Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Esta questão já foi aqui apresentada por outro consulente e a vossa resposta foi «Penso que deve dar preferência ao uso da expressão "tudo o resto"».

Eu mantenho as minhas dúvidas, até porque quem respondeu não o fez com convicção ao usar o «penso que». Pois eu penso que deve ser «todo o resto», entendido como a totalidade da parte restante. Por exemplo, hoje, na capa de A Bola, lê-se que Fernando Santos fala «sobre a Liga das Nações e sobre tudo o resto».

No meu ver, estes dois conceitos são contraditórios: se fala sobre tudo, não sobra resto para acrescentar ao que fala. Ela fala, com certeza sobre a Liga das Nações e sobre a totalidade da parte restante (de matérias de futebol, certamente) que vão além do assunto principal.

Agradeço a vossa atenção.

Resposta:

A dúvida apresentada diz respeito a uma expressão que o uso fixou e que os dicionários registam.

Terá  origem no galicismo tout le reste, pelo menos, como tradução literal convergente com a locução «tudo o mais»: da sinonímia de «o mais» com «o resto» terá resultado «tudo o resto», expressão que é ou foi discutível1, mas que ocorre há bastante tempo no nosso idioma, como abonam exemplos de uso até por escritores portugueses:

(1) «O amor-próprio já eu o tinha perdido há muito tempo. E o orgulho, a vergonha, tudo o resto! » (David Mourão-Ferreira, Tal e Qual o que Era, 1963)

(2) «Venho a parte principal de minha família e bagagens em Londres tudo o resto disperso e sem ordem.» (Almeida Garrett, Cartas, 1835)

São de notar, porém, que, também, entre escritores, ocorre a expressão «todo o resto» como variante de «tudo o resto»:

(3) «O meu Deus enche o mundo. Só o meu Deus existe, e todo o resto no universo é tão pequeno e tão fútil, que reclamo mais dor, mais sofrimento, mais fome.» (Raul Brandão, Húmu...

Pergunta:

O termo inglês gig, introduzido no meio musical, em português é considerado um nome do género masculino ou feminino?

Se traduzirmos como «concerto/ espetáculo musical» dizemos «o gig»?

E se traduzirmos como «atuação/ apresentação musical», dizemos «a gig»?

Será indiferente usarmos o masculino ou feminino?

Resposta:

A palavra gig – pronuncia-se aproximadamente como "guigue" – é um nome que constitui um empréstimo proveniente do inglês (anglicismo), e significa «atuação ao vivo de um músico ou de um grupo musical que tocam música pop ou jazz

Trata-se de um termo que ainda não tem uso estável no português, não estando sequer dicionarizado como estrangeirismo, o que significa que o género a atribuir-lhe depende da tradução que os falantes subentenderem. Sendo assim, a palavra gig pode ser usada nos dois géneros – por enquanto – e mantém a ortografia original, pelo que se recomenda que figure em itálico ou entre aspas em textos escritos em português.

Acrescente-se que, em inglês, gig, «concerto», terá origem desconhecida (ver Online Etymology Dictionary). Existe também nessa língua um vocábulo homónimo que merece referência, gig, que significa «carruagem de duas rodas puxada a cavalo» e «barco pequeno», cuja origem se relacionará com o antigo norueguês geiga, «virar de lado» (idem). Daqui provém o português guiga, «barco a remos, estreito e comprido, usado em regatas» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

Observe-se, por último, que gig é facilmente substituível por concerto ou atuação.

Pergunta:

Estive a rever o Acordo Ortográfico devido a uma dúvida de tradução e fiquei com a sensação de que «príncipe-consorte» deveria estar unido com um hífen, mas a verdade é que na imprensa portuguesa encontro a expressão sobretudo sem ele.

Podem esclarecer-me, por favor?

Muito obrigado!

Resposta:

As associações de nome e adjetivo não são necessariamente escritas com hífen.  A hifenização destes casos não é imposta por uma regra ortográfica, mas, sim, pela tradição de registo dicionarístico1. Por outras palavras, uma sequência de nome+adjetivo terá hífen se for considerado um composto; se não, então não se hifeniza. Existe, portanto, uma tarefa classificatória cujos critérios formais e semânticos são anteriores às regras ortográficas.

No caso de «príncipe consorte», não há lugar a hífen, tal como não se usa este sinal em «príncipe regente», «príncipe real» ou «príncipe imperial». Deste uso, é possível inferir que se tem considerado que estas sequências de nome+adjetivo são associações livres (ou quase) que ainda não têm significado verdadeiramente autónomo – por muito subjetivo que seja este juízo. Acrescente-se que consorte é um adjetivo dos dois géneros, equivalente a sócio, parceiro, cônjuge

1 A Base XV do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, assim como a norma de 1945, refere compostos de nome+adjetivo, mas não deixa explícitos os critérios que permitem distinguir estes compostos das associações livres de nome+adjetivo. 

FontesDicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2002), 

Pergunta:

Como se deve dizer: «medicamento anti-hipertensor» ou «medicamento anti-hipertensivo»?

Muito obrigado.

Resposta:

Já tivemos ocasião de nos referir indiretamente às formas hipertensor e hipertensivo na resposta "Anti-hipertensor, anti-hipertensivo ou hipotensor?". Contudo, procurando completar o que aí se expôs, diga-se que as duas formas derivadas adjetivais anti-hipertensor e anti-hipertensivo, ambas com o significado de «que combatem a hipertensão», se escrevem com hífen1 estão bem formadas e têm uso legítimo, de acordo com o registo de ambas no dicionário de termos médicos da Porto Editora na Infopédia e no glossário do sítio eletrónico Médicos de Portugal. Igualmente corretas são as bases de derivação destes termos, hipertensor e hipertensivo.

Note-se, porém, que uma busca no Google revela que na literatura académica a forma hipertensivo é mais comum do que hipertensor. Não quer isto dizer que esta seja, do ponto de vista linguístico, menos correta que aquela2; e, na verdade, voltando aos derivados anti-hipertensor e anti-hipertensivo, ocorrem estes sem claro contraste semântico em diferentes documentos disponibilizados por uma mesma entidade da área da saúde (exemplos extraídos de documentos em linha da Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produto de Saúde, I. P.):

(1) «ECAMAIS é um medicamento anti-hipertensor que consiste...

Pergunta:

Esta questão já foi colocada por um consulente em 2001, mas a resposta dada pelo consultor do Ciberdúvidas ["Argélia-Argel"] não esclarece a metátese que se produziu em português e castelhano.

A minha pergunta é a seguinte: por que razão terá havido esta metátese de uma palavra de origem árabe iniciada pelo artigo al? Será caso único com palavras portuguesas de origem árabe com o artigo al?

Encontrei uma resposta num sítio de língua espanhola que também não me deixou totalmente esclarecido, razão por que peço a vossa opinião.

Muito obrigado.

P.S. – Em outros sítios, a pergunta é idêntica à minha, mas as respostas fogem ao cerne da questão: Sua Língua e StackExchange.

Resposta:

As formas Argel e Argélia terão surgido por metátese, isto é, por troca de posição de segmentos na estrutura silábica da configuração mais antiga destes nomes, Alger e Algeria, talvez empréstimos do catalão ou do italiano1. A alteração deve ser bastante precoce na história destes nomes em castelhano e em português, pois parece já estável na documentação dos dois idiomas, pelo menos, desde o séc. XVI (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa e Corpus diacrónico del español – CORDE da Real Academia Espanhola).

Observe-se que, em posição inicial, é possível identificar alguns casos de substituição de /l/ por /r/, por exemplo, por dissimilação, como acontece com argola, do árabe andalusi alġulla, que vem por sua vez do árabe clássico ġull «cepo; peça de madeira posta ao pescoço dum condenado» «(cf. Federico Corriente, Diccionario de Arabismos y Voces Afines en Iberromance, Gredos, 2003)2. A toponímia de Portugal também faculta exemplos deste tipo não de origem árabe, mas de origem românica, como Argozelo<...