Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O termo monotético parece fazer parte do vocabulário do português do Brasil, (significando «uma classificação que utiliza apenas um critério diferenciador»1) assim como da língua inglesa (monothetic: "That assumes or is based on a single essential element or idea"2).

Haverá alguma expressão, no português de Portugal, com significado similar?

1 Dicionário Informal, em linha.

2 Oxford English Dictionary, em linha [tradução livre da frase em inglês: «que supõe ou é baseado num único elemento ou ideia essenciais»]

Resposta:

A palavra em questão pode efetivamente ser atestada, com o significado indicado pelo consulente, no português de Portugal, como termo especializado em textos da área das chamadas ciências exatas e experimentais. Exemplo (sublinhado nosso):

(1) «Computacionalmente os   métodos   divisivos são   geralmente   exigentes.   No   caso particular  das  variáveis  serem  binárias, os métodos  divisivos,  conhecidos  por  métodos monotéticos, são computacionalmente mais eficientes.» (António da Costa Fernandes, Análise de conglomerados: comparação de técnicas e uma aplicação a dados de fluxo migratório em Portugal, tese de mestrado, Universidade de Aveiro/Departamento de Matemática, 2017, p. 34)

Noutras áreas de estudo, sem parecer um termo especializado, surge como neologismo usado como sinónimo de monolítico, rígido, inflexível, palavras que se apresentam em alternativa. Exemplo (sublinhado nosso; manteve-se a ortografia do original citado):

(2) «Assim, assumimos que  a  nossa  postura  é  informada  pela  perspectiva  feminista  crítica defendida por Nogueira, Saavedra e Neves (2006) –pautada por um olhar contextualizado, que se  afasta  de  generalizações  abusivas,  homogeneizadoras  e  monotéticas  que  constituem  a perpetuação  de  assimetrias  sociais –informada pela  teoria  crítica,  construccionismo  social  e análise de discurso.» (Sara Isabel Almeida ...

Pergunta:

Recentemente vejo vários filmes serem promovidos como tendo sido «nomeados "a óscares"». Não deveria ser «nomeados para óscares»?

Qual destas frases está correta?

«Os filmes Roma e A Favorita foram nomeados para dez óscares.»

«Os filmes Roma e A Favorita foram nomeados a dez óscares.»

Muito obrigado.

Resposta:

Deve dizer-se «nomeado para (cargo/prémio)», e não «nomeado a (cargo/prémio)».

Em referência a uma pessoa selecionada para ocupar um cargo ou função, receber um prémio ou candidatar-se a um concurso, emprega-se o verbo nomear (e o seu particípio passado, nomeado) de acordo com o esquema «nomear alguém para», salientando a finalidade da nomeação, como se pode confirmar, por exemplo, pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), na entrada nomeado: «Foram três os filmes nomeados para o grande prémio» (ver também o Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Texto Editores 2007 e Dicionário Sintático de Verbos Portugueses, Livraria Almedina, 1994).

É igualmente possível falar dos «nomeados dos óscares de Hollywood» (dicionário da ACL), utilizando a preposição de, para subentender a relação entre o referido prémio e a lista de candidatos.

Menos aceitável se torna a expressão «nomeado a dez óscares», uma tentativa de encurtar a sequência mais extensa «nomeado para candidato a óscares». Conclui-se que «nomeado a» resulta da confusão com o uso de candidato, substantivo cuja regência é construída com a preposição a («candidato a»).

Pergunta:

Tenho constatado que há diferenças muito grandes entre o uso de persianas e estores em diferentes partes do país [Portugal].

Encontrei uma definição de persianas como constituídas por lâminas, normalmente externas para proteger do frio e/ou do sol, exatamente como costumo referir.

No entanto, nas várias pesquisas feitas, não encontro grande coerência entre os significados destas palavras nos diferentes livros/dicionarios/websites que consultei e tenho encontrado muita gente com uma identificação das mesmas exatamente ao contrário.

Será que me poderiam ajudar?

Resposta:

O caso relatado pelo consulente é próprio da variação regional da língua e pode ser exemplificativo de como nem sempre é possível atribuir a palavras semântica e referencialmente próximas definições válidas para o conjunto de comunidades que falam a mesma língua. É o que parece acontecer com persiana e estore nos territórios de Portugal, situação provavelmente generalizável a outros países de língua portuguesa.

A definição que o consulente dá de persiana é a que ressalta talvez mais familiar em Portugal: um painel protetor colocado no exterior de uma janela e constituído por lâminas imbricadas, de modo a facilitar a sua recolha, geralmente, por um mecanismo existente no interior da casa. Note-se, porém, que esta descrição é apenas uma das possibilidades de identificar uma persiana, atendendo à definição que dá o dicionário da Porto Editora (versão em linha, na Infopédia):

«1. peça composta por lâminas paralelas, fixas ou móveis, colocada no interior ou no exterior das janelas, que se destina a resguardar da luz do Sol e a impossibilitar a visão do exterior 2. peça constituída por lâminas de metal ou plástico que se enrolam e desenrolam por meio de um mecanismo adequado, e que se desce para tapar a luz»

Mesmo assim, querendo identificar protitipicamente aquilo a que, em Portugal, se tem chamado persiana, dir-se-ia que a imagem ao lado esquerdo seria um bom exemplo.

O termo estore é definido pelo referido dicionário de um modo mais vago, que permite identificá-lo à denotação de persiana:

«...

Pergunta:

Devemos dizer "avião desviado" ou "avião divergido" por motivos atmosféricos?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «avião divergido» é uma alternativa a «avião desviado» pouco frequente e muito discutível na perspetiva da norma-padrão.

A forma divergido indicia uma tradução (demasiado) literal do inglês diverted, verbo inglês que ocorre no sentido de «desviar o rumo». Por exemplo, diz-se e escreve-se «the flight was diverted to Chicago», traduzível geralmente por «o voo foi desviado para Chicago», e não por «o voo foi divergido....» (cf. Linguee, s.v. diverted).

Compreende-se que a forma divergido até tenha utilidade, já que a expressão «avião desviado» pode ter dois significados: «que mudou de rota por questões de segurança» e «que mudou de rota por causa de assalto». Note-se, porém, que, apesar desta ambiguidade, continua a preferir-se a expressão «avião desviado», mesmo quando a causa em referência são as condições atmosféricas, como uma rápida consulta pela Internet pode confirmar. No momento em que se redigiu esta resposta, uma pesquisa Google facultava 3370 resultados para a expressão "avião desviado", enquanto "avião divergido" se ficava pelos 29 resultados.

 

Cf. Qual é a origem da palavra «avião»?

Pergunta:

«Com que, então, o maroto do tio Jonas enviava aquele montão de inutilidades sem ao menos apreciá-las completamente!?»

Gostaria de saber se está correta a frase acima, em especial quanto à pontuação e à expressão «com que então».

Obrigado.

Resposta:

 A pontuação não está totalmente correta, porque a locução «com que então» não deve apresentar vírgula a separar «com que» de «então».

«Com que então» constitui um marcador discursivo, que se escreve «com que então», sem vírgula interna mas com outra a delimitá-la do resto da frase:

«com que então (pop.): expressão que traduz uma suposição, dúvida, hipótese, e que significa: ao que parece, segundo consta.» (António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Edições João Sá da Costa, 2006)

«com que então: c[om] que então, vais fazer uma viagem ao Brasil!... Quem me dera também poder ir (exprime surpresa ou admiração); c[om] que então, andas por aí a dizer coisas a meu respeito? Ora vamos pôr isso tudo em pratos limpos (exprime censura, atitude condenatória).» Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Livraria Chardron de Lello e Irmãos Editores, 1985)

 

N. E. (21/02/2019) – Assinale-se que a locução «com que então» também ocorre sem vírgulas a destacá-la do contexto frásico, sem que este uso constitua um erro: «Com que então a tua mãe continuou...