relativos complexos formados pelo artigo definido e os relativos cual ou que (cf. Nueva Gramática de la Lengua Española – Manual, Real Academia Espanhola, 2010, pág. 837). Os relativos complexos em que participa cualel cual/la cual/lo cual/los cuales/las cuales – são na maioria facilmente transpostos em português como o qual/a qual/os quais/as quais. Contudo, os pronomes relativos complexos constituídos por queel que/la que/lo que/los que/las que –, em que el, la, lo, los e las são artigos definidos, não pronomes, não encontram correspondente exato em português (idem, ibidem). Com efeito, a língua portuguesa não permite formas como «a que» (em que a seria um artigo definido) depois de preposições e rejeita frases como *«a pessoa com a que trabalho» (o * indica agramaticalidade), cuja configuração correta é ...

Pergunta:

Tenho uma questão relacionada com as seguintes frases-exemplo: «Vê-se bem que o barco está à deriva»; «Isso faz-se muito bem»; «Conduz-se muito bem durante o dia». Qual a origem/lógica do uso do -se nos casos mencionados? Trata-se do uso de verbos reflexos (i.e. ver-se, fazer-se, conduzir-se)?

Confesso que a mim não me parece que seja o caso. Mas também não encontro uma explicação alternativa. Será que me podem elucidar sobre esta questão?

Obrigado.

Resposta:

O desenvolvimento do se reflexo como marca da voz passiva ou da indeterminação do sujeito é uma característica comum às línguas românicas, resultado de uma substituição bastante antiga, a de certas formas da conjugação passiva do verbo latino pelo uso do pronome reflexivo se no latim vulgar.

Assim, no latim, havia tempos que tinham formas sintéticas para a voz passiva. Por exemplo, para o português «sou amado», o latim tinha a forma amor; e para «era amado», havia a forma amabar. Em latim, a voz passiva tinha também formas analíticas para certos tempos: amatus sum significa «fui amado». Esta conjugação passiva foi substancialmente alterado no latim tardio e no latim vulgar; com efeito, toda a conjugação passiva passou a ter apenas forma analíticas: amatus sum passou a significar «sou amado», e amatus fui, «fui amado».

Porquê referir a estrutura da voz passiva em latim? Pela razão de a conjugação sintética permitir o uso da 3.ª pessoa em sentido indeterminado: amatur tanto podia significar «é amado» como «ama-se». Acontece que este uso da passiva sintética foi substituído – por um processo que ainda não está completamente esclarecido1 – por uma construção com o pronome reflexo: lauatur ~ se lauat (= «é lavado», «lava-se»). Nas línguas românicas, veio a prevalecer a construção com o pronome reflexo.

 

1 Leiam-se as primeiras páginas do artigo Construções com se. Mudança e var...

Pergunta:

Contractura muscular e cãibra. Estes dois termos são sinónimos? A contractura é mais abrangente do que cãibra? Sempre pensei que a palavra contractura fosse um termo usado pelo senso comum e não um termo médico/científico. Já fiz algumas pesquisas e não fiquei esclarecida.

Obrigada.

Resposta:

O termo cãibra denomina um tipo de contratura1.

Nos dicionários gerais, as definições das palavras cãibra e contratura abrangem o seu uso na linguagem médica, para denotar contrações dos músculos. Cite-se, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001) da Academia das Ciências de Lisboa (mantém-se a ortografia do original):

«cãibra, cambra [...]. Med[icina] Contracção espasmódica e dolorosa de certos músculos [...].»

«contractura [...] . 1 Med[icina] contracção prolongada e involuntária de um músculo ou de um grupo de músculos, acompanhada de rigidez. [...].»2

Note-se, porém, que, a rigor, a palavra cãibra é definível como «uma contratura brusca,  dolorosa e mais ou menos prolongada de um músculo, consequência de um desequilíbrio no seu metabolismo, por uma diminuição do aporte de oxigénio (por isso se faz "aquecimento" antes de exercício físico, para aumentar a quantidade de sangue que chega ao músculo), ou por alterações na concentração de alguns iões»3. Sublinhe-se ainda que «uma cãibra é uma contratura, mas nem todas as contraturas são cãibras (podem ter outra causas)» e que «contratura não é sinónimo de contracção muscular, pois esta é fisiológica, e aquel...