Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Diz-se «abrir fogo contra» ou «abrir fogo sobre»?

Obrigado.

 

Resposta:

A expressão «abrir fogo», interpretável nas aceções de «disparar (arma)» e «começar um ataque»1, é compatível com ambas as preposições, contra e sobre, como se atesta quer por uso literário quer por registo dicionarístico:

(1) «A Voz, porém, abriu fogo contra Rodrigo Esteves: acusou-o das maiores torpezas enquanto empregado dos Amorins.» (João Gaspar Simões, Pântano, 1936)

(2) «[A] políca abriu fogo sobre os manifestantes [...].» (Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilistico e Sintáctico, Livraria Chardon de Lello e Irmão Editores, 1985)

 

1 Cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, e o dicionário de língua portuguesa da Infopédia, da Porto Editora (consultado em 6/10/2019).

 

Pergunta:

A palavra "bolsominion" necessita de acento gráfico? É uma palavra paroxítona?

Resposta:

Em português, a grafia correta é bolsomínion.

A palavra em causa é analisável como uma amálgama construída pela truncação bolso-, do nome próprio Bolsonaro (apelido ou sobrenome do atual presidente do Brasil), e do termo inglês minion, «servo, lacaio»1. É muito provável que o emprego deste anglicismo decorra do facto de na última década se ter tornado mais conhecido como nome próprio no plural – Minions –, pelo qual se identifica a personagem coletiva de uma famosa série de filmes de animação2. É uma denominação pejorativa, de intenções críticas e sarcásticas, que, no Brasil, se aplica aos adeptos de Jair Bolsonaro

Como nome próprio, que junta elementos de origem não portuguesa, pode não ficar sujeito às regras ortográficas e dispensa acento gráfico: Bolsominion.

No entanto, se se pretende usar a mesma forma como nome comum, deve atender-se a que o inglês minion tem acento tónico na primeira sílaba (soa como "mínion"). Sendo assim, a forma correta é bolsomínion, com acento na -mí-, sendo esta tratada como palavra paroxítona (ou palavra grave, como se diz em Portugal), sobretudo pela razão de o encontro vocálico átono final -io- se comportar como um ditongo crescente3 (cf. o caso de domínio, em que as duas vogais -i-

Pergunta:

Os dicionários registam esparguete, termo mais usual em Portugal, e espaguete, considerado mais correto no Brasil.

Sendo a origem desta palavra o vocábulo italiano spaghetti (plural de spaghetto, diminutivo de spago – cordel), qual será a razão da epêntese do r em esparguete?

Na 3.ª edição (1977) do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, lê-se:

Espaguete – do italiano spaghetti «macarrão fino». Há a variante esparguete, devida à influência de espargo.

E no Dicionário da Língua Portuguesa (2008) da Porto Editora encontramos, quanto à etimologia, o seguinte: do italiano spaghetti x espargo.

«E o que têm os espargos [a] que ver com esparguete, para além de haver uma óbvia semelhança na forma desses dois vocábulos?» pergunta-se aqui [Sara Leite, "Cordelinhos à Portuguesa", in blogue Língua à Portuguesa, 3/11/2008]:

«[a] A palavra “espargo” vem do grego asparagos, “espargo”, pelo latim asparagu- (Infopédia).

Será que o verbo latino spargo (espalhar) também poderá ter tido influência em esparguete?...

Fico muito grato pela vossa atenção.

Resposta:

Sobre a etimologia da forma esparguete, usada em Portugal, aceita-se e é plausível a explicação dada por J. P. Machado. Ou seja, no aportuguesamento de spaghetti, operado na variedade lusa, a inserção da consoante r (a epêntese) deve-se à analogia com espargo, palavra que exibe tal consoante na posição medial.

Quanto à possibilidade de uma influência do latim spargo – do qual evoluiu espargir –, parece ela pouco provável, porque, para se verificar, teria de se ter feito sentir num meio erudito. Ora, a forma esparguete antes se afigura uma criação popular, alterada por aproximação a espargo, num processo enquadrável na etimologia popular1.

Por contraste, a forma brasileira é mais conservadora, por não fazer a referida epêntese. Poderá pensar-se que a fortíssima presença italiana no Brasil para tanto terá contribuído1, mas falta informação que possa confirmar esta conjetura.

 

1 A etimologia popular consiste na alteração da forma de uma palavra de modo a aproximá-la de outra, por se supor que existe entre elas uma relação semântica ou derivacional. É o fenómeno que ocorreu na evolução da palavra floresta, na Idade Média foresta, na qual se inseriu por analogia um l não etimológico, no pressuposto erróneo de haver uma relação com flor. Cf. "Floresta e a família de palavras flor".

2

Pergunta:

Eu sei que não cabe analisar uma frase dita em outros tempos com as estruturas do presente, mas o ex-presidente de Brasil, o populista Getúlio Vargas [1882-1954], antes de se suicidar, escreveu:

«A sanha dos meus deixo o legado de minha morte.»

Se o trecho fosse escrito atualmente, o "a" deveria levar crase?

Grato!

Resposta:

A frase original faz parte da versão manuscrita da chamada carta-testamento de Getúlio Vargas. Em diferentes edições, apresenta-se sempre a palavra à com acento gráfico, a marcar a contração da preposição a com o artigo definido a – ou seja, a assinalar crase, como se diz no Brasil:

«Deixo à sanha de meus inimigos, o legado de minha morte.»

Note-se, porém, que o presidente parece ter cometido um pequeno erro nessa célebre nota manuscrita, ao escrever a forma "á", com acento agudo, a qual corretamente deveria grafar-se "à", com acento grave, mesmo em 1954, ano da sua morte1. Pelo menos, assim sugere o exame do documento em causa, que abaixo se reproduz conforme imagem publicada nas páginas do sítio eletrónico Só História:

 

 

 

1 É possível que Getúlio Vargas, nascido em 1882, tenha escrito "á" por condicionamento de hábitos gráficos adquiridos durante a sua escolarização, anterior às reformas ortográficas do português ocorridas depois de 1911. Contudo, à data da morte do presidente brasileiro em 1954, vigorava no Brasil, e

Pergunta:

É muito comum no Brasil usarmos o termo «meia dúzia» com o sentido de «seis», principalmente em comunicações telefônicas e aéreas, para que em caso de algum ruído na comunicação, não se ouça três, no lugar de seis. Logo, «meia dúzia» facilita a compreensão de que falamos de 6, e não três.

Pois bem, uma pessoa grosseira me corrigiu, quando eu fornecia meu telemóvel, e citei um dos dígitos como «meia dúzia», com o intuito de facilitar a compreensão. A pessoa respondeu que «meia era para pés». A pessoa compreendeu exatamente o que eu quis dizer, pois após longos anos de troca entre Brasil e Portugal, muitos conhecem muito bem nossas expressões.

Eu não corrijo um americano, quando ele me diz que um artigo custa, por exemplo, 10K. Isso faz parte do dinamismo da comunicação, cada língua tem expressões ou gírias, que podem ser entendidas por outros, sem que isto cause constrangimento.

A pergunta é se  posso usar «meia dúzia», no lugar de seis, sem estar incorrendo num erro gravíssimo, que me leve à "guilhotina" (ironia) ?

Resposta:

Sabe-se que o emprego de «meia dúzia» ou simplesmente meia como sinónimo de seis é característico do português coloquial do Brasil (na comunicação telefónica), até porque já tem registo tanto em dicionários brasileiros como em dicionários elaborados em Portugal:

(1) «[meia é redução de «meia dúzia» e] empregado especialmente. no discurso falado para diferençar o som da palavra seis do da três, como, p.ex., na frase: o prefixo dois-meia-três (263) é dos telefones da zona central do Rio.» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1.ª edição brasileira, 2001)

(2) «meia3 [mɐ́jɐ]. numeral. (redução de meia dúzia). Brasileirismo. Designação coloquial para o número 6.» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001)

O que é dito no exemplo 2 é ainda facilmente confirmável em dicionários em linha produzidos e mantidos em Portugal como o dicionário de português da Infopédia e no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

Diga-se, no entanto, que meia não constitui uso do português de Portugal, país onde se distingue bem seis de três1. É também possível que vários falantes, provavelmente mais idosos, achem estranho que meia ocorra com o significado em apreço, situação que poderá ser ultrapassada com o recurso à palavra seis. Entrando já em juízos éticos, é claro que são sempre de reprov...