Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ouvi falar de uma história em que um autor português, em dúvida sobre um aspeto gramatical, consultou um gramático para o elucidar. O mesmo gramático respondeu-lhe, dando como referência as obras desse mesmo autor.

Gostaria de saber mais pormenores sobre esta história (nomes, datas ou a questão tratado), caso a reconheçam.

Muito obrigado.

Resposta:

A história, que envolve o escritor português Augusto Abelaira (1926-2003) e a Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 194), de Celso Cunha e Lindley Cintra, é contada pelo linguista e filólogo Ivo Castro, no artigo "Abelaira, Pessoa e os gramáticos", publicado em 2003* e em “O linguista e a fixação da norma”, de 2002 (este último disponível aqui). Ambos os artigos foram mais tarde incluídos em A Estrada de Cintra - Estudos de Linguística Portuguesa (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017, pp. 265-274 e 295-311). O essencial desse episódio também foi citado pelo Ciberdúvidas em duas ocasiões (aqui e aqui).

Não se sabe ao certo qual seria o tópico em dúvida, como o próprio Ivo Castro faz questão de frisar: «Abelaira não recorda qual a questão que protagonizou a anedota [...].» Mesmo assim, partindo das abonações da obra de Augusto Abelaira que Celso Cunha e Lindley Cintra Castro incluíram na Nova Gra...

Pergunta:

Recentemente, tive conhecimento que a palavra rímel não deve ser utilizada porque é uma marca de "máscara de pestanas". Dicionários como a Infopédia e o Priberam continuam a ter esta palavra listada como termo para definir "máscara de pestanas". O mesmo acontece em relação a outras marcas, como gilete e kispo.

Não se pode mesmo utilizar estes termos por serem marcas comerciais?

Resposta:

Para elaboração desta resposta, não foram encontradas normas nacionais ou internacionais que impeçam o uso de rímel, giletequispo (melhor que kispo – termo usado em Portugal para designar um casaco quente., impermeável; ver Textos relacionados)1. No entanto, compreende-se que se levantem dificuldades quando se trata da comercialização de produtos,

O vocábulo rímel constitui o aportuguesamento do francês rimmel, um nome comum com origem na marca comercial Rimmel, denominação de um produto da perfumaria homónima, fundada em 1834 por Eugène Rimmel (1820-1887). Tal como o termo francês, rímel é a palavra que se aplica a um «[c]osmético para pintar as pestanas [ou cílios] e aumentar e realçar o seu volume» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

Como gilete e quispo, rímel resulta da conversão ou extensão de sentido do nome de uma marca comercial, processo que não tem de ser impedido por uma norma nacional ou internacional. Contudo, são termos que, no âmbito comercial, poderão ser substituídos por nomes vernáculos mais transparent...

Pergunta:

No concelho de Castelo Branco, freguesia de Santo André das Tojeiras, há um lugar designado Bornazeiro Cortado. O que é um "bornazeiro"?

Resposta:

Não foi possível achar registo dicionarístico de um nome comum com a forma "bornazeiro".

Podem, no entanto, encontrar-se palavras que apresentam alguma parecença fonética e morfológica, o que, não sendo um critério seguro de pesquisa etimológica, se apresenta muitas vezes como pista de recurso quando escasseia a informação. Assim, mencione-se o vocábulo bornaceira, que, além de significar «tempo quente, abafado», pode querer dizer «pedra branca ou acastanhada», pelo menos em galego (cf. Dicionário Estraviz)1. Pode também pensar-se que o topónimo em questão seja uma variante de borneiro ou borneira, termo que denomina um certo tipo de pedra negra, com que se faziam mós, as quais eram conhecidas pelo mesmo nome (ver Cândido de Figueiredo, Novo Diccionário da Língua Portuguesa, 1913). Nesta perspetiva, talvez "bornazeiro" se relacione com um apelativo da noção de "pedra", hipótese que poderia ver-se reforçada pelo facto de o topónimo inclui ainda a palavra cortado, eventual alusão a um corte na rocha. Outra hipótese seria encarar "bornazeiro" como deturpação de borrazeiro ou borrazeira, nome de uma espécie de salgueiro (cf. Dicionário Houaiss e José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003). Enfim, faltam elementos para explicar a etimologia do topónimo Bornazeiro Cortado.

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Pergunta:

Qual será o significado concreto da terminação -um em vocábulos como vacum, ovelhum, cabrum, bodum?

Consultei o Dicionário Houaiss que apenas nos esclarece que vem do latim -unu- > - ũu > -um.

 

Resposta:

O sufixo -um ocorre sobretudo em adjetivos dos dois géneros derivados de nomes de animais – cabrum, ovelhum, vacum – (cf. dicionário eletrónico da Porto Editora), aos quais se associa a noção de «qualidade animal» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s.v. -um). Também figura em adjetivos como bafum, «bafio, mau cheiro», bodum, «(literalmente) cheiro de bode, a bode», ou fartum, «cheiro a ranço, bafio, mau cheiro», com o significado genérico de «cheiro animal, mau cheiro» (cf. ibidem).

A relação de -um com o sufixo latino -unu- é confirmada, não de maneira perentória, por José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (mantém-se a grafia original):

«-um, sufixo que indica a ideia de qualidade ou raça animal, de origem ainda não bem esclarecida, mas provàvelmente do lat[im] -ūnu: bezerrum (arcaico bezerruno), cabrum, carneirum, cavalum (kavaluno [...])[1], cervum, gatum, ovelhum, vacum, etc.»

A forma latina -ūnu terá origem popular, como variante do sufixo também latino -inu-. Assim, por exemplo, o adjetivo cabrum terá evoluído de *caprunu- (forma hipotética), usada por caprinu- (que, por via erudita, deu caprino em português); com a mesma variante sufixal teriam surgido ovelhum e vacum, talvez porque esta série de adjetivos se associa à mesma palavra – gado  , como em «gado cabrum», «g...

Pergunta:

Parece não haver dúvidas que o vocábulo latino *insapidus, do latim clássico insipidus, originou o nosso vocábulo enxabido, que, com o prefixo de reforço des-, deu origem a desenxabido.

A minha pergunta é se é possível saber-se por que razão estas palavras se escrevem com x em vez de s, como acontece em algumas regiões aqui referidas na resposta "As variantes de desenxabido".

Muito obrigado,

Resposta:

A resposta tem de ter como enquadramento o período inicial de desenvolvimento da língua, ou seja, o período galego-português (do século IX a XIII, aproximadamente).

Não há certezas quanto ao fenómeno fonético que ocasionou a passagem da consoante fricativa apicoalveolar surda [s̪] (o chamado "s beirão") à consoante fricativa palatal [ʃ] (o som representado por ch em chá ou x em baixo). Existem várias hipóteses, entre elas, a de, no sistema galego-português medieval, a proximidade dos pontos de articulação das duas consoantes favorecia a sua permuta. Assim se compreende que, no período medieval, o pronome pessoal átono se se escrevesse frequentemente xe; ou que o latim insertare, «inserir», dê origem a enxertar, «inserir, transplantar» (ver Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, pág. 73; para uma discussão mais aprofundada, ver também Ramón Mariño Paz, Fonética e Fonoloxía Históricas da Lingua Galega, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 2017, pág. 335-340). O mesmo terá, portanto, ocorrido nos primórdios do português, no passo de *insapidus (variante vulgar do latim insipidus, «sem sabor, insípido») a enxabido (donde derivou desenxabido).

Acrescente-se que este fenómeno também se encontra documentado nos dialetos castelhanos e aragoneses (cf. Joan Coromines e José Antonio Pascual,