Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «O João magoou-se», o verbo é transitivo ou intransitivo?

Resposta:

O verbo magoar é geralmente transitivo («o choque/a notícia magoou muito a Joana») e a ocorrência de -se pode ser compreendida por esse comportamento, pelo que que se dirá que «magoou-se» também ilustra o uso transitivo do verbo.

No entanto, numa análise mais aprofundada, observa-se que o pronome reflexo se cancela de alguma forma a transitividade do verbo, razão pela qual certos linguistas consideram que é intransitivo um uso como «o João magoou-se», ou seja, trata-se de um uso próximo do valor inerente de se, conforme se refere no Dicionário Terminológico. Na Gramática da Língua Portuguesa (Caminho, 2003, pp. 841-843) encontra-se este assunto mais desenvolvido.

No contexto do ensino básico e secundário, talvez seja de evitar casos na fronteira entre o se efetivamente reflexo, que decorre da transitividade do verbo (ex. lavar-se), e o se de esquecer-se ou portar-se, casos em que o pronome é considerado meramente como parte da flexão verbal.

Pergunta:

Tenho um colega que documenta a maneira como as pessoas falam em uma vila. Lá, há pessoas que costumam usar «pá pá pá». Elas fazem construções como:

«Encontrei fulana no mercado e ela disse que está muito feliz, que seu filho estuda Medicina, que a namorada dele é linda e "pá-pá-pá".»

Qual seria a melhor maneira de classificar este tipo de construção? Há alguma figura de linguagem que se enquadre nesse caso?

Resposta:

Não conheço um termo preciso que classifique a expressão referida. No entanto, tendo em conta o Dicionário Houaiss (2001), pode considerar-se que é uma expressão imitativa ou onomatopaica (alude aos sons de alguém que fala sem parar, muitas vezes sem se distinguir bem o que é dito), equivalente a blablablá (ou blá-blá-blá), cujo sentido é o de "etc." (et cetera).

Pergunta:

Quando falamos sobre a estrutura das palavras, aprendemos que o morfema central delas é o radical, por ser a base que carrega a significação das palavras e à qual se adicionam os demais morfemas (afixos, desinências, vogais temáticas e vogais e consoantes de ligação).

Teoricamente, o radical de uma palavra não muda, porém, quando analisamos as famílias das palavras, não é difícil encontrar diferenças na base significante de palavras de mesma família. Por exemplo, a palavra pedra (radical pedr) é da mesma família da palavra petrificado (radical alterado para petr). Da mesma forma, a palavra sabão (radical sab) é da mesma família da palavra saponáceo (radical alterado para sap).

Está claro que essa diferença está ligada à origem da palavra no latim, grego, etc. Porém, como explicar isso didaticamente? O radical pode ou não pode sofrer alterações? Qual a diferença entre raiz da palavra e radical da palavra?

Obrigada desde já pela ajuda.

Resposta:

A realização fonológica da raiz e do radical pode mudar.

Quando isso acontece, falamos em alomorfia, isto é, da possibilidade de a raiz ou o radical serem representados por formas fonológicas diferentes – é o caso dos casos em questão:

(1) pedra – pedr- / pétreo – petr-

(2) sabão – sabão / sabonete sabon- / saponáceo – sapon-1

Sobre esta relação, observam M.ª Graça Rio-Torto et al, em Gramática Derivacional do Português (Coimbra, Imprensa da Universidade, 2016, p. 46):

«A alomorfia mostra que não é possível encarar o morfema como a ligação entre uma forma e um significado. Na verdade, o mesmo significado pode ser veiculado por formas fonológicas diferentes, que se encontram correlacionadas no léxico mental. A alomorfia não anula, pois, a unidade do morfema. O falante tem capacidade para distinguir, implicitamente, os cotextos em que ocorre cada forma.»2

Sobre a diferença entre raiz e radical, reitere-se o que já se disse antes no Ciberdúvidas (cf. aqui; ver também Textos Relacionados):

«A raiz é o constituinte da palavra que contém significado lexical mas não inclui afixos deri...

Pergunta:

Posso usar a expressão «dor no baixo-ventre» tanto para homem como para mulher?

Resposta:

O vocábulo baixo-ventre pode referir-se à anatomia de ambos os sexos.

Está registado, por exemplo, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, com a indicação que é palavra adequada ao registo familiar:

«baixo-ventre [bajʃuvˈẽtɾɨ] s[substantivo] m[asculino] Fam[iliar] Parte inferior da cavidade abdominal constituída pelo hipogástrio e pela cavidade pelviana. Pl[ural] baixos-ventres.»

A definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) é ainda mais sucinta:

«substantivo masculino Rubrica: anatomia geral. parte inferior do abdome.»*

* Sobre a variação entre abdómen (Portugal), abdômen (Brasil) e abdome (conhecido em Portugal, mas mais usado no Brasil), ler aqui.

Pergunta:

Saudações cordiais de além-mar! Há algum tempo que estou a acompanhar vosso sítio de esclarecimentos sobre o português. Agradeço-vos imensamente pela riqueza linguística que é apresentada aqui.

Sei que a maioria, senão quase todas as apalavras iniciadas por (AL) têm origem árabe, tanto é que meu sobrenome se grafa desta forma:

«Albuquerque». Estudo português europeu, desde que adquiri o livro de professor António Emiliano: «Fonética do Português Europeu - Descrição e Transcrição». Esse fenómeno de abertura da vogal (A) átona nessas palavras ocorre por quê? (algodão, alqueire, alfazema). É tradição da língua pronunciá-las abertas devido a origem árabe? De qualquer modo, em «nacional, estadual, especial», etc. Ocorre o mesmo. Obs.: Coloquei as setinhas («») no lugar das aspas porque estava a aparecer um código estranho. Muito obrigado!

Resposta:

É verdade que muitas palavras começadas por al- foram transmitidas pelo árabe, mas tal não significa, em relação às que têm essa história, que elas sejam inteiramente árabes.

Sobre Albuquerque - que antes de ser apelido era e é um topónimo da Estremadura espanhola, da província de Badajoz, onde tem a forma Alburquerque1 –, afigura-se muito duvidosa a ideia de ser inteiramente árabe. No dicionário onomástico do filólogo brasileiro Antenor Nascentes (1886-1972)2, defende-se que este topónimo tem origem na expressão latina alba quercus, ou seja, «carvalho branco». Esta tese é muito discutível e, dada a prolongada presença árabe na referida região espanhola, há quem considere que o topónimo evidencia essa influência, embora não completamente.

Com efeito, o historiador e arabista espanhol Vallvé Bermejo3 considera-o um híbrido resultante da interação do árabe com uma forma latina, por sua vez adaptação de um topónimo pré-romano. Alburquerque corresponde portanto a al- (artigo árabe), a burj («torre» em árabe; cf. o topónimo português Alvorge) e a uma forma pré-romana e pré-indo-europeia *karka, em que se distinguirá uma raiz remota *kal- ou *kar, que denotaria de modo muito genérico a noção de «pedra». Esta raiz parece igualmente encontrar-se em topónimos peninsulares como Cárquere" (