Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Num texto dado à estampa ("Pela democracia e pelas liberdades na Catalunha", Público, 23/04/2019), um dos subscritores identifica-se como "mediólogo". Sendo quem é – o professor universitário especialista na área dos media J.-M. Nobre-Correia –, depreende-se que a palavra pretende significar isso mesmo: estudioso dos media.

Acontece que não encontro essa definição regidstada em nenhuma fonte autorizada. Pelo contrário, no Brasil, o termo equivale a «especialista em classe média – classe-mediólogo» (cf. revista Veja).

Fico agradecido pelo esclarecimento.

Resposta:

Trata-se de uma inovação lexical, isto é, de um neologismo do português de Portugal, que, embora correto, não pertence à linguagem corrente, antes se adequando a âmbitos de referência especializados. É, pois, compreensível que o vocábulo mediólogo ou medióloga não figure nos dicionários gerais, nem mesmo nos mais recentes.

Uma pesquisa na Internet permite confirmar que a palavra ocorre já há alguns anos, com o significado definido pelo consulente: «especialista em estudos sobre media». É um termo bem formado, composto pela palavra media*, «meios (de comunicação) de massas», e o elemento compositivo -logo/loga, «o que estuda, conhece, é especialista em». Também se pode formar mediologia, interpretável como «estudo dos media».

Observe-se que, no Brasil, ocorre a forma mídia, em lugar de media, pelo que os compostos correspondentes aos usos de Portugal, são midiólogo e midiologia, palavras que se atestam em páginas da Internet, com significado próximo de mediólogo e mediologia.

Quanto à forma "classe-mediólogo", diga-se que é uma palavra possível, constituída pela expressão «classe média» e o referido elemento compositivo -logo/loga, não constituindo, portanto, um composto em que participe o termo media. Além disso, é uma criação jocosa do jornalista Reinaldo Azevedo, que a inclui no artig...

Pergunta:

Devemos escrever «Ele virou as costas e saiu» ou «Ele virou costas e saiu»?

Já encontrei uma indicação sintética de que deveria ser «virar costas», o que também me parece soar melhor (não estamos, na verdade, a virar as costas ao contrário!); mas é tão comum ver «virar as costas» que pergunto se a expressão está correta.

Muito obrigado.

Resposta:

As duas expressões estão corretas, mas podem ter significados ligeiramente diferentes:

(1) virar as costas: «não ver de frente, voltar-se para o outro lado»

(2) virar costas: «retirar-se, fugir»

Em (2), a ausência do artigo definido dá um sentido mais abstrato (ou menos literal) à associação verbo-nome do que em (1).

No entanto, há registos dicionarísticos das duas expressões muito pouco contrastados, como acontece no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho:

(3) «Virar as costas a: o P. ontem virou-me as costas quando me dirigia a ele (virou-se para outro lado para evitar o cumprimento); ele virou as costas ao amigo quando já não precisava dele (afastou-se, abandonou-o).»

(4) «Virar costas: com uma força tão impetuosa que a não puderam sofrer os holandeses, nem se atreveram a sustentar o campo, e logo viraram costas (retiraram-se, abandonaram a luta, fugiram) - Vieira, Cartas, Cl. Sá da Costa, I, 29.»

Nota-se que a segunda abonação de (3) pouco difere da contida em (4), pelo que se conclui que «virar as costas», com artigo definido, também se presta a leituras mais abstratas ou mais metafóricas.

Pergunta:

Numa questão sobre seu/ dele ["Determinantes e pronomes possessivos seu/dele"], parece que entendem o dele também como pronome possessivo. Estou errado? É que, na verdade, já li tal "barbaridade" em, pelo menos, uma gramática da língua portuguesa usada programada para o 3.º ciclo e o ensino secundário. Em livros para o ensino do português (LE) na Galiza, esse erro é comum.

Em relação aos pronomes pessoais, a referida gramática coloca na 2.ª pessoa do singular tu/ você, e no plural vós/vocês. Os livros para o ensino do português (LE) vão mais longe: eu, tu, ele, ela, você, o senhor, a senhora, nós (não mencionam vós), eles, elas, os senhores, as senhoras.

Na verdade, anda por aí uma rapaziada – no caso da gramática, uma raparigada – a dar cabo da norma da língua.

Gostava de saber a vossa opinião no caso do dele/ dela, e plurais, como pronome possessivo.

Resposta:

Na resposta em causa, o autor, o Prof. F. V. Peixoto da Fonseca (1922-2010), não classifica dele como pronome possessivo. Mesmo assim, juntou-se uma nota para esclarecer que dele é um grupo preposicional, e não um determinante possessivo.

Quanto à descrição e classificação apresentadas em certas gramáticas escolares, toma-se boa nota do que diz o consulente, com várias ressalvas. Por exemplo, uma consulta de algumas gramáticas escolares publicadas em Portugal – Nova Gramática Didática de Português (Santillana/Constância, 2011), Domínios – Gramática da Língua Portuguesa (Plátano Editora, 2011) e Gramática Prática de Português (Lisboa Editora, 2011) – revela que estas não classificam dele nem como pronome possessivo nem como determinante possessivo.

Relativamente a manuais e gramáticas de Português como Língua Estrangeira (PLE), não conhecemos as obras a que se refere o consulente, mas sabemos que dele aparece muitas vezes junto dos pronomes possessivos, com a particularidade de todas estas formas serem classificadas como possessivos, sem se mencionarem os termos pronome nem det...

Pergunta:

Está correto "reendoutrinar" (cf. re-indoctrinate)?

«A intenção de se introduzirem e re-endoutrinarem os fiéis com princípios anti-Igreja.»

Resposta:

É preferível redoutrinar, derivado que tem por base o verbo doutrinar, genericamente «instruir numa doutrina», de tradição dicionarística mais sólida e mais contrastante com o inglês indoctrinate do que a forma endoutrinar.

A forma doutrinar é a forma com que o verbo em apreço tem entrada nos dicionários – por exemplo, no dicionário eletrónico da Porto Editora, no dicionário Priberam, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001 e 2009), na versão eletrónica do dicionário Aulete e no dicionário Michaelis. Alguns destes dicionários também registam adoutrinar, e alguns outros (menos ainda) apresentam endoutrinar; mas trata-se de formas que remetem sempre para doutrinar, donde se infere que é esta a variante considerada mais corrente ou aquela a que se deve dar pre...

Pergunta:

Gostaria de saber a vossa opinião acerca das expressões indicadas: «levar ao lume», «lume brando» e certamente muitas mais que agora me escapam. Ainda será correto usá-las, sendo que, hoje em dia, não há "lume", já que os fogões tradicionais foram substituídos por placas elétricas e afins?

Haverá alguma alternativa mais atual?

Muito obrigada.

Resposta:

Não é descabido manter o uso das expressões em questão. Na verdade, a palavra lume e as expressões que a incluam continuam a ser empregadas em alusão à atividades na cozinha, mesmo no contexto da promoção de placas elétricas ou outras. É o que se pode confirmar pelos textos de alguns sítios eletrónicos de fabricantes destes equipamentos; por exemplo:

(1) «Aquece mais depressa do que qualquer outro tipo de placa e o controlo preciso do nível de aquecimento permite alternar entre lume brando e lume forte num instante.» (sítio eletrónico da Electrolux)

Mas, querendo ir ao encontro de critérios de coerência com a realidade, é possível criar fórmulas que ainda não estão fixadas (lexicalizadas) na língua. Uma sugestão, com base no exemplo (1):

(2) «Aquece mais depressa do que qualquer outro tipo de placa e o controlo preciso do nível de aquecimento permite alternar entre baixa temperatura e alta temperatura num instante.»