Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Aqui na Holanda, quando neva, como agora no Inverno, eles colocam sal sobre as ciclovias.

Julgava que o verbo salgar se poderia aplicar a este contexto, mas o [Dicionário] Priberam assim define este verbo:

«Temperar com sal (ex.: já temperei e salguei o peixe). ≠ DESSALAR, DESSALGAR Pôr demasiado sal (ex.: acho que salguei o arroz). ≠ DESSALAR, DESSALGAR Pôr sal sobre carnes cruas ou outros alimentos, para os conservar. = ENSALMOURAR, SALMOURAR [Antigo] Espalhar sal em terreno onde se cometeu crime de profanação, para que fique estéril. [Ocultismo] Fazer feitiço, espalhando sal à porta de alguém. Tornar mais intenso ou mais engraçado (ex.: ele gosta de salgar as conversas). [Informal] Fazer subir o preço ou o valor de algo (ex.: a seca vai salgar a conta da água; salgar os preços).»

Afinal, pode ou não pode o estado holandês salgar as ciclovias?

Resposta:

Nada parece impedir o uso do verbo salgar em referência à situação que descreve.

O que geralmente se ouve ou lê em jornais portugueses é a perífrase «pôr sal» ou «colocar sal»:

(1) «[...] os bombeiros e a proteção civil municipal estão no terreno a limpar e colocar sal nas estradas [...]» ("Alunos de Melgaço saíram mais cedo das aulas por causa da neve", jornal regional O Minho, 26/02/2016).

Contudo, também se observa a ocorrência do nome comum salga:

(2) «Também com condicionamento e em processo de salga por quatro limpa-neves estão a A24, no troço que liga Castro Daire a Lamego, e a EN 2 que liga as mesmas localidades, informou o CDOS de Viseu» (no jornal Público, em 22/01/2013).

É, portanto, possível que o verbo correspondente a salga, salgar, se use no interior centro e norte de Portugal, mas não encontramos atestações do uso do verbo. A ausência ou raridade de formas da sua conjugação nos media portugueses de grande circulação, que se concentram no litoral, pode ser bem sinal de como as grandes cidades da costa portuguesa não têm de se preocupar com a neve.

Pergunta:

Como se designam os naturais de Carnicães (concelho de Trancoso, distrito da Guarda)?

Resposta:

Nas fontes de que dispomos não se encontra informação sobre o gentílico em questão. Sem elementos sobre a etimologia do topónimo, torna-se difícil construir um gentílico, pelo que a solução será empregar expressões como «os de Carnicães» ou «os naturais de Carnicães».

Sobre o topónimo, convém referir já teve ou ainda tem a forma Cornicães e é nesta variante que ele é comentado por Almeida Fernandes (Toponímia Portuguesa. Exame a um Dicionário, Arouca, Associação de Defesa da Cultura Arouquense, 1999, s. v. Cornados), autor que o integra numa vasta série toponímica1 que tem em comum as raízes pré-romanas carn- (ou karn-), genericamente interpretável como «pedra», ou corn- (ou korn-), «rochedo». Para Almeida Fernandes, Cornicães poderá ter origem nas formas hipotética Cornicales, que passou a Cornicaes, depois a Cornicais e, finalmente, a Cornicães. Contudo, considerando a forma Carnicães, o autor citado propõe ainda outras hipóteses:

A. O topónimo vem de Carnicales, derivado da associação dos elementos pré-romanos  karn, «pedra», e kan, «altar», num composto que significaria «rochedo-altar» – «isto é, uma rocha sacrifical dos povos pré-romanos».

B. O topónimo remontaria a um «[...] duplo derivado de carn- (karn-), devido, simplesmente, ao carácter rochoso do loca...

Pergunta:

Gostaria de saber se o adjetivo "obesogénico", por exemplo, «ambiente obesogénico», isto é, ambiente que promove o aumento da obesidade (e.g., ambiente sedentário), pode ser utilizado em língua portuguesa. Trata-se de uma dúvida para uso em artigos científicos e numa tese de doutoramento, com base em outros artigos científicos maioritariamente em língua inglesa, mas também em língua portuguesa, que usam o termo (obesogenic).

Muito obrigada!

Resposta:

Aceita-se e é legítimo o adjetivo em questão.

Trata-se de um termo usado em textos especializados, que já encontrou registo dicionarístico – p. ex. no dicionário da Porto Editora (versão eletrónica - ) –, com o significado de «que causa, promove ou propicia a obesidade» (idem).

Do ponto de vista da sua formação, obesogénico pode ser discutível entre estudiosos mais exigentes com a homogeneidade etimológica dos chamados compostos eruditos, formados por radicais gregos ou latinos, porque associa a um elemento de origem latina, obeso, um elemento de outra proveniência, de origem grega, -génico. Nesta perspetiva, patogénico é um termo bem formado, homogéneo, por juntar dois radicais de origem grega, pato- (do grego clássico páthos, «sofrimento, paixão») e -génico, «relativo à origem, ao desenvolvimento» (que tem por base -genia, elemento que encerra o radical gen-", também do grego, de génos, «raça, tronco, família»). No entanto, há compostos híbridos, que combinam elementos gregos e latinos – basta mencionar bígamo (bi latino + -gamo grego) ou monocultura (mono grego + cultura latino) –, o que legitima a formação de obesogénico.

Pergunta:

Quando me refiro ao desenho de crianças de três, quatro e cinco anos de idade, digo «representação icónica».

Está errado?

Obrigada.

Resposta:

O termo em questão tem uso especializado e está correto.

Ocorre em referência às propostas do psicólogo norte-americano Jerome Bruner (1915-2016), segundo as quais são três os modos de representar o mundo: representação enactiva, representação icónica e representação simbólica. Num artigo intitulado "Bruner e a aprendizagem pela descoberta", disponível no sítio eletrónico do Colégio dos Carvalhos, definem-se os três termos do seguinte modo (mantém-se a ortografia do original, anterior à norma em vigor; texto consultado em 24/01/2019)1:

• O modo de representação "enactivo" consiste em representar coisas mediante a reacção imediata da pessoa. É a representação através da manipulação e acção que ocorre marcadamente nos primeiros anos do indivíduo[, quando] a criança define os acontecimentos pelas acções que evocam. Bruner relacionou-a com a fase sensório-motora de Piaget, na qual ocorre uma fusão entre a acção e a experiência externa.

• O modo de representação icónica consiste em representar coisas mediante uma imagem ou esquema espacial independente da acção. O indivíduo, com o tempo, começa a tornar-se mais autónomo face à acção passando a representar a informação através da organização perceptiva da imaginação, da organização visual e da utilização de imagens, ou seja, já é capaz de representar mentalmente os [o]bjectos apreendidos.

• O modo de representação "simbólica" é aquela que ocorre depois, através das palavras e...

Pergunta:

Como se diz em português? «Resposta/atitude ameaçante» ou «ameaçadora»? «Resposta/atitude intimidante» ou «intimidatória»? «Reagiu de forma insultante» ou «insultuosa»? Ambas as formas são aceitas em cada exemplo?

Obrigado de antemão pela ajuda dispensada.

Resposta:

Apesar de todos os adjetivos em questão estarem corretos, empregam-se preferencialmente os adjetivos ameaçador e insultuoso. As combinações mais correntes são, portanto, «resposta/atitude ameaçadora» e «resposta/atitude insultuosa».

Excetuam-se os adjetivos intimidante e intimidatório, que se combinam de modo semelhante aos nomes em questão, formando sintagmas que não são exatamente sinónimos:

(1) «Resposta/atitude intimidatória» – que tem a intenção de intimidar;

(2) Resposta/atitude intimidante – que intimida.