Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A julgar que há muito se introduziu no português termos como vexilo e vexilário, e inclusive temos vexilologia, qual a forma mais adequada para grafar, à lusófona, o também latino vexillatio?

Resposta:

Pode propor-se vexilação, que é palavra bem formada em português, não obstante não ter ainda registo dicionarístico.

Confirma-se, no entanto, que o latim vexillum, i, «bandeira, estandarte», tem o aportuguesamento vexilo, dicionarizado com o mesmo significado genérico e como «pequeno pedaço de pano, geralmente retangular, suspenso numa barra horrizontal fixa no topo de uma haste, transportado à frente dos exércitos romanos» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Vexilo denota ainda, no domínio da botânica, uma «pétala mais desenvolvida (e tipicamente superior) da corola papilionácea, que é também conhecida por estandarte» (dicionário da Porto Editora, na Infopédia) e, em zoologia, «cada uma das duas lâminas laterais da pena de uma ave, formadas pelas barbas» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

Os dicionários consultados acolhem também as entradas de vexilário, do latim vexillarius, i, «porta-bandeira, entre os antigos Romanos» (Infopédia), além dos termos científicos, mais recentes, vexilologia, «estudo das bandeiras, das suas simbologias, usos, co...

Pergunta:

A pergunta é: alguma vez, nalgum texto em português europeu, o termo terno (Brasil) foi usado com essa semântica («fato completo de três peças»)?

A questão surgiu após debate com alguém que afirma ter já lido num texto talvez antigo, em português europeu, o termo, com o mesmo significado que tem hoje no Brasil.

Resposta:

No sentido de «fato, traje de três peças», terno tem tido escasso ou nulo uso em Portugal. Com efeito, as atestações lexicográficas e literárias sugerem que a palavra ocorre muito pontualmente com esse significado, donde se infere que, entre falantes portugueses, nunca terá sido corrente como sinónimo de fato.

Em dicionários publicados em Portugal entre os meados do século XIX e o primeiro quartel do século XX, o registo do substantivo terno, que genericamente significa «conjunto de três entidades, seres, objetos etc. de igual natureza» (Dicionário Houaiss), não inclui tal aceção1. Nos dicionários portugueses mais recentes, este vocábulo já tem associado o significado em apreço, mas sempre classificado como brasileirismo.2 Quanto a pesquisas em coleções de textos, a consulta do conjunto histórico do Corpus do Português (de Mark Davies) revela que a palavra ocorre tardiamente em textos portugueses, no século XX, e apenas em referência a situações ou figuras relacionadas com o Brasil.

 

1 Foram consultados O Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1849), de Eduardo de Faria; o Thesouro da Lingua Portugueza (5.º vol, 1874), de Frei Domingos Vieira; o Novo Diccionario da Lín...

Pergunta:

Os termos predisposição, susceptibilidade e vulnerabilidade são utilizados com frequência em saúde/medicina. Existem claras diferenças sobre os respetivos significados e seguem-se algumas definições, de acordo com o dicionário on-line da Priberam*:

Predisposição: Disposição natural para contrair certas doenças, certos hábitos, etc.

Susceptibildade: Disposição especial do organismo para acusar influências exercidas sobre ele ou para adquirir doenças.

Vulnerabilidade:Qualidade de vulnerável.

Assim, justificava-se uma utilização diversa, no entanto, os conceitos são, com frequência, utilizados como se de sinónimos se tratassem.

Gostava de ir mais longe e identificar alguns elementos que, corretamente utilizados, acrescentassem a esses termos, melhorando a qualidade da sua utilização. Será indicado referir a predisposição como mais próxima das componentes genéticas, a vulnerabilidade associada a caraterísticas morfológicas e a susceptibilidade a elementos individuais que incluam o perfil psicossocial?

Obrigado pela vossa atenção.

* Predisposiçãosuscetibilidadevulnerabilidade in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

Resposta:

A distinção que o consulente propõe é possível como forma de elaborar uma dada terminologia num determinado quadro de análise ou numa teoria. Convém observar, porém, que a consulta dos dicionários gerais muitas vezes aponta para certo grau de sobreposição semântica entre palavras que pertençam ao mesmo campo lexical. Por outras palavras, do ponto de vista da descrição estritamente linguística, é natural que, por exemplo, as três palavras em questão possam substituir-se mutuamente em certos contextos.

No plano da linguagem mais estritamente médica, o contraste mais nítido estabelece-se entre suscetibilidade e predisposição. Com efeito, nos textos de medicina, em português, o contraste entre os termos predisposição e suscetibilidade (ou susceptibildiade) decorre mais da sua associação (colocação) com outras palavras do que da sua oposição semântica. Por exemplo, diz-se «predisposição herdada» e «predisposição genética», mas empregam-se «genes de suscetibilidade» e «variantes genéticas de susceptibilidad», não havendo permuta entre predisposição e suscetibilidade nestas expressões (ou seja, não ocorrem ou não são frequentes «suscetibilidade herdada/genética», nem «genes/variantes genéticas de predisposição»). No entanto, há outras colocação em que as palavras em referência podem permutar; ex.: «doenças de suceptibilidade/predisposição genética» (designação que se usa por oposição às doenças genéticas ou de causa genética). Por último, quanto ao termo vulnerabilidade, parece este não ter uso especializado, podendo, no entanto, correr como palavra não específica, sinónima de predisposição e suscetibilidade1.

Apesar de tudo, em áreas profissionais e de investigação mais próximas ou mais afa...

Pergunta:

Sei que a expressão habitual é «estou a caminho», mas eu tenho o hábito de dizer «vou a caminho».

É correcto dizer-se «vou a caminho» (de um lugar)?

Exemplo: «Vou a caminho do trabalho»

Desde já obrigada pela atenção.

Resposta:

Está correta a frase «vou a caminho do trabalho».

Do ponto de vista semântico, não se identificam restrições que invalidem a frase e também não parece haver preceito que desaconselhe o emprego de ir com «a caminho». Esta expressão combina-se com diferentes verbos, alguns de movimento: «estar a caminho», «pôr-se a caminho», «meter-se a caminho», «seguir a caminho», «vir a caminho», «ir a caminho».

Exemplos da autores literários:

(1) «Percebo, agora percebo muito bem: vou a caminho do meu escritório, estou no Brasil, em...» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932)

(2) «Quando a família de Santa Eulália ia a caminho de casa com a afilhada [...]» (Camilo Castelo Branco, "Maria Moisés", in Novelas do Minho, 1875-1877)

Pergunta:

Poderiam confirmar-me a evolução fonética de dous>dois? Houve alguma epêntese do i? É apenas um processo de regularização da escrita? É esta a minha dúvida.

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Na passagem de dous (hoje um arcaísmo) a dois, regista-se uma alteração de segmentos, mais especificamente, uma dissimilação.

O ditongo ou – ainda pronunciado em várias regiões do norte de Portugal – tem o problema de as vogais constitutivas apresentarem um timbre e um grau de abertura próximos. Acontece que em vários dialetos portugueses este ditongo ou se monotongou (isto é, contraiu-se numa única vogal, fazendo com que roupa hoje soe "rôpa"), ou se alterou no sentido de uma diferenciação – foi o sucedido com ou > oi.em palavras como coisa, doido e dois.

Procurando manter o ditongo, muitos falantes optaram pela semivogal que, no sistema fonológico português, estava em alternativa a u, o mesmo é dizer i (os ditongos em português têm sempre ou a semivogal u, ou a semivogal i). Esta semivogal permite a conservação do ditongo por contrastar nitidamente com a vogal nuclear do mesmo.

Tudo isto explica que, em Portugal, ainda hoje haja oscilações entre touro e toiro, ouço e oiço, ouro e oiro, etc.

O numeral dous também foi afetado por esta oscilação, mas a norma acabou por escolher e fixar a forma dois. É o mesmo tipo de evolução que levou a substituir cousa por coisa. Note-se que, em galego, ainda se mantêm as formas da língua medieval: dous,