Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual será o significado concreto da terminação -um em vocábulos como vacum, ovelhum, cabrum, bodum?

Consultei o Dicionário Houaiss que apenas nos esclarece que vem do latim -unu- > - ũu > -um.

 

Resposta:

O sufixo -um ocorre sobretudo em adjetivos dos dois géneros derivados de nomes de animais – cabrum, ovelhum, vacum – (cf. dicionário eletrónico da Porto Editora), aos quais se associa a noção de «qualidade animal» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s.v. -um). Também figura em adjetivos como bafum, «bafio, mau cheiro», bodum, «(literalmente) cheiro de bode, a bode», ou fartum, «cheiro a ranço, bafio, mau cheiro», com o significado genérico de «cheiro animal, mau cheiro» (cf. ibidem).

A relação de -um com o sufixo latino -unu- é confirmada, não de maneira perentória, por José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (mantém-se a grafia original):

«-um, sufixo que indica a ideia de qualidade ou raça animal, de origem ainda não bem esclarecida, mas provàvelmente do lat[im] -ūnu: bezerrum (arcaico bezerruno), cabrum, carneirum, cavalum (kavaluno [...])[1], cervum, gatum, ovelhum, vacum, etc.»

A forma latina -ūnu terá origem popular, como variante do sufixo também latino -inu-. Assim, por exemplo, o adjetivo cabrum terá evoluído de *caprunu- (forma hipotética), usada por caprinu- (que, por via erudita, deu caprino em português); com a mesma variante sufixal teriam surgido ovelhum e vacum, talvez porque esta série de adjetivos se associa à mesma palavra – gado  , como em «gado cabrum», «g...

Pergunta:

Parece não haver dúvidas que o vocábulo latino *insapidus, do latim clássico insipidus, originou o nosso vocábulo enxabido, que, com o prefixo de reforço des-, deu origem a desenxabido.

A minha pergunta é se é possível saber-se por que razão estas palavras se escrevem com x em vez de s, como acontece em algumas regiões aqui referidas na resposta "As variantes de desenxabido".

Muito obrigado,

Resposta:

A resposta tem de ter como enquadramento o período inicial de desenvolvimento da língua, ou seja, o período galego-português (do século IX a XIII, aproximadamente).

Não há certezas quanto ao fenómeno fonético que ocasionou a passagem da consoante fricativa apicoalveolar surda [s̪] (o chamado "s beirão") à consoante fricativa palatal [ʃ] (o som representado por ch em chá ou x em baixo). Existem várias hipóteses, entre elas, a de, no sistema galego-português medieval, a proximidade dos pontos de articulação das duas consoantes favorecia a sua permuta. Assim se compreende que, no período medieval, o pronome pessoal átono se se escrevesse frequentemente xe; ou que o latim insertare, «inserir», dê origem a enxertar, «inserir, transplantar» (ver Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, pág. 73; para uma discussão mais aprofundada, ver também Ramón Mariño Paz, Fonética e Fonoloxía Históricas da Lingua Galega, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 2017, pág. 335-340). O mesmo terá, portanto, ocorrido nos primórdios do português, no passo de *insapidus (variante vulgar do latim insipidus, «sem sabor, insípido») a enxabido (donde derivou desenxabido).

Acrescente-se que este fenómeno também se encontra documentado nos dialetos castelhanos e aragoneses (cf. Joan Coromines e José Antonio Pascual,

Pergunta:

Num texto dado à estampa ("Pela democracia e pelas liberdades na Catalunha", Público, 23/04/2019), um dos subscritores identifica-se como "mediólogo". Sendo quem é – o professor universitário especialista na área dos media J.-M. Nobre-Correia –, depreende-se que a palavra pretende significar isso mesmo: estudioso dos media.

Acontece que não encontro essa definição regidstada em nenhuma fonte autorizada. Pelo contrário, no Brasil, o termo equivale a «especialista em classe média – classe-mediólogo» (cf. revista Veja).

Fico agradecido pelo esclarecimento.

Resposta:

Trata-se de uma inovação lexical, isto é, de um neologismo do português de Portugal, que, embora correto, não pertence à linguagem corrente, antes se adequando a âmbitos de referência especializados. É, pois, compreensível que o vocábulo mediólogo ou medióloga não figure nos dicionários gerais, nem mesmo nos mais recentes.

Uma pesquisa na Internet permite confirmar que a palavra ocorre já há alguns anos, com o significado definido pelo consulente: «especialista em estudos sobre media». É um termo bem formado, composto pela palavra media*, «meios (de comunicação) de massas», e o elemento compositivo -logo/loga, «o que estuda, conhece, é especialista em». Também se pode formar mediologia, interpretável como «estudo dos media».

Observe-se que, no Brasil, ocorre a forma mídia, em lugar de media, pelo que os compostos correspondentes aos usos de Portugal, são midiólogo e midiologia, palavras que se atestam em páginas da Internet, com significado próximo de mediólogo e mediologia.

Quanto à forma "classe-mediólogo", diga-se que é uma palavra possível, constituída pela expressão «classe média» e o referido elemento compositivo -logo/loga, não constituindo, portanto, um composto em que participe o termo media. Além disso, é uma criação jocosa do jornalista Reinaldo Azevedo, que a inclui no artig...

Pergunta:

Devemos escrever «Ele virou as costas e saiu» ou «Ele virou costas e saiu»?

Já encontrei uma indicação sintética de que deveria ser «virar costas», o que também me parece soar melhor (não estamos, na verdade, a virar as costas ao contrário!); mas é tão comum ver «virar as costas» que pergunto se a expressão está correta.

Muito obrigado.

Resposta:

As duas expressões estão corretas, mas podem ter significados ligeiramente diferentes:

(1) virar as costas: «não ver de frente, voltar-se para o outro lado»

(2) virar costas: «retirar-se, fugir»

Em (2), a ausência do artigo definido dá um sentido mais abstrato (ou menos literal) à associação verbo-nome do que em (1).

No entanto, há registos dicionarísticos das duas expressões muito pouco contrastados, como acontece no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho:

(3) «Virar as costas a: o P. ontem virou-me as costas quando me dirigia a ele (virou-se para outro lado para evitar o cumprimento); ele virou as costas ao amigo quando já não precisava dele (afastou-se, abandonou-o).»

(4) «Virar costas: com uma força tão impetuosa que a não puderam sofrer os holandeses, nem se atreveram a sustentar o campo, e logo viraram costas (retiraram-se, abandonaram a luta, fugiram) - Vieira, Cartas, Cl. Sá da Costa, I, 29.»

Nota-se que a segunda abonação de (3) pouco difere da contida em (4), pelo que se conclui que «virar as costas», com artigo definido, também se presta a leituras mais abstratas ou mais metafóricas.

Pergunta:

Numa questão sobre seu/ dele ["Determinantes e pronomes possessivos seu/dele"], parece que entendem o dele também como pronome possessivo. Estou errado? É que, na verdade, já li tal "barbaridade" em, pelo menos, uma gramática da língua portuguesa usada programada para o 3.º ciclo e o ensino secundário. Em livros para o ensino do português (LE) na Galiza, esse erro é comum.

Em relação aos pronomes pessoais, a referida gramática coloca na 2.ª pessoa do singular tu/ você, e no plural vós/vocês. Os livros para o ensino do português (LE) vão mais longe: eu, tu, ele, ela, você, o senhor, a senhora, nós (não mencionam vós), eles, elas, os senhores, as senhoras.

Na verdade, anda por aí uma rapaziada – no caso da gramática, uma raparigada – a dar cabo da norma da língua.

Gostava de saber a vossa opinião no caso do dele/ dela, e plurais, como pronome possessivo.

Resposta:

Na resposta em causa, o autor, o Prof. F. V. Peixoto da Fonseca (1922-2010), não classifica dele como pronome possessivo. Mesmo assim, juntou-se uma nota para esclarecer que dele é um grupo preposicional, e não um determinante possessivo.

Quanto à descrição e classificação apresentadas em certas gramáticas escolares, toma-se boa nota do que diz o consulente, com várias ressalvas. Por exemplo, uma consulta de algumas gramáticas escolares publicadas em Portugal – Nova Gramática Didática de Português (Santillana/Constância, 2011), Domínios – Gramática da Língua Portuguesa (Plátano Editora, 2011) e Gramática Prática de Português (Lisboa Editora, 2011) – revela que estas não classificam dele nem como pronome possessivo nem como determinante possessivo.

Relativamente a manuais e gramáticas de Português como Língua Estrangeira (PLE), não conhecemos as obras a que se refere o consulente, mas sabemos que dele aparece muitas vezes junto dos pronomes possessivos, com a particularidade de todas estas formas serem classificadas como possessivos, sem se mencionarem os termos pronome nem det...