Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra "micragem" existe? Uma frase como «para aquele plástico é necessário verificar-se a micragem» está correta?

Resposta:

A palavra micragem não aparece dicionarizada nas fontes consultadas, mas encontra-se em páginas da Internet. Por exemplo:

(1) «Micragem é uma medida usada para definir a espessura do saco de lixo.» ("Saiba tudo sobre saco de lixo", Limpar distribuidora, 23/12/2019) )

(2) «A micra é uma unidade de medida também relacionada à espessura da lona. Assim, quanto maior a sua micragem, mais resistente ela será. [...] a micragem está diretamente relacionada à resistência da lona.» ("O que é micragem e como ela influencia na esolha do tipo de lona", Lonax, 28/09/2018)

(3) «Nunca adquira um filtro sem antes conhecer sua "micragem" (tamanho dos poros de filtração – do elemento filtrante, refil ou cartucho).» ("micragem", KudoZ, 22/09/2019)

Estas e outras ocorrências de micragem sugerem que este termo, que se refere à porosidade de um material, faz parte do jargão industrial e comercial. Contudo, parece faltar-lhe caução científica, pois ter-se-á formado à margem das normas que definem e regulam os nomes da unidades de medida1. Com efeito, deriva de micra, mícron ou micro, formas alternativas não preferíveis ou incorretas de micrómetro, «Unidade de medida de comprimento que corresponde à milésima parte do milímetro (símbolo: μm)» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também

Pergunta:

Quais são as pronúncias do dígrafo sc nos territórios falantes de português, desde a África até ao Brasil e a Portugal?

Não posso afirmar que o dígrafo sc se tornou tão inútil quanto mn em alumno? Qual o grau de uniformidade que tem de existir para que seja abolido o sc e possamos portanto escrever "nacer", "decer" et cetera?

Resposta:

Embora no Brasil, a sequência gráfica <sc> seja considerada um dígrafo, porque se trata de duas letras (grafemas) que representam um único som (segmento), acontece que, em Portugal e noutros países de língua portuguesa, a situação é um tanto diferente. Com efeito:

a) na pronúncia cuidada, sc antes de e ou i marca a sequência de duas consoantes: descer soa como "dechser", e nascer como "nachser";

b) na pronúncia normal ou rápida, sc corresponde ao "ch" de chave: descer torna-se "decher", e nascer é "nacher"1.

Tendo em conta a), conclui-se que <sc> não é um dígrafo nas variedades de Portugal e de outros países. Contudo, olhando para b), pode aceitar-se que sc seja um dígrafo, se bem que de realização fonética diferente da que parece mais generalizado no Brasil.

Em síntese, a grafia sc não é assim tão inútil, porque não só permite abranger diferentes realizações fonéticas entre os falantes de língua portuguesa mas também marca a realização de dois segmentos da pronúncia que, fora do Brasil, muitos podem adotar. É de notar ainda que a sequência mn ainda hoje é útil, porque, em Portugal, é pronunciada em palavras como amnistia ou omnívoro2.

Numa perspetiva exclusivamente brasileira, independente de outras variedades do português, poderá antever-se a supressão desse par de letras, mas, por enquanto, não parece que a consideração de uma língua brasileira autónoma reúna consenso.

 

1 A de...

Pergunta:

Gostaria de ver esclarecida a pronúncia correta da palavra rapsódia, por favor.

Muito agradeço a atenção e a disponibilidade.

Resposta:

Em Portugal, o s de rapsódia pronuncia-se [s], tal como se escreve, de acordo com a tradição normativa, mas está muito disseminada e até consagrada em dicionário a pronúncia com [z], ou seja, fazendo com que a palavra soe "rapzódia"1. O mesmo ocorre com rapsodo, nome que se ouve como "rapzodo", muito embora se prescreva a prolação com [s].

Do ponto de vista ortoépico, isto é, na perspetiva normativa da chamada "boa pronúncia", trata-se de uma articulação discutível, que, no passado, chegou a ser censurada e dada como incorreta. Tal opinião é muito claramente manifestada, por exemplo, por Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, de 1958, juntando informação relevante sobre a história destas palavras (manteve-se a ortografia do original):

«Rapsódia, e não "rapzódia", como alguns proferem. Em grego rhapsodia. [...] Como, principalmente na Rádio, se está a divulgar erròneamente a pronúncia rapzódia, convém advertir no que escrevei em Rádio Mundial (.º 2).

Em grego havia, e há, uma letra chamada "psi" (leia-se "pssi"). A tal letra correspondeu em latim "ps" e em português também. Como se profere? Assim: "pss" (e não "pz").

Posto isto, saiba-se que rhapsodos era o que "cosia" ou ajustava cantos, cantor ambulante, ou o que recitava poemas de terra em terra. Poema era rhapsodia, e este mesmo nome se deu aos trechos ou cantos de poema [...].

Pergunta:

Em português (Portugal) qual o mais correto: Isaac ou Isaque?

Resposta:

A forma correta e tradicional é Isaac, que tem uma variante também aceitável, Isac.

Isaque, embora tenha configuração portuguesa, levando a crer que até poderia ser preferível, é uma outra variante aceitável, mas que não parece ter tradição de uso significativa. Contudo, encontra-se em Portugal, fazendo até parte da atual lista de nomes admitidos pelo Instituto dos Registos e do Notariado.

Pergunta:

Dada a existência de diversas explicações etimológicas para a palavra estratégia, venho solicitar os vossos possíveis esclarecimentos.

Antecipadamente grato pela ajuda.

Resposta:

A etimologia de estratégia, que significa genericamente «ciência das operações militares»1, encontra-se consignada, por exemplo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001)

«stratēgía, as "o cargo do comandante de uma armada, o cargo ou a dignidade de uma espécie de ministro da guerra na antiga Atenas, pretor, em Roma; manobra ou artifício militar", pelo francês stratégie (1812, stratège [...]); a prosódia atual sofre influência das palavras abstratas em -ia, como em latim [exemplos: eficácia, pertinácia].»

Outras fontes consultadas não contrariam esta informação. É certo que José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte, 1987), não menciona a via de transmissão francesa, mas esta é plausível, tendo em conta que os primeiros registos de estratégia – segundo Antônio Geraldo da Cunha2, da primeira metade do século XIX – datam de uma época em que o francês atuou frequentemente como medianeiro na adoção de numerosas palavras cultas quer de origem latina quer de origem grega.

Acrescente-se que, para o espanhol estrategia, também se aceita a origem grega, mas por via indireta, pelo latim e pelo francês:

«Estrategia [Acad. ya 1843], tomado del gr. στρατηγíα ‘generalato’, ‘aptitudes de general’, otro derivado de στρατηγóς; este último se tomó primero por conducto del fr. stratègue [1737; hoy más bien stratège], dándole la forma errónea estratega [Terr.], y en el sentido etimológico de ‘general griego’; después se le ha atribuido, por influjo de estr...