Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como se deve escrever: "lenhocelulósico"? "Lignocelulósico"? "Lenho-celulósico"? "Ligno-celulósico"?

Resposta:

As grafias corretas do adjetivo em questão são lignocelulósico e lenhocelulósico. Embora ambas as formas sejam aceitáveis, pode afirmar-se que a primeira é mais frequente e até, quanto à sua formação, mais coerente do que a segunda.

As duas formas adjetivais derivam dos nomes lignocelulose e de lenhocelulose, cuja diferença linguística reside no contraste entre o elemento ligno- do primeiro, de origem erudita, e o elemento lenho-, de origem popular. Trata-se, portanto, de um exemplo interessante de elementos morfológicos que significam o mesmo, mas que têm histórias divergentes, pois, partindo do latim lignum, i, «madeira (para queimar)», tomaram configurações diferentes na sua evolução. Ilustram assim o que aconteceu com palavras autónomas como adro e átrio, duplo resultado da palavra latina atrium  em português.

Como todos constituem termos técnicos, nota-se preferência pela forma que apresenta um elemento diretamente transmitido por uma língua clássica, neste caso, o latim – ligno.Com efeito, uma consulta de páginas da Internet através do Google Académico mostra que a palavra que encerra o elemento de origem erudita, lignocelulose,  é mais frequente do que aquela que contém a forma de origem popular, lenhocelulose.

Refira-se, por último, que lignocelulose (ou lenhocelulose) denomina a matéria que «[...] é composta principalmente por determinados hidratos de carbono como a celulose, que é um homopolímero que se forma pela união de moléculas de β-glucose através de ligações β-1,4-glico...

Pergunta:

Estou escrevendo um conteúdo científico e os revisores corrigiram minha escrita de «pessoas transgênero» para «pessoas transgêneros».

Para mim, a palavra transgênero nesse caso é invariável, pois se desmembrarmos a palavra em trans+gênero, obtemos o sentido de «troca de gênero». Ou seja, «pessoas (no plural) de gênero (no singular) trocado».

O argumento dos revisores é que existe mais de um gênero, portanto o correto para eles seria pessoas transgêneros (tudo no plural). Acredito que se o termo transgênero for utilizado isoladamente, como um substantivo, ele possa variar em número (ex: «os transgêneros da nossa comunidade»), porém quando utilizado como adjetivo, deveria ser invariável (ex: as pessoas transgênero da nossa comunidade).

Gostaria de saber se meu raciocínio está correto ou se estou equivocado.

Obrigado desde já!

Resposta:

A palavra transgénero está dicionarizada quer como adjetivo quer como substantivo. Como adjetivo, não parece haver consenso claro quanto à possibilidade da sua flexão no plural.

Os dicionários em linha elaborados em mantidos em Portugal – o da Infopédia e o Priberam – concordam quanto a classificar transgénero como adjetivo invariável: «pessoas/indivíduos trangénero». No entanto, em dicionários do mesmo tipo produzidos no Brasil, a informação lexicográfica associada sugere que o uso adjetival permite a flexão no plural: «pessoas/indivíduos trangêneros».

Quando empregada como substantivo, a palavra tem plural: «o/a transgénero», «os/as transgénero».

 

CfCisgénero e Transgénero

Pergunta:

Lia Ronald de Carvalho [1893-1935], numa edição antiga, e vi a palavra «dansa» em vez de dança.

Donde surgiu a cedilha em dança? Como ocorreu esse processo? Há outros casos?

Resposta:

A palavra e o verbo correspondente – dançar – escreviam-se com ç na Idade Média.

Apesar de atualmente se escrever danse e danser em francês, a forma verbal dancier do francês antigo tinha c, que se converteu em ç ao passar ao português e ao castelhano (neste último caso, hoje, escreve-se danza). A origem do francês dancier encontrar-se-á num verbo germânico com a forma hipotética *dansjan, variante do antigo alto-alemão dansôn ou dinsan, «puxar, esticar, estender» (sobre a etimologia do francês danser, consultar o Trésor de la Langue Française, em francês).

Pergunta:

Venho por este meio pedir o especial favor de me esclarecerem a seguinte dúvida: um indivíduo que segue a igreja evangélica é evangélico ou evangelista?

Muito obrigada.

Resposta:

Usa-se como nome e adjetivo a palavra evangélico, para identificar a pessoa que faz parte de «Igrejas e comunidades religiosas com origem na Reforma (protestante)» (dicionário da Infopédia) ou que é membro da Igreja evangélica (Dicionário Houaiss). O termo evangelista é geralmente aplicado a quem é o autor de um dos Evangelhos (como são S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas, e S. João) e a quem canta ou dá a conhecer os Evangelhos.

Pergunta:

Quando se passou a tratar por vós a pessoa respeitável que conheçamos, em vez de usá-lo, esse pronome, a referir a várias pessoas?

E quando surgiram os demais pronomes de tratamento, como Senhor, Vossa Mercê (você/"cê") e tantos outros.?

Os latinos os usavam, tinham os seus próprios ou não possuíam esse tipo de pronome, preferindo apenas os velhos e bons tu e vós àqueles?

Resposta:

Trata-se de um uso muito antigo na língua, à semelhança do que acontece em espanhol e francês.

É uma criação das línguas românicas, pois o latim clássico, que só empregava tu como tratamento de 2.ª pessoa, não a conhecia.

Vale a pena transcrever o que dizem Joan Coromines e José Pascual, no Diccionario Etimológico Castellano e Hispánico (edição eletrónica de 2012), sobre o emprego de vos no castelhano, cuja evolução não diferirá grandemente da que teve vós, o seu cognato em galego-português e, portanto, em português:

«En los SS. XII-XIV conserva el valor de pronombre plural que tenía en latín: "pues vos lo queredes, entremos en la razón" dice el rey a los Infantes de Carrión (Cid, 1893), y análogamente en Berceo ("amigos... / si vos el mi consejo quisiéssedes tomar" Mil., 863b), Conde Luc (ed. Knust, 13.4), etc. Pero también aparece desde los orígenes el uso de vos como pronombre de reverencia con valor singular: "Cid, en el nuestro mal vos non ganades nada" (Cid, 47), "ove por vos tristicia, ahora he placer" dice el rey a su hija (Apol., 545c). Para evitar la ambigüedad, pronto empezó a emplearse vosotros. Inicialmente, éste tendría sólo el valor enfático (‘vosotros sí, no yo’ o ‘no nosotros’) que conserva hasta hoy el fr. vous autres, y que todavía se percibiría tal vez en el S. XIII, en una frase como la siguiente, donde se codea con el plural no enfático vos: «vos todos los mures vos ayuntades contra mi señor, et él es muy sañudo contra todos vos otros» Calila, ed. Allen, 196.289-90.»*

*[tradução livre, mantendo as citações medievais em castelhano: Nos séculos XII-XIV, [vos] conserva o valor de pronome plural que tinha em latim: «pues vos lo queredes, entremos en la razón», diz o rei aos Infantes de Car...