Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho visto muito a utilização de «a par com» (Exemplo: «Macau é, a par com Hong Kong, uma das Regiões Administrativas Especiais da China»). Julgo que o correcto seria «a par de», mas tenho visto isto tantas vezes que já tenho dúvidas.

Serão válidas as duas formas?

Resposta:

As formas corretas são:

(a) «a par de» («ao lado de, junto; em comparação com»)

(b) «de par com» («juntamente com; ao lado de»)

As duas locuções são, portanto, sinónimas, porque ambas podem ser empregadas na aceção de «juntamente com» (cf. António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas - Português, Edições João Sá da Costa, 2000). Note, porém, que a literatura pode dar abonações da forma «a par com»:

(1) «Quando o via assim mortal, ia sentar-se a par com ele, abria um livro da vida de Cristo, que trazia consigo, e lia-lhe. » (Arnaldo Gama, A Última Dona de S. Nicolau, 1864)

Parece tratar-se de ocorrências muito marginais, pelo que se deve dar preferência à locução «de par com».

Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se as expressões «trabalho duro» e «trabalho árduo» são compostos morfossintáticos.

Muito obrigado.

Resposta:

Não são compostos, mas pode considerar-se que estão entre os compostos morfossintáticos e as associações livres de nome e adjetivo (formando sintagmas). A este tipo de associações recorrentes, já quase fixas, os estudos linguísticos chamam colocações, solidariedades lexicais ou lexias.

É, portanto, frequente o uso de «trabalho duro» e «trabalho árduo», expressões praticamente sinónimas (sendo a segunda uma alternativa intensificadora da primeira), em que a adjetivação tem caráter convencional; e, para estas colocações, não é difícil encontrar abonações, algumas até bem antigas (Corpus do Português, de Mark Davies):

trabalho duro

(1) «Despeço-me com saudade – nem me peja dizê-lo diante de vós: é virar as costas ao Éden de regalados e preguiçosos folgares, para entrar nos campos do trabalho duro, onde a terra se não lavra senão com o suor do rosto [...].» (Almeida Garrett, "Memória ao Conservatório Real", Frei Luís de Sousa, 1844)

(2) «No melhor dela, quando tudo parecia fantasia e sonho, os corpos lembraram-se do dia seguinte e do trabalho duro que os esperava.» (Miguel Torga, Vindima, 1945)

trabalho árduo

(3) «O major tentou imaginar Teresa de cabelos esve...

Pergunta:

A palavra idade pode usar-se mesmo quando não se refere a pessoas?

Por exemplo: «Qual a idade da sua empresa?»

A pergunta em cima está correta?

Obrigado.

Resposta:

A frase em questão está correta.

A palavra idade pode combinar-se sem incorreção com nomes que denominam entidades que não são pessoas, nem animais, nem outros seres vivos: «idade de uma/da empresa», «idade de uma/da ponte», «idade de um/do equipamento». Trata-se de casos em que este nome é sinónimo de existência ou «tempo de existência», num processo de extensão semântica, isto é, através da formação de um novo significado da palavra decorrente da associação desta a vocábulos de classes e subclasses semânticas com que não costuma associar-se.

Estas associações encontram-se, por exemplo, em textos especializados cujas necessidades terminológicas impõem frequentemente usos vocabulares menos aceitáveis na linguagem corrente:

(1) «Recentemente, a idade da empresa destaca-se como uma das principais variáveis que influenciam a determinação dos salários. Alguns autores identificam um efeito positivo entre a idade da empresa e os salários [...]. Teoricamente, as empresas com maior idade são aquelas que apresentam maiores níveis salariais aos seus trabalhadores.» (Ana Brum Cordeiro, O Efeito da Idade da Empresa nos Salários, Universidade dos Açores, 2015, p. 4)

Mas encontram-se outros exemplos deste uso de idade em textos tanto literários como não literários (atestações extraídas do Corpus do Português, Mark Davies):

Pergunta:

Devemos escrever «sair porta fora», «sair pela porta fora», ou ambas as formulações estão corretas?

Muito obrigado, desde já.

Resposta:

As duas formas estão corretas.

Sobre a construção por + expressão nominal + fora1, não há dúvidas quanto à sua correção e observa-se que tem frequência significativa. No entanto, também ocorre suprimir a preposição, ficando a construção reduzida a expressão nominal + fora1, que aparece mais raramente, mas não está incorreta – pelo contrário, pois dá realce à expressão do movimento de forma bastante concisa. A mesma omissão é possível com outros advérbios com verbos de movimento e nomes que denotam as noções de caminho, passagem ou recinto: «foi pela casa dentro»2 vs. «foi casa dentro»; «foi pela ladeira acima» vs. «foi ladeira acima»; «veio pela rua abaixo» vs. «veio rua abaixo».

Há exemplos literários deste uso de fora, sobretudo da locução «estrada fora», isto é, «pela estrada fora», tanto entre escritores portugueses, como em autores brasileiros (abonações recolhidas no Corpus do Português, de Mark Davies; sublinhados nossos):

(1) «Por isso é que quando ela arrancava estrada fora, PUF.. PUF.. os rapazitos, aqueles diabos, corriam a acompanhá-la, rindo e acenando com os braços [...]» (José Cardoso Pires, A República dos Corvos, 1999)

(2) «Noite fora, duas, três vezes, não pôde impedir-se de verificar se lá continuava: de cada vez o mesmo sorriso e o mesmo gesto do dedo a rodopiar, convidando-a...

Pergunta:

Não encontro em dicionário, de forma física ou digital, significado para o verbo "freinar". No contexto parece querer significar «estacionar», mas continuo com a dúvida.

Obrigado.

Resposta:

Não foi possível encontrar registo da forma em questão em fontes dicionarísticas, mas deve tratar-se de variante por deturpação de frenar, sinónimo de enfrear e travar, mas não de estacionar (a não ser que se conceba estacionar como parar).

Apesar de, para elaboração desta resposta, não se ter achado dicionário impresso ou digital que consigne o verbo em causa, uma busca Google permite detetar formas como "freinar" ou "freinou", interpretáveis como adaptação (aportuguesamento) do galicismo freiner, «travar» (sublinhado nosso):

(1) Vês aquela gentil chaffeur femenino que freinou agora mesmo o carro num gesto teatral e que pulou para o passeio?» ("As portas falsas do atelier de Madame Z", Repórter X. Semanário das Grandes Reportagens, n.º 32, 14/05/1932, pág. 12)

(2) «Freinou o carro no local indicado – mas C... F... não saiu.» ("Existe entre nós um individuo...", Repórter X. Semanário das Grandes Reportagens, n.º 102, ...